terça-feira, 27 de outubro de 2009

Três vezes na Feira

A 55ª Feira do Livro de Porto Alegre, que abre nesta sexta-feira, 30 de outubro, e vai até o segundo domingo, dia 15 de novembro, é o espaço por excelência da visibilidade do livro. A gente curte tanto o evento que, quando vai ver, quase sem sentir, prepara um livro, dois, três – e eles convergem todos para aquele espaço de convivência que, não à toa, é chamado de "a maior feira de livros a céu aberto da América Latina". Este ano todos os meus títulos são no gênero infantojuvenil. Mas literatura de verdade (se eu tiver sorte de ter chegado a ela) não tem idade, e é para todos os públicos. Em resumo, para quem gosta de ler, preparado a entregar-se a toda natureza de surpresas. São três sessões de autógrafos com três editoras diferentes, de três estados.

31/10, sábado – 19h30min: O morto que não encontrava o céu (WS Editor); terror com humor. Especificamente, para leitores entre 9 e 12 anos, mas pais, tios e avós são bem-vindos. Praça de Autógrafos.




05/11, quinta-feira – 17h: Três pais (Saraiva – Selo Atual); três livros em um: duas adaptações de clássicos – Shakespeare e Kafka – e mais uma novela inédita do autor, Pai embrulhado para presente. Série temática Três por três: este volume toma como ponto de partida a delicada condição paterna, e de chegada, torço, a condição humana. No deck dos autógrafos – Pórtico Central do Cais do Porto, Área Infantil.




(Entrevista a Melissa Stranieri)

- Há mais de 20 anos você é crítico literário, julgando outras obras e escritores. Qual o critério que utiliza para avaliar as próprias publicações? Diria que se procuro ser justo com os outros autores que comento, comigo prefiro (claro, exagerando um pouco) até mesmo ser injusto. Exijo ao máximo de mim (e nem seria bom que exigisse menos que isso). Um bom livro deve ser criativo na trama, ter personagens interessantes e uma linguagem saborosa, com ritmo, quase musical, e ao mesmo tempo fácil de ler. Não posso, como crítico, abrir mão de encontrar isso em qualquer livro que analiso. A diferença é que quando se trata de um livro meu, bom, aí então eu levo essa exigência a um nível extremo. Procuro, em resumo, escrever o livro que eu, como leitor, sonho um dia encontrar para ler. Difícil chegar a tanto, mas não custa tentar (risos).

- Você já escreveu para o público adulto e também para o infantojuvenil. Qual a diferença entre eles? Toda e nenhuma. Nenhuma porque quando se escreve, busca-se uma doação sem a qual o artista não é artista, mas mero prestidigitador. Entregando-se inteiro ao que conta, vai junto como ser, e acontece junto de sua história, entregando aos leitores um livro que vale uma pessoa inteira e suas obsessões e encantamentos. E também, nos aspectos externos, há toda uma diferença. Isto porque o público adulto, bem, a gente nunca fica sabendo quem é. O infantojuvenil é que faz com que você, como autor, seja convidado a ir nas escolas, e é entrevistado daquela forma livre e espontânea, típica das crianças e adolescentes: perguntam de tudo. A garotada não se intimida na hora da curiosidade. Os leitores adultos já são mais dados a uma reserva compreensível, o que é raro quando se trata de jovens. Quando publico para adultos, acontece uma sessão de autógrafos, sai crítica na imprensa, com sorte ganho algum prêmio, e o resto é um enigma só. Quando publico infantojuvenil, fazem encenações sobre os meus livros, cartazes, me escrevem cartinhas manuscritas lá do interior, mandam recado até pelo Orkut – é uma festa!

- Já são cerca de 30 obras publicadas e sempre com uma história diferente. Como surgem as ideias para escrever os livros? Como surgem todas as idéias em todas as cabeças de qualquer pessoa. Imprevisivelmente (a gente deve estar sempre de “portas” e “janelas” abertas; no sentido figurado, claro), ao acaso, como quem sai para brincar no parque e nem sabe o que vai acontecer e então se depara com muitos fatos. A vida nos apronta muitas surpresas. Basta não ter medo de imaginar. No fundo, bem lá no fundo, todos nós já temos, como quando estamos sonhando, histórias prontas à espera de que a gente as descubra e as traga para fora de nossa mente e as coloque no papel. Eu sempre sento na frente no computador quase que não tendo a mínima ideia do que vou escrever. Eu disse "quase". Evidentemente, há um projeto básico, um desejo forte que me impele para a frente mas não se mostra visível enquanto não escrevo as primeiras frases. Começo então a escrever, inevitavelmente. De acordo como está o meu espírito nesse dia. E as coisas vão rolando (como uma bola que eu fosse chutando)... e a história tranca aqui, destranca ali, tranca de novo, mas, de repente, acontece! Quando termino um livro, surpreendo-me e digo para mim mesmo: “mas então era isso que eu tinha para contar?!”

- No livro “Três pais” você associa Hamlet com o livro. Como isso acontece? Desconfio que muitas das histórias já escritas no mundo de alguma forma dialogam umas com as outras. No caso do Hamlet, o príncipe é visitado pelo fantasma de seu pai que foi assassinado, pai que pede vingança ao filho, e Hamlet sofre com a presença paterna a exigir dele a difícil justiça e, ao mesmo tempo, o príncipe também sofre com a ausência desse pai, que já não pode se defender. Na outra história, “Carta ao Pai”, do Kafka, o filho acusa o pai de ter sido muito duro, exigente, e aí invertem-se os papéis: é o filho que deseja justiça. E na terceira história, criada por mim, “Pai embrulhado para presente”, eu narro a história de um pai que é desafiado a ficar longe das duas filhas para vencer na carreira, no trabalho. Mas a realização profissional, nesse caso, quase arrisca colocar o afeto pra escanteio. Bom seria ter os dois em seu ponto máximo... Mas é o caso de buscar equilibrar as prioridades, a afetiva e a material – obviamente não excludentes. Naturalmente, esse pai jamais vai parar de trabalhar, ele prefere enfrentar alguns sacrifícios porém sua escolha principal, ali, é ficar sempre perto das filhas. Entre a glória e a fortuna ou o afeto (na verdade uma questão que não podemos aceitar que seja posta assim), ele escolhe o afeto como glória e fortuna legítimas. Dele, do amor paterno, tirará a energia para construir o resto. E aí, voltando ao Hamlet da pergunta, a angústia que se apodera do príncipe que precisa denunciar o assassino de seu pai – o tio! –, é o afeto a força decisiva para que ele crie a coragem nunca antes demonstrada. Afinal, sem afeto de que adiantaria existirem pais e filhos? Que sentido e sabor teria, enfim, a vida?


12/11, quinta-feira – 17h: Tem vampiro no hospital (Editora Positivo); terror com humor. Leitores entre 9 e 12 anos, mas todos os curiosos, entre 9 e 400 anos (idade estimada de Drácula) são leitores-alvo. No deck dos autógrafos – Pórtico Central do Cais do Porto, Área Infantil.




Bem, amigos, é isso. Como as agendas andam lotadas, vocês têm três chances para comparecer ao menos a uma das sessões. E considerando que minha última sessão foi em 2006, eu já estava com saudades deste clima que só a Feira possui. Daí porque neste ano resolvi exagerar, e parti para comparecer em dose tripla. Não dá para facilitar... (27/10/2009)

sábado, 24 de outubro de 2009

ALÉM E AQUÉM DO VERSO ("Versilêncios", de Gerusa Leal)




Não é todo dia que surge um bom livro de poemas. Culpa dos poetas. Em parte, em pequena parte. Em grande parte a culpa é mesmo dos editores, que acusam o mercado dentro de cuja barriga os livreiros, famintos, bradam: “não há leitores de poesia!”. Não? Somos então uma espécie em extinção. Eu e mais uns cinco mil que certamente leem o gênero no Brasil. Parece que o problema não está só com a poesia mas com a indústria editorial, que opta pelo mais fácil como uma criança fazendo o dever de casa. Movida pela pior das obrigações – e por isso não deslancha. Culturalmente não.

Mas esta é uma discussão longa. Vender, vender mesmo (esgotar edições), claro que a poesia não fará isso. Mas pagar seus custos ao menos, dando, em contrapartida, uma valorização no catálogo das editoras, deixando-os mais nobres, pagando ao editor com a “quota prestígio” – que parece que o Departamento Editorial ignora –, isso ela tem feito sempre que um herói invista em versos: naturalmente, de qualidade.

Pois Versilêncios, de Gerusa Leal (nascida em Recife e residindo atualmente em Olinda), é desses livros dos quais as editoras não correm atrás. Azar o nosso, leitores dependentes químicos de Literatura com L maiúscula. Não fosse o prêmio Edmir Domingues de Poesia 2007, da Academia Pernambucana de Letras, que a obra merecidamente ganhou, e o apoio viabilizador da edição, através da lei do sistema de incentivo à cultura, e o livro não viria à luz. Permaneceria inédito, provavelmente, apesar de seus incontáveis méritos, ou dependeria daquelas infrutíferas iniciativas de poetas que, corajosos ou impacientes, pagam do próprio bolso uma edição destinada a não ser profissional mas, literalmente, independente (isto é: independente do mercado, onde não se insere, independente de distribuição, de comercialização e, assim, de recepção, condenada a permanecer à margem).

O primeiro a torcer o nariz diante do produto é o livreiro, que deseja ver na capa um selo importante. Diante de tal ausência, não dá a atenção devida, não o expõe, e o frequentador da livraria não tem como adivinhar que a obra existe. Obra destinada, portanto, a não existir mesmo.

Uma vez declarei num programa de tevê de grande audiência, em cadeia nacional: “pior que ficar inédito é publicar mal.” E não publicar mal, só por editoras profissionais, sólidas, e que, lamentavelmente, estão dando às costas à poesia. Mas esta, como escrevi linhas atrás, é outra discussão.

A pauta aqui é Gerusa Leal, poeta e ficcionista. E, mais especificamente, Versilêncios, que acaba de ser lançado, porém sem a necessária distribuição. De Pernambuco, de onde vem, até chegar ao RS, mais que a enorme distância, separa-o o milagre. Milagre que pôs o livro em minhas mãos por essas atalhos especiais que só os vínculos estéticos somados aos humanos propiciam.

Tenho lido pouca poesia (porque pouca poesia tem sido publicada) e relido muita, os clássicos (porque estes, adotados, são os únicos diante dos quais o editor não arrisca).

Versilêncios abre-se já a partir do título, multifacetado, com a tripla carga semântica do neologismo que a poeta criou para batizar seu filho, ufa!, não enjeitado (bendito prêmio...). “Ver silêncios” (poesia, afinal, é imagem, embora também música, e se até o silêncio fala ao poeta, este o desenha em suas metáforas-traço). “Ver” soma-se à primeira sílaba, “si”, de “silêncios”, numa junção que dá em “versi”, “verso” em italiano, e basta pensar em Dante, não exatamente no livro lembrado, mas inevitável quando se pensa em poesia e em italiano, para ver a intensa riqueza significadora do título. E ainda: “Versos” e “silêncios”, isto é, “versos silenciosos” – melhor tradução para o projeto de extremo rigor e de pleno acerto que Gerusa atinge como poeta.

Eis a tripla encruzilhada que, antes de obstáculo, é abertura para um caminho mais amplo à procura de uma leitura de fato entregue a esses cinquenta poemas singulares.

A poética de Versilêncios é construção rigorosa, com versos esculpidos, talhados, não tivesse, pela força do ritmo, uma fluência cuja harmonia atinge em cheio sua cadência nunca dura, nunca seca, mas, sim, quase sussurrada e, desta forma, buscando lírica rara: a marcar exatamente porque escolheu entremostrar-se e não o contrário, que é exibir-se com os excessos comuns de uma poesia que não passa de prosa ritmada ao extremo.

A edição, evento a ser saudado, sobretudo pelas dificuldades que sempre cercam tal fato, está à altura, com introdução e posfácio críticos, ambos de fôlego e com leituras que não causam eco, que não chovem no molhado. Um pouco pela qualidade dos ensaístas, André Cervinskis e Stéphane Chao, um pouco pela própria poeta, que não descuida de um único verso, que escreve silabando. E que, ainda que chegue ao zelo infinito de medir cada som, não se exila do discurso próprio da poesia, o do paradoxo, o da permanente refundação do mundo e da inacabável instauração do real. Um real que é sempre outro, não este, no qual escrevo.

Citar um poema? Cito um inteiro, o primeiro, no qual a poeta, sem demora, já mostra ao que veio: “não escrevo o que não sinto / amadora que sou / sinto o que não escrevo / jeito de amar a dor // escrevo o que não sinto / salvo a vida / não sinto o que não escrevo / nem percebo que vivi”. Dividido em doze seções, Versilêncios nos leva para um território onde tudo o que lemos-escutamos só grita nos instantes (muitos) em que a beleza é tanta que nos impõe uma resposta: a da emoção estética forte, manifestada em geral quando diante de um livro muito acima da média.
É o caso.
Gerusa Leal. Anotaram o nome? Procurem no blog (olhem que belo nome) Flor de Gelo, endereço: http://flor-de-gelo.blogspot.com/ e tudo que eu não disse aqui alguém terá dito por lá. (24/10/2009)

domingo, 28 de junho de 2009

UM POEMA PARA SEMPRE (e um aniversário)

Tenho cruzado muito eventualmente com Paulo Seben, saio pouco de casa, não sei dos passos do meu xará, mas sou mesmo um bicho-do-mato, não bastasse o Seben ser gremista e eu, colorado. Mas vamos ao que interessa.

Seben está de aniversário hoje, faz 49 anos, um guri! Bem, ainda não é a pauta, que bichos-do-mato não freqüentam festas de aniversários, sobretudo as de 49. Ainda se fossem as de 25, 30 anos, podia rolar alguma coisa...

Professor de literatura na UFRGS e – atenção! – poeta. Sim, o Seben, que 90% da gurizada conhece, é um professor daqueles, fodões, exigente, mas aplicado e generoso na clareza com que expõe os conteúdos do programa que herdou e que, inteligente, renova. Mas e o poeta?

Aliás, bota poeta nisso. Qualquer dúvida, busquem ler e reler seu livro Tango da Independência (Unidade Editorial da SMC-POA, 1995). Há outros, poucos, que o poeta e ensaísta Seben, também fodão, e, assim, criterioso ao máximo, publicou. Pouco (e bem). Hayde e o Homem-Tronco (fevereiro de 1988, disponível desde 2004 no site www.lojadosubsolo.com), Poemas podres (parcialmente escrito na década de 1980), O Uraguai, de Basílio da Gama (Ed. Feevale, 2001, e reescrito e reeditado agora para a Leitura XXI), Caderno Globo 33 (Instituto Estadual do Livro, 2002), A Escrava Isaura (adaptação para neoleitores, L&PM, 2003), além de ter participado de algumas antologias legitimamente antológicas e não meras coletâneas.

Bem, a melhor forma de comemorar o aniversário de um homem, se ele é um poeta, é mostrando o poeta que ele é. E há um poema de Paulo Seben que resume o que é a trajetória de quase todos nós, homens, e dos poetas incluídos, “Caminho”. Leiam esse poema, façam-me o favor. Eis toda a odisséia possível, a do precário, flagrada num instante de travessia de um ser com o qual é impossível não nos indentificar. Além do que, falando em poesia, identificações à parte, o poema, por si só, vale mais que isso. É um mundo novo, instaurado. No caso da obra-prima de Seben, sem favor algum um dos dez melhores poemas já produzidos ao extremo sul do País, um novo mundo na medida que nos restaura o mundo de sempre, perdido no cotidiano sem voz para expressá-lo. E que Seben expressa como raros.


CAMINHO


Paulo Seben



Um homem de mãos nos bolsos
cruzando a praça vazia.
Talvez em meio à garoa
ou restos de cerração.
O fato é que está sozinho
e tem nos bolsos vazios
as duas mãos impotentes.
O fato é que está vazio,
e as suas mãos tão sozinhas
cerradas nos bolsos vão
sem poder nem ir à toa.
Caminha rumo ao patíbulo.

As mãos seguram a vida
que tenta fugir dali.
Os dentes cerrados cortam
a língua que quer sair.
Os lábios cerrados calam
a voz que iria gritar.
Caminha rumo ao patíbulo
no frio da antemanhã.

Se houvesse sol, se ele abrisse
os braços pra perguntar
por que caminha sozinho,
por que um bolso é algema,
por que há neblina sempre
e praças que atravessar...

O sol não há. Não há gente
a quem fizesse a pergunta.
Caminha trôpego e chuta
pedrinhas em gol nenhum.
Caminha rumo ao patíbulo
e não deseja chegar.



do Caderno Globo 33 (IEL – Instituto Estadual do Livro, 2002)


Acho que chega. Não tenho mais nada a escrever. Só a ler. E a reler. Como vocês. O aniversariante de hoje merece. (28/06/2009).

sábado, 2 de maio de 2009

A REINVENÇÃO DA LITERATURA


Autores brasileiros contemporâneos provam a vocação
que a literatura possui para jamais ser estática,
mesmo quando busca o reconhecimento





O escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984) declarou certa vez que quando se sentava para escrever era como se a literatura não existisse e ele tivesse de reinventá-la. Estávamos em época de ditadura militar, e a saída para o discurso possível era o realismo mágico, que pela própria natureza – sem ser, necessariamente, gigante – gerou alguns gigantes: o próprio Cortázar, García Márquez, Juan Rulfo, Carlos Fuentes etc. No Brasil de então brotava o primeiro – e melhor – Moacyr Scliar (o dos contos de Carnaval dos animais e das novelas A Guerra no Bonfim, O exército de um homem só e Os deuses de Raquel) e um clássico pouco falado atualmente, José J. Veiga (de Goiás, mas bem editado e aceito no centro do País).
Era uma reação estética saudável a uma situação política doentia. Mas e hoje? Hoje, a pressão é outra. Deixou de ser especificamente opressiva no sentido de que deixou de ser política. Mas passou a ser multiplicada opressivamente porque é de ordem econômica e gerada pelos estragos que a sociedade de consumo causa, tendo atingido, pelo visto, seu apogeu.
Tenho uma filha de nove anos que, grande leitora, no entanto não escapa impune à obrigação de consumir modismos incontáveis e caríssimos, sem os quais ela estará fatalmente marginalizada dentro do grupo escolar que frequenta. Seus únicos pares. A literatura não escapou dessa armadilha, e procura – como um pai procura na equação filha = mundo – achar uma linguagem que dialogue com a dança referencial de um real que encontre legitimidade na fantasia que escraviza, não na fantasia que liberte.

Saturado de tanto emplastro para escamotear as dores seculares do mundo (emplastros que agora nascem do enterro sistemático do que a tradição criou como ponte para atravessarmos com um mínimo de segurança o nosso próprio tempo), o escritor ou revida – com uma bem-fornida mimese – essa profusão de referenciais cuja hegemonia dura um ano e cuja eficácia e profundidade não duram mais que os primeiros parágrafos, ou a pega no contrapé através de um movimento com o qual ela não contava: o da linguagem.

No primeiro caso, o da mimese, encontramos na obra do mineiro radicado em São Paulo Luiz Ruffato a resposta renovadora. O que poderia ser anacrônico ou assopro cansativo sobre as cinzas da História de fundo social emana brasa viva a revivificar sobrevivência, violência, migração para a grande cidade do centro do País, o ruidoso e caótico movimento de descendentes de italianos saídos de uma Cataguazes de portas fechadas para uma São Paulo que os joga direto na garoa mais noturna e fria. Grupos que há 30 anos eram chamados de lumpemproletariado, de rebotalhos da classe média baixa, de classe trabalhadora em áreas onde a modernização recém chegava para roubar empregos, não para muni-los de novas e eficientes ferramentas. Famílias dizimadas, luta e luto, e impunes ficam apenas o que se engessam num território onde o passado, mesmo enferrujado, ainda dá as cartas, bocejando.

Em Ruffato, você confere tudo isso na sua série de cinco romances, Inferno provisório, que abriu com Mamma, son tanto felice (176 pág., R$ 27,00), continuou com O mundo inimigo (208 págs., R$ 27,00), depois com Vista parcial da noite (160 págs, R$ 31,00) e da qual saiu não faz muito O Livro das impossibilidades (160 páginas, R$ 31,00), todos editados pela Record. Trata-se de meio século de transposição de um mundo vocacionado para o decomposto. O poder fraudulento, uma comunidade à deriva agarrada pelos intensos medos que alimenta, a carroça desgovernada da crônica dos fatos oficiais, carroça sobrecarregada de gente sem rumo – sem rumo herdado e sem rumo construído.

O mimetismo em Ruffato é total, sem os arranjos que se faz no mundo aí fora em busca da ilusão de que ele pressupostamente funcione. Não há truque no ficcionista. Tudo é exuberância na voragem de um caleidoscópio do precário. Narração e diálogos se misturam. As mais marcantes aventuras são as desventuras que ninguém contaria, por horror ou vergonha. As figuras que Ruffato faz reencarnar, reencarnam mesmo, e tem o peso de fantasmas de carne e osso. Inferno provisório é um ciclo romanesco, e só essa arquitetura ambiciosa (paradoxalmente construída com resíduos: de memória, de descrições no limite dos gêneros, num alucinado ritmo elíptico) já garante para o escritor a singularidade própria dos que, mesmo olhando para trás, reinventam a literatura.


A literatura como personagem

Não é de hoje que o artista ou a obra são convocados a dar as caras, a emprestar suas vozes à personagem principal. A atuar. A copista de Kafka, de Wilson Bueno (Planeta, 200 págs., R$ 35,00) faz de Felice Bauer, noiva de Franz Kafka (1883-1924), a copista que recebe do grande escritor textos para transcrever. Textos que nunca chegarão às mãos de Max Brod, o amigo que o traiu quanto à vontade do escritor, no leito de morte, de que sua obra fosse queimada. Bueno cria uma “recriação” de ambiente e de papéis suspeitos. A fidelidade de Felice, paradoxalmente, destrói obras de que até então nunca ouvíramos falar, como um bestiário (tipicamente kafkiano: o inseto em Gregor Samsa, o tatu em “A construção”, o abutre afogado no sangue da própria vítima...), enquanto nos revela, no livro que Bueno organizada, intercalando trechos cronologicamente ascendentes dos diários da copista com narrativas que incorporam na trama, no estilo, nas referências, na ótica diagonal sobre o mundo opressivo, o universo ficcional de Kafka, obras que estariam para sempre perdidas, não houvesse sido escrito este livro. Todos os textos, menos as cartas, ela queimou. Não o traiu. Mas traiu-se. Irônica comparação a Brod, que traiu descaradamente, e legou o bem que nos legou. Somos o abutre?

Alexandre Plosk, em As confissões do homem invisível (Bertrand Brasil, 392 págs., R$ 49,00), convoca os modelos de O Homem Invisível, de H. G. Wells, O Horla, de Guy de Maupassant (L&PM Editores, esgotado), O Homem de Areia, de E T. A Hoffmann (esgotado), e traz para a contemporaneidade carioca um modelo aterrador e uma brecha metafísica permanentemente aberta: a da diluição do eu.

É com tal ambição de olhar que a literatura permite e, mais, pressiona os escritores a que achem novos modelos, atalhos, arquiteturas. Não os deixará em paz nunca, como não deixou a um outro argentino, Jorge Luis Borges (1899-1986), que passou a vida toda anunciando-se mais como leitor que como escritor, e que inventou (enquanto personagens e temas) obras, autores, estilos, literaturas, um novo cânone a partir do qual – mesmo irreal e mágico – podemos guiarmo-nos na direção garantida de uma literatura comprovadamente nova. (02/05/2009)

domingo, 26 de abril de 2009

O ATELIER DA PALAVRA

A poeta e artista plástica Sandra Ling, à luz do post anterior,
cria em cima do decálogo proposto e faz outro percurso, amplia as direções,
vasculha as possíveis liberdades. O que era “oficina” vira “atelier”,
mais próximo da casa, e o que era “escritor” vira “palavra”,
conceito mais amplo.


Só vivendo para ter palavras.
Escrever não tem hora para começar, e cabe a cada um ser fiel a seus impulsos, sabendo-se ouvir para poder falar.
Deixe a criança descobrir o mundo através de seus próprios olhos, próprios pensamentos, próprios desenhos, deixe-a principalmente brincar, deixa-a ser criança.
Uma criança depois que aprende a desenhar nunca mais consegue fazer aqueles traços espontâneos de grande beleza e vivacidade da infância, depois será um desenhista que a gente olha, vê que faz um desenho maravilhoso, mas é de adulto. Para escrever também acho que a frescura das palavras e das idéias é como a mente de uma criança, original; portanto, diria aos pais (que sempre se antecipam para que o filho tenha o que eles não tiveram), não se precipite em nada, principalmente com a leitura. Ter livros na casa, os seus, os seus prediletos, é a melhor forma de um dia seus filhos se interessarem pela leitura, mais do que comprar para eles ainda muito cedo.

Com um adolescente acredito que a palavra brincar troca de nome e vira namorar, namorar o outro, a vida, a natureza, descobrir mais, estar presente, olhar, observar, sentir, sofrer, errar, passear, viajar, e, sobretudo, pensar – para depois ter o que escrever.

Ao adulto é preciso que não perca nunca sua criança para conseguir criar, escrever, sim, escrever – este ato que será desenvolvido lendo, lendo, lendo por toda a vida.

Cada pessoa tem a sua hora para se iniciar na escrita. Alguns iniciam bem cedo, como um forte chamado. Porém para muitos é um processo que se instala nas mais diversas fases.
Pode se iniciar com frases lidas, frases das quais gostamos bastante, copiando-as; pode ser escrevendo pensamentos que nos marcaram e que tenham forte significado para nós, ou, mesmo, algo que precisamos pensar acerca de, ou qualquer coisa que nos abrace num certo momento. Não existe um jeito único de começar, nem do que escrever e nem um tempo que seja o adequado ou o melhor para isso. Simplesmente escreva se tiver vontade e mesmo necessidade, mas, insisto, não tenha pressa de nada: a pressa atrasa, pois tira você do caminho de achar sua essência, e isto leva tempo, principalmente para achar um gênero. A busca é de encontrar o que você tem a dizer, e o modo aparecerá pela repetição, uma vez que quando gostamos de algo, fazemos várias e várias vezes. Com a repetição, o tal gênero irá certamente revelar-se.

E quando você tiver em sua gaveta, bem escondido, escritos seus, muitos, olhe o conjunto, que é o mesmo que olhar para você mesmo, e sinta o que mais lhe agrada, que pode ser o som, o significado, a forma. Você vai descobrir ali a semente para desenvolvê-la ao longo da vida.

Selecione o que mais tenha significado para você e nesta hora acho positivo então procurar uma oficina do gênero escolhido no momento (que poderá mudar ainda ao longo do processo), e ouvir alguém mais experiente para lhe mostrar caminhos, abrir mais seus olhos, lhe indicar leituras – de alguma forma, tudo isso pode ser decisivo. Mas também não esqueça que qualquer coisa que você escreve é importante. Pode não ser para os outros, para o crítico, mas para você é você naquela hora em que você criava, é o seu melhor naquele instante. Então guarde para si, não joque fora, não precisa mostrar para ninguém suas primeiras escritas, mas guarde.

Depois, a cada texto, acostume-se a deixá-lo dormir um pouco para retomá-lo com outro olhar num outro dia, num outro estado emocional, com outro ritmo, pois assim como as tintas de uma pintura de um dia para outro mudam de cor ao secarem, as palavras não mudam, mas nós mudamos, e este outro olhar sempre verá coisas novas, se necessário coisas a mudar ou não.

Mostre-as a algum crítico competente, que será um ajudante, um alerta, mas não deixe também de mostrar ao seu amor, a seu melhor amigo, a seus filhos, mostrar apenas como se lhes estivesse dando um beijo, dando um pouco de si e, assim, conseguindo ouvir a crítica caseira.

Quando o seu texto ou poema ou seja qual for o gênero escolhido estiver pronto, um livro já montado, seja exigente na hora de publicá-lo.
Seja exigente na mesma proporção que você se exigiu ao fazê-lo.

Saiba ouvir os elogios como um aditivo, uma motivação, sem nunca esquecer que o elogio é para o que já está escrito. O que virá vai depender do foco que você continuar a manter. Escrever será sempre um desafio para consigo próprio, a cada texto novo.
Entre no desafio, entre na vida. (26/04/2009)

segunda-feira, 20 de abril de 2009

A OFICINA DO ESCRITOR

Depois de quarenta anos lutando com palavras (a luta menos vã) dá para afirmar: escrever é um ajuste de contas com a verdade que ficou oculta e ameaçava não ser descoberta nunca mais. Uma isca para pescarmos a emoção que ameaçava ficar trancafiada porque sem ter uma voz que a traduzisse.

A literatura é essa voz forte o suficiente, expressiva o suficiente para dizer o tamanho todo dessa emoção.

E aí, se não escrevermos, trairemos a nós mesmos. Trairemos a todos que poderiam saber de nós o quanto estamos vivos. Trairemos a vida, se não escrevermos.

E se escrevermos, a vida tornar-se-á ainda mais viva, mais bela, mais legítima porque melhor desenhada – em palavras. Os que leem poderão escutar a vida como ela nunca foi escutada antes.

Os que desejam escrever – se desejarem de fato – escreverão. E se hesitarem aqui e ali, um dia ou outro, insistam, briguem consigo mesmos, mas... escrevam!


DEZ MANDAMENTOS PARA ESCREVER O MELHOR QUE FORMOS CAPAZES DE FAZER E, ASSIM, O MELHOR...

1) Leia, leia, leia. Só lendo muito entraremos em sintonia fina com a prosa do mundo, com a poesia do mundo, com as ideias do mundo, com a música verbal, o ritmo sonoro dos animaizinhos que se escondem nos dicionários ou que saltam caoticamente da boca das pessoas, sem um cuidado maior. Lendo, lendo bastante, quando sentarmos para escrever, estaremos tão contaminados de um ruído saudável e rico, de um cinema feito só de palavras mas tão vasto e múltiplo, que na hora de colocarmos nossas ideias no papel, elas naturalmente sairão fortalecidas pelas ideais dos demais, os que publicaram e a quem lemos, e pela forma como eles escreveram, e então nossa forma será mais plena, mais contagiante porque contagiada. Não se pode amar sozinho. Não se pode escrever sem encontrar correspondência nessa fonte viva que é a literatura de todos os tempos. Só mergulhando nela seremos capazes de escrever como escritores de fato, como seres amadurecidos dentro de uma região que é exatamente aquela onde nosso texto deseja habitar.

2) Escreva, escreva, escreva. Escrever não é escrever. Escrever é REescrever. O exercício contínuo da criação nos torna – assim como um ginasta que treina todos os dias – capazes de atingir plenamente o que planejamos criar. Não basta querer, desejar, ou, até mesmo, estar inspirados. É preciso, como um jogador de futebol que treina quase diariamente, ficar em forma para que nossa vocação e nosso dom encontrem seu ritmo perfeito, adequado, suficiente. Primeiro eu faço um copião, quase – desculpem a palavra – um vômito. Depois eu viro leitor de mim mesmo, mas um leitor o mais distanciado possível, e transformo – numa segunda redação – o que foi uma enxurrada num curso d’água melhor dirigido, e afinado. Mas essa primeira revisão e segunda escritura (ou REescritura) é apenas o segundo passo de, digamos, uns cinco.

3) Deixe o texto dormir. O texto, como o ser humano, se não dorme fica perturbado, imperfeito, precário, doente. O texto precisa de tempo, e depois de um certo tempo, pode ser encarado por seu autor sem as ilusões com que seria encarado na primeira redação, quando o autor ainda está um tanto cego, impelido pelo primeiro empurrão que é a própria ideia ou necessidade de escrevê-lo, ideia quase nunca clara e, sobretudo, em termos de acabamento, nebulosa, com altos e baixos. Depois de dormir o suficiente, o texto se mostra tal como é, e quem o escreveu já consegue um distanciamento maior, melhor, e não se sente tão comprometido assim ao ponto de ter dificuldades de passar-lhe a faca! Nesta hora, passa mesmo. Corta o que está demais. Completa o que está de menos. É a terceira escritura ou a segunda REescritura. Poderão haver mais uma ou duas, nunca se sabe.

4) Mostrar a quem sabe, a quem deseja e costuma ler. Com todo o respeito aos amores e aos amigos e aos familiares, mostre o que você produz em literatura a quem conhece literatura. A outros escritores, críticos, a gente pouco comprometida afetivamente com você e que por isso mesmo saberá lê-lo sem enfrentar dificuldades na hora de apontar alguma insuficiência no seu texto. Gente diante da qual você pode ficar absolutamente confiante quando receber um elogio, porque será um, digamos assim, “elogio a frio”, isto é, ditado tão-somente pelo reconhecimento do seu talento, da qualidade do seu texto. Aliás, o elogio terá sido feito ao que você escreveu, não a você. Você pode ser amado e escrever muito mal. Isso é um perigo. Você pode escrever muito bem e não ser amado, o que é uma desgraça. Convém não confundir as duas condições. Seja amado pelo que é como pessoa (pelas pessoas que o amarem, algo fora da literatura) e seja criticado pelas pessoas vocacionadas para lê-lo e analisarem o que você faz, sem cometerem o equívoco de dizer que você é um gênio só porque é simpático ou dizerem que é um medíocre só porque você não dá bola pra elas. Seu texto tem vida independente de você e é assim que deve ser julgado. Portanto, por pessoas independentes das suas relações. Ou, no mínimo, mesmo sendo das suas relações, com a independência necessária (neste caso, o que não é fácil de encontrar).

5) Saiba receber uma crítica. Ou melhor, vibre. Diz o “Eclesiastes”, “Vaidade, tudo é vaidade.” Quem legitimamente deseja escrever, imagino eu, deseja escrever bem, fazer o melhor (o que vale para todas as áreas). Ora, se queremos o melhor, não queremos cometer erros, realizar obras frágeis, imperfeitas. Assim, todo senão, toda crítica que nos alerta das nossas limitações, que nos avisa que o que fizemos não está bem, puxa!, é uma bênção. É preciso ter uma qualidade humana admirável – a da autocrítica – para estarmos preparados para receber a verdadeira crítica, aquela que não nos leva para compadres e que têm a honestidade de nos acordar, avisando que as coisas não correram bem dentro do projeto ao qual nos propusemos. É preciso vencer a barreira da vaidade, do orgulho, para só aí compreender de fato o que esta crítica diz e então enxergarmos com clareza as deficiências do que eventualmente cometemos para que não venhamos a repeti-las no futuro e para que consigamos salvar o projeto defeituoso, aperfeiçoando-o a partir dessa crítica aparentemente nada amiga, porém, na verdade, esta sim, crítica amiga, porque produtiva, útil, não enganadora.

6) Desconfie dos elogios. Ou melhor, preocupe-se. Conheço mais injustiças a favor que injustiças contra. Ou seja, gente que não escreve nada mas que, por ter boas relações políticas, acaba sendo “engolida” como se engole sapos. Medíocres considerados existem milhares. Gênios incompreendidos, uma dúzia, se tanto. É preciso ter a força e a coragem de dispensar os elogios cujo único objetivo é manter a “casa em ordem”, ou seja, visando apenas os interesses da boa convivência (que “boa convivência” é essa se ela só esconde a verdade?). Eu aprendi, desde cedo, que a pessoa que me dava um tapinha nas costas e dizia “Paulo, está uma maravilha” não tinha nada para me ensinar e, na verdade, era inconfiável. E que a pessoa que me fazia uma cara de preocupada, ou constrangida, e me comentava, “Olha, Paulo, bem, quer dizer, sabe?, isto que escreveste, até que começa bem, mas, lá pelo meio, eu acho que tu te perdes um pouco, e tem muita informação sobrando, desnecessária, e tu deves centrar o foco da tua narrativa no conflito central das personagens, e não ficar dando tua opinião sobre as coisas” etc., a pessoa que me mostrava que eu tinha uma pedra no sapato, esta estava me fazendo um enorme favor. Melhor ainda, estava me salvando: fazendo com que eu ganhava anos de vida, economizando um tempo incalculável que eu perderia em enganos se ela ficasse, por educação, só me enrolando, dizendo que estava bom e pronto. Se safando socialmente em nome da camaradagem enquanto eu continuaria, enganado, cometendo os mesmos e velhos erros. O elogio é terrível. Até mesmo quando merecido, ele só não é dispensável (afinal, é merecido), mas deve logo, logo ser deixado para lá. Porque se o escritor concentrar-se demais no elogio recebido, grande é a chance de ele vir a relaxar, descuidar de seu processo criativo. Toda criação geralmente brota de desafios e enigmas. E quem se deita na rede dos elogios recebidos, não se sente desafiada e nem enxerga enigma algum a sua frente, só certezas. E de certezas não se constrói nada além do que todos nós já conhecemos. Perde-se a capacidade para abrir novos caminhos e arriscar. E então viramos escritores comuns, previsíveis, desinteressantes. Movidos só a elogios que buscamos satisfazer e não à saudável exigência de nos superarmos a cada novo livro. É essa superação (nascida sempre da autocrítica) que garantirá a cada novo livro um novo – e grande – passo. Ou seja: apenas a insatisfação é capaz de semear o que têm chance de satisfazer de fato.

7) Escolha um gênero. E fique nele. Dificilmente um único escritor é um bom contista, um bom poeta, um bom romancista, um bom cronista e um bom ensaísta. Isso até existe, mas são exceções, tão raras, que entre 500 nomes que facilmente lembraremos de gente que acertou num único gênero encontraremos somente dois ou três nomes que acertaram em mais de um. Até dois gêneros pode ser, mas gêneros, digamos assim, irmãos. Como prosa de ficção e crônica, vide Luis Fernando Veríssimo. Ou o argentino Julio Cortázar, em narrativa longa (seu romance O JOGO DA AMARELINHA, por exemplo) e os contos, pelos quais ele é mais conhecido (AS ARMAS SECRETAS, OCTAEDRO e mais uns dez títulos). Exceções. A regra é Drummond: poeta, mesmo que tenha escrito um livro de contos e uma meia dúzia de livros de crônicas. Erico Verissimo é romancista, mesmo que tenha escrito livros de viagens, de contos, de memória. Na verdade, muitos autores aventuram-se em mais de um gênero, mas acertam, plenamente, em só um. É normal. Todos nós, afinal, temos uma dicção, um ritmo, um olhar sobre o mundo, os homens, as coisas, a vida. Essa ótica é uma das definições de gênero. Erico Verissimo tinha fôlego de romancista, e seu fôlego contaminava sua imaginação, que convocava várias personagens e várias situações só cabíveis numa narrativa longa, como o romance, nunca como o conto. Uma vez eleito qual o gênero para o qual você se sente vocacionado, aconselho a que leia os melhores autores desse gênero, para que você fique na freqüência certa do gênero que escolheu. Quando dedicar-se a praticá-lo, vai já estar familiarizado com os desafios naturais do gênero que desejava desenvolver. E poderá vencer seus desafios com mais facilidade. Como no futebol, goleiro é goleiro, centroavante é centroavante, na literatura, romancista é romancista, poeta é poeta, autor de literatura infanto-juvenil é autor de literatura infanto-juvenil. Quem não conhece Ziraldo? Quem não conhece O MENINO MALUQUINHO, FLICTS, ABZ? Certo. Mas sabiam que ele escreveu um romance para adultos? Deu tão errado que ninguém lembra nem o título do livro. Nem eu.

8. Publicar mal é pior que ficar inédito. Uma vez escrito seu livro, da melhor forma e com opiniões confiáveis, é hora de publicar. E aqui entra uma revelação que poucos sabem. Publicar bem é tão difícil quanto escrever bem. E publicar por publicar é publicar mal. Nesse caso, melhor ficar inédito. Seu livro ainda tem chance em concursos literários para inéditos e continua a ter chance com uma boa editora, vá lá se saber. Publicar bem é simples, embora complicado. TEM DE SER somente com as boas editoras, que são RARAS, repito, RARAS no Brasil, umas oito ou dez, não mais que isso, entre mais de 300 editoras associadas na Câmara Brasileira do Livro. Só estas oito ou dez farão: 1) uma edição visualmente atrativa e com um acabamento caprichado e seguro, costurado, com capa plastificada; 2) uma boa distribuição e comercialização, o que é fundamental para seu livro circular e, portanto, ganhar visibilidade; 3) uma boa divulgação junto à mídia, proporcionando chances de você ser comentado nos espaços culturais; 4) promoções em Departamentos de Marketing (as boas editoras, RARAS, repito, têm departamentos de marketings). 90% das editoras nunca tiveram, não têm nem terão isso. No Rio Grande do Sul só existem duas editoras que se pode chamar de profissionais. Uma publica literatura, outra, só livros técnicos. Todas as outras estão em Rio e São Paulo. Nenhum outro estado possui uma editora decente.

9) Antes de publicar, teste seu livro em concursos literários. Os concursos literários são a melhor vitrine que existe para o autor ainda não consagrado. Mas existe um importante cuidado que devemos tomar: o mesmo da crítica do compadrismo e o da crítica para valer vale para os concursos. Só vale a pena participar de concursos sérios. Poucos são. A maioria dos concursos são caça-níqueis, cobram inscrição (nunca participe de um concurso que lhe cobre inscrição) e dão de prêmio apenas diplomas, troféus ou publicação numa coletânea com mais uma dúzia de gente que nada tem a ver com a literatura que você faz. Concurso sério SEMPRE tem dotação orçamentária para pagar um prêmio ao vencedor, e isto já é um atestado de seriedade, de acerto em dar a devida valorização ao ganhador. No Rio Grande do Sul, prêmio sério é o Josué Guimarães, da Jornada Nacional de Passo Fundo, por exemplo. No Brasil, o Prêmio Luiz Vilela de Contos, o Ignácio Loyola Brandão, de Araraquara, em São Paulo. Estes todos para contos isolados. Já o Prêmio Minas de Cultura, e o Prêmio Nacional de Ficção da Bahia são para livros inéditos adultos. Para infanto-juvenil, o Barco a Vapor, das edições SM. E ainda tem o Casa de las Américas, em Cuba. A cada ano mudando de gênero (conto, romance, infanto-juvenil, ensaio). Para livros publicados, o Jabuti, o Portugal Telecom, o Cidade de São Paulo, o Biblioteca Nacional e o da Academia Brasileira de Letras. Nos prêmios para livros inéditos, você beliscando um desses, já terá a porta aberta de alguma editora. Os editores consideram um prêmio desses que citei um aval mais que suficiente para eles publicarem você. Vale a pena tentar, não é?

10) Não ser premiado não significa nada. Insista! Conheço maus livros que ganharam importantes prêmios (às vezes a comissão julgadora é muito heterogênea e não chega a acordo algum nos seus votos, levando a um resultado imprevisto) e conheço ótimos autores que concorreram a, digamos, dez prêmios, não ganharam nenhum, e depois de publicados caíram nas graças da crítica. Portanto, ganhar um prêmio é ótimo, ajuda na sua carreira, mas não ganhar não significa que seu trabalho não tenha valor. (20/04/2009)

quinta-feira, 16 de abril de 2009

O MORTO QUE NÃO ENCONTRAVA O CÉU


Pessoal, taí a carinha do meu novo livro, já à disposição dos interessados. A seguir, informações sobre o moço.

O morto que não encontrava o céu
de Paulo Bentancur
WS Editor
Série Infanto-Juvenil – 40 p. – 16 x 23 cm
ISBN 978-85-7599-099-5
R$ 16,00
Faixa etária recomendável: 9-12 anos


Fim de semana. Sábado e domingo com ótimas chances de dar em aventura. Felipe, um menino pra lá de curioso, sai a caminhar pelo bairro, o seu mundo particular e, também, o mundo de tanta gente que mora por ali ou não mora, mas costuma passar pelo lugar. Felipe gosta de um bom papo, não resiste a investigar cada detalhe da realidade. Mas... O que é a realidade? Ora, aquele cara que agora mesmo vem ali! Quem? Aquele sujeito! Rosto estranho. Modos estranhos. E Felipe, sem dar-se conta, foi parar perto demais do cemitério.

Diante de Felipe surge um homem muito difícil de ser descrito. E que busca uma coisa que ninguém busca. Pelo menos ninguém que até aquele dia Felipe tenha conhecido.

História de terror, com todos os sustos imagináveis e inimagináveis. E não bastasse o terror, tem o humor, muito humor. No mínimo para a gente rir de nervoso. Aquele encontro muda a vida de Felipe. Muda para sempre. Ele passa do susto inicial a sustos maiores. Até o susto derradeiro: não ter certeza se está... vivo!

Pedidos pelo fone/fax: 0 xx 51 3029 7018 / 7028 / 7038
E-mail: wseditor@wseditor.com.br
Home-page: http://www.wseditor.com.br
Rua Bernardo Pires, 492 – 90620-010 - Porto Alegre - RS


Era isso, por enquanto. A partir deste livro, muita coisa vem por aí. Espero que nada parecido com o que aconteceu a Felipe... (16/04/2009)

TAÍ O NOVO LIVRO

Taí o novo livro, O Morto que não Encontrava o Céu, infanto-juvenil, indicado para a faixa entre 9 e 12 anos. WS Editor, do inquieto e criativo Walmor Santos.

E O TREM ANDA

Bem, uma hora o trem que andar. Os bois desatolarem a carroça. O motor do carro pegar. O fôlego voltar. A roda-viva da vida girar. Uma hora tem. E vem.

Nos dias 22, 23 e 24 de abril estarei em Santa Rosa, dando a minha oficina Mistérios da Criação Literária, isto é, passar umas dicas interessantes para quem deseja ter uma redação mais criativa, mais fiel à sua própria voz, além de visitar quatro escolas e conversar com a gurizada sobre esse bicho estranho: o escritor. Sobre essa coisa maravilhosa que ele é capaz de fazer: livros. Então tomo o trem. Ajeito-me na carroça. Seguro o volante. Solto o corpo. E vou, vou, vou. Voo. (16/04/2009)

sábado, 4 de abril de 2009

É HOJE!


Este texto é para Hermes Marengo de Ávila, o colorado mais sério que conheci, para Gilberto Buchmann e Jorge Ritter, os mais espirituosos, para Luis Fernando Verissimo, o mais inspirado. E para o espírito de meu pai, e para milhões de pessoas.



Conheci o Inter quando, vindo de Livramento, cheguei em Porto Alegre, em 1967. Eu tinha dez anos, idade em que poucas escolhas definitivas se fazem na vida. Talvez só uma seja possível fazer: a do time do coração da gente. E eu fiz.

Dos grandes clubes da capital, o que atravessava boa fase era o Grêmio. Em 1967 ele era hexacampeão gaúcho e ainda ganharia o campeonato seguinte, sagrando-se hepta, na maior sequência até então já vista por aqui. No imediatismo infantil, eu via colegas meus se agarrando naquela miragem: os títulos do tradicional adversário do Inter que, ao que parece, eu sabia que eram só uma fase. Quando se é criança não existe esse conceito de “fase”. O agora é, sempre, a eternidade. Mas era cedo demais para eu sofrer com o triunfo transitório tricolor.

No fundo, tinha tudo para escolher o rival, a não ser o nome: Grêmio. Eu não entendia esse nome. Eu não gostei desse nome: Grêmio. Eu já me embriagava com as palavras, já vivia a vida também a partir delas. Grêmio parecia coisa de preguiçoso. Afinal, eu raciocinava – na minha maturidade dos dez anos, suficiente para tanto –, um clube é uma agremiação, um grêmio. O Inter é (perdão, clube amado, com quem casei há 41 anos) um grêmio que tem nome, e que nome: In-ter-na-cio-nal. O Grêmio era um grêmio que simplesmente abdicara de ser batizado, como se só isso bastasse, chamar-se pelo gênero, sem identidade. Para mim, animal da palavra – e do futebol – não era suficiente. Mais, era imperdoável.

Quem acompanha futebol sabe tudo o que aconteceu depois. O Internacional respondeu à sequência de títulos regionais do Grêmio com a maior sequência até hoje registrada nos grandes centros de futebol do País: foi octacampeão, de 1969 (eu estava há dois anos esperando para brandir minha primeira resposta) a 1976. Foi o primeiro time gaúcho a ganhar um campeonato nacional. Aliás, a ganhar os três primeiros. O único até hoje, entre os times do Brasil, a ganhar um campeonato inteiro sem perder uma única partida (em 1979). Nos anos 80 e 90 o Grêmio passou por outra fase na qual aprendi a dor dos amantes. Meu Inter, nosso Inter (o time me jogava no mundo, me tornava povo além dessa abstração do conceito, estranhos com a camiseta vermelha falando comigo na rua ao me identificarem colorado), o time de centenas de milhares de pessoas em minha cidade – o Inter me adotou antes que Porto Alegre me adotasse: levei vinte anos para começar a gostar daqui –, de milhões no meu estado, esse Inter amargava a ascensão do rival e – como nesse tipo de pódio só tem lugar para um – crescia à sombra para ver a luz dos fogos de artifício da vitória, nada ilusórios. E a luz veio. E como veio, a partir da entrada do século novo.

Em 2006, com a Libertadores e o Mundial Interclubes. Em 2007 com a Recopa. Em 2008 com a Sulamericana. Em 2009, sem nem fazer pausa para comemorar (afinal, amanhã tem Grenal, não menos que isso!), realizando a melhor campanha em estaduais de todos os grandes clubes brasileiros, invicto ainda já à beira de uma quarta-de-final e com o maior ataque e a maior goleada (vindo, aliás, da maior goleada registrada em finais da era moderna, os 8 x 1 contra o Juventude em 2008). É uma “fase”? Pode ser, mas nem por isso deixará de empurrar a história do clube (com nome!) para uma biografia com passagens eternas. E isso faz o menino em mim dar um sorriso aberto.

E, talvez, a coisa mais séria, mais impressionante, mais reveladora. O Inter foi a ponte entre eu e meu pai, o começo, o selo e a história da nossa amizade. O Inter nos pôs juntos para vibrar e para praguejar. E não lembro de nenhuma outro tipo de situação na vida no qual tão repetidamente ficamos lado a lado: ouvido colado no ar, escutando no rádio os 90 minutos que nos levariam da esperança a todas as soluções. Bastava uma vitória.

Isso o Inter tem me dado mais que quaisquer outras áreas do que chamamos vida e que o futebol tão bem compreende e tão bem responde às suas absurdas exigências. Na transcendência de amar um time e ser correspondido por ele, quem torce sabe que no dia em que seu clube completa cem anos de vida, alguém muito importante da família está fazendo aniversário. Na verdade, a família inteira.

Bem, só os parentes colorados. E eles são muitos, ainda bem.

Hoje é o meu dia, mais que o 20 de agosto, em que nasci. O 20 de agosto foi contingência, o dia de hoje foi escolha. (04/04/2009)

domingo, 29 de março de 2009

RECRIAR-SE

O ser é tão-somente tema da filosofia. Poucos são, raros mesmo. E, no entanto, quem é não basta sê-lo. É fundamental – para sobreviver e, assim, ser – a representação do ser. E é aí que o Carnaval começa. Carnaval com quarta-feira de cinzas. Festa terminada em tragédia.

Sendo, seria o auge se o mundo fosse apenas espaço para a manifestação e expansão desse ser: eu (você). Mas o mundo é um espaço caro, um outdoor valendo os olhos da cara (e quem enxerga, isto é, tem o mergulho quase suicida de reconhecer as estremeções da vida, a tensa comoção diária da vida, as traições repetidas à vida que produzem a única “vida” admitida por quase todos, quem enxerga a esse ponto não chega a outdoor nenhum). Sem outdoor – e, claro, isto é só uma metáfora, mas uma metáfora próxima demais da realidade –, vamos sumindo, sumindo, até desaparecer por completo.

Cuidado. A máxima do futebol nunca foi tão válida. “Futebol é momento.” Pois arte – minha frágil moeda de troca – é momento. E passado o momento, a obra-de-arte realizada, o projeto conquistado, a ação cultural efetiva e efetivada, tudo isso tendo chegado a seu termo, sua conclusão, pipocam os reflexos, a visibilidade temporária semeia e acena com frutos logo ali. É regra que eles demorem. Não espere. Se esperar, terá perdido o momento. E a não ser que você tire da manga outra obra-de-arte, outro projeto, sua imagem se dispersará, “polvo de estrellas”.

Então só vejo saída – todas elas, a emergencial e a saudável saída para um passeio no mundo que pode vê-lo – se apenas você o ver primeiro: o mundo adora fingir-se de distraído, de não vê-lo até mesmo sem fingir, viciado em cobrar – repito – os olhos da cara para que você realize uma trajetória “livremente” em seu ágora claustrofóbico pela pressão do preço que lhe cobra. O mundo é um estúdio de televisão, é uma equipe de produção, é um marchand, um empresário, um agente literário, um produtor cultural. Sempre às voltas com a inacreditável demora em lhe dar uma resposta.

Você é quem tem de ter as respostas. Até as resposta de que precisa, além das que precisam. E o mundo carimba ou não, endossa ou não. E se carimba e se endossa e se diz “sim”, não vibre demais. É só um momento, quem sabe isolado e que nada garante para o próximo lance. Se você demorar, ele nem vai lembrar do que veio antes, não saberá dizer um único item da sua biografia. Você, enquanto está vivo, nunca tem biografia. Precisa morrer para darem por concluído o retrato.

E seu retrato (morto já, sem expectativa alguma mais), e nem ele, seu retrato, pode ficar esperando. Alguém da família, um amigo, um fã, um editor (se você foi escritor), precisam carregá-lo para cima e para baixo. O mundo cobra um aluguel exorbitante até dos mortos.
Vivo, então, nem adianta reclamar. É inútil e até injusto que tantos mortos ainda peçam passagem para viverem a vida atrasada que ficou por ser reconhecida, no que realizaram enquanto o mundo gastava os dias com simplesmente ser, sem precisar provar coisa alguma. Ele tem o espaço e o tempo, ele é o dono do que é mais caro. Ou você paga o preço, tornando o que você é num veículo que sirva como moeda de troca constante, ou você pode ser acusado de um estranho assassinato: o do artista que você passou a vida anunciando e que, segundo as leis do mundo – que é impossível chamar de critérios – nunca deu as caras.

Não deu mesmo. Deu obras. Mas quem é que está interessado nelas sem uma lendazinha pessoal a tiracolo?

Você é tímido? Transforme isso em mercadoria, urgente. Ou então esqueça. Recrie-se, refunda-se, refaça-se. Ou simplesmente adormeça e, quando acordar, aceite a suprema resignação de, depois de ter feito tanto, tornar-se espectador dos que além de produzir, produzem-se. (29/03/2009)

domingo, 8 de março de 2009

ESCREVI. E AGORA?

Pois é. O mais difícil foi feito. O incalculável desafio da criação. Você superou traumas, obsessões, obteve a necessária autocrítica para domar as ilusões enganadoras. E chegou, incólume, até o fim do livro com que sonhou um dia. Ele está pronto, e você o escreveu todinho, linha a linha. O que pode querer mais?

E quer! Quer publicá-lo. Por necessidade que outros compartilhem essa experiência indescritível de outra forma que não a do próprio livro que você fez. Essa experiência que tem vários nomes: minha obra, meu alívio, minha superação, meu presente para mim mesmo e, quem sabe para a Literatura, essa senhora caprichosa e exigente. Porém, para isso, é preciso achar a visibilidade certa ao produto do seu esforço e talento. E a visibilidade só virá numa boa edição. Começa assim a segunda etapa, tão misteriosa e desafiadora quanto a primeira. Pois é, publicar BEM é tão complicado quanto escrever bem.

Trabalhei cerca de 20 anos em meia dúzia de editoras, médias e grandes. Sem contar que tenho amigos escritores já publicados generosamente e escritores recusados tantas vezes que até passaram a se perguntar se não escolheram errado a ferramenta para expressar-se. Não escolheram, pode acreditar em mim.

Acontece que publicar BEM (nem perco meu tempo em comentar a decisão de publicar de qualquer jeito, isto é, pagando do bolso e fazendo uma edição artesanal, amadora, destinada, parece, a garantir que o livro NÃO EXISTA: não vejo sentido nisso), publicar BEM, garanto, é uma batalha incessante, repetida, e que começa a cada livro novo que você escreve, mesmo que já tenha publicado vários.

Sério.

O Brasil – sabemos – não é um país de leitores. Logo, não se pode afirmar com muita tranquilidade que exista um mercado livreiro. Não para a literatura nacional.

Óbvio, as exceções fora. Luis Fernando Verissimo, Lya Luft, Rubem Fonseca, João Ubaldo Ribeiro, Paulo Coelho, Mario Prata, que vendem muito bem, jamais enfrentarão esse problema. E mais uns 50 nomes que embora não vendam tão bem assim trazem prestígio à editora porque já possuem uma obra consolidada ou mesmo com poucos livros possuem um trânsito favorável no meio. Como em qualquer área, no mercado editorial também o fato de você ser bem relacionado com os nomes certos, de preferência dentro das editoras, garante aquela boa edição básica.

Todos esses autores mal chegam a 50 nomes, talvez alguns mais, se tanto.

Mas a maciça maioria é de gente que até ganha um prêmio polpudo em dinheiro de alguma instituição séria mas o autor é tão sério que não está aí para brincadeiras. Recluso em seus escritório, faz literatura de primeira porém não tem amiguinhos no meio e depende de que a editora aposte em seu livro. Como não existe mercado e ele, apesar de bom e de recentemente premiado (alías, o diabo é que é “recentemente”), ainda não construiu um público para si. Então, o editor o vê como um risco.

Livro é um produto como qualquer outro. Esta é uma lei inviolável para 90% dos editores, dos excelentes aos médios. Os ruins só publicam se você pagar. E sendo um produto como outro qualquer, deve gerar lucro, caso contrário...

Como gerar lucro se você tem a favor de si apenas o fato de ter escrito excelente literatura? Por acaso este país sabe lá o que é “excelente literatura”? Soubesse disso, e não comprava Paulo Coelho. Aliás, o mundo todo ignora o que seja, a ignorância não é privilégio no Brasil. Apenas somos um pouquinho mais especializados que a maioria.

Enfim, escrito o livro, na hora de procurar um editor decente prepare-se também para tomar tantos cuidados e agir com estratégias decisivas, observar detalhes ínfimos, agir com o rigor extremo, com a mesma obsessão que você teve na hora da criação artística. Publicar um livro numa boa editora é igualmente uma grande arte. Ou, no mínimo, tirar na loteria. (08/09/2009)

sábado, 7 de março de 2009

OUTROS INTÉRPRETES DO BRASIL



Que livros de ficção nacional um estrangeiro deveria ler para entender o Brasil e os brasileiros? Aqui um roteiro básico.


Três maçudos volumes envoltos por uma atraente caixinha (Editora Nova Aguilar, 4.616 páginas, R$ 220,00), organizados e apresentados por Silviano Santiago, mostram-nos como nasceu, cresceu e virou no que virou este país. Uma seleção de títulos onde se pensou gênese, ascensão, crises, choques históricos de uma terra onde parece haver muita cordialidade de fachada em cima de muito drama soterrado. Entretanto, isso seria leitura indispensável, sim, mas dureza de leitura. Problema nosso.
Agora, imagine um estrangeiro, instalado em algumas de nossas capitais, assolada pelas diferenças com que ele se depara. Vai se perguntar em que espécie de lugar, afinal, se meteu.
Tais estudos esclarecem muita coisa, mas não parecem ser o caminho mais adequado – e muito menos o mais prazeroso. Desta forma, é melhor indicar para outro tipo de leitor, ou para nós mesmos, a bela série Intérpretes do Brasil (a da caixinha), constituída pelos vol. 1: O Abolicionismo, de Joaquim Nabuco, Os Sertões, de Euclides da Cunha, A América Latina, de Manuel Bonfim, Populações Meridionais do Brasil, de Oliveira Viana, e Vida e Morte do Bandeirante, de Alcântara Machado; vol. 2: Retrato do Brasil, de Paulo Prado, “Introdução à História da sociedade patriarcal no Brasil” com Casa-Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos, de Gilberto Freyre; vol. 3: “Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil” com Ordem e Progresso, de Gilberto Freyre, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Júnior, e A revolução burguesa no Brasil, de Florestan Fernandes. Guarde esse tesouro na tal caixinha para vasculhá-lo durante meses a fio até que o nosso país percorra as suas veias, leitor, num fluxo natural.

Enquanto isso, socorra aquele viajante que não tem na alma a superfície leve dos turistas e deseja, de fato, entender o que houve aqui, quem habita essas terras, mas entender com o sabor de uma linguagem que lhe acaricie o ouvido e comova seu coração além de inquietar e iluminar sua mente.
É hora de levar a mão àquela inestimável e sempre refeita listinha dos grandes escritores onde repousam as obras que atravessaram o tempo dando voz a quem tinha e a quem não tinha. Se depender da listinha, o viajante vai concluir que caiu num lugar raro, como poucos no mundo. No mínimo, um lugar capaz de produzir grande literatura.


A espinha dorsal de nossa memória

Esse arranjo de um Intérpretes do Brasil ficcional tem que ser “reduzido”. (Não esquecer que nosso amigo viajante não teria fôlego nem vontade de ler uns 50 títulos.) Formado por, digamos, dez nomes, a lista deixará de fora coisas boas (Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis, alguns poetas). O consolo é que, aqui, se tratam de dez grandes nomes. Grandes nomes.

O cortiço, de Aluísio Azevedo (1890). – Primeira década republicana. A vida na periferia do Rio de Janeiro. O embrião do que hoje seria uma favela. Esse romance naturalista fala do dia-a-dia na pobreza extrema disfarçada pelo riso alimentado nos botecos e na inocência do ambiente miserável de quem quer sobreviver a qualquer custo, confundindo essa sobrevivência com vivência. O personagem principal é o próprio povo, no que tem de mais caricato e mais real.

Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911), de Lima Barreto. Espécie de Dom Quixote brasileiro, o protagonista cria planos absurdos para salvar o Brasil. Tenta produzir o ciclo de ouro da agricultura nacional, a que as formigas cortadeiras reduzem a pó. Tenta recuperar a “autêntica” língua nacional, o tupi-gurani, falado pelos índios que aqui moravam, tenta aliar-se às forças do sanguinário Marechal Floriano Peixoto (governo 1891-1894), imaginando estar ajudando a preservar a legitimidade de um poder que irá prendê-lo e executá-lo.

Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos. As personagens agem como animais, e o mais humano talvez seja a cachorra da história. No Nordeste assolado pela seca, o caboclo sem teto, sem comida, sem rumo, com família a quem ama sem nem saber dar nome a esse amor, precisa safar-se e safá-los. Como? A terra e seus donos não são fonte nem ouvido para suas queixas num livro onde a seca reside até na forma como foi escrito.

Terras do Sem Fim (1942), de Jorge Amado. A luta pela terra sob os desmandos dos coronéis, reis no sertão embrutecido. A civilização resume-se a cidades onde a modernização é pífia. O ciclo do cacau é tratado de forma implacável. O livro é sangüíneo, erótico, e se localiza numa região litorânea à mercê do comércio internacional, extirpando as riquezas locais e provocando os donos das regiões cacaueiras a ampliarem suas posses sertão adentro.

O tempo e o vento (1949-1962), de Erico Verissimo. O mais extenso painel ficcional histórico do País. No caso, o da formação e fixação do Rio Grande do Sul. Trilogia dividida em diversas novelas que descreve como um épico a terra fronteiriça eternamente sob disputa, os costumes peculiares na relação com regiões tão distantes do mesmo Brasil, o linguajar contaminado pelo espanhol das fronteiras e um caráter severo do nativo da região, contraído pela permanente tensão dessa disputa (sobretudo na I Parte, O Continente).

Grande sertão: Veredas (1956), de Guimarães Rosa. Aqui há problemas. Como um viajante, pouco familiarizado com o português, poderá entender este romance? E não é apenas porque Rosa deitou e rolou com a linguagem. É pelo livro como um todo, a estrutura, de um parágrafo só, um tijolo. Um jagunço, do centro-oeste de Minas, passando pelo sudoeste da Bahia e atingindo o leste de Goiás, enfrenta as piores feras, as humanas e as sobrenaturais. Há batalhas sangrentas onde um mundo primitivo (República Velha, 1889-1930) mostra sua cara e sua voz. Há à fé demoníaca e imprevisível de uma realidade que aos poucos se “acomoda”, isto é, se aceita. Numa mistura de prosa regional e poética com filosofia minando o espaço da ficção. Ou seja, o bruto pensa, além de sentir.

O coronel e o lobisomem (1964), de José Cândido de Carvalho. A linguagem também exige um pouco. Mas bem menos que no livro anterior. Um coronel da Guarda Nacional, herdeiro de terras no interior do estado do Rio de Janeiro, conta da infância, herança, perdas e recuperações, lutas e disputas de bens contra a canalha como meio social vigente. Sendo ele o narrador, os elementos do fantástico que o escritor elege ganham relevo, inspirados nos causos do meio rural, cuja oralidade destravada e uma riqueza sintática dão ao texto um raro sabor narrativo. O imaginário é de fato popular: aparição de lobisomem, assombrações, sacanagens sem conta do protagonista, um humor quase puro não fosse alimentado pela força de suas ações. A geografia é mais litorânea e a perspectiva do narrador fica entre o absurdo e o gaiato. Parece outro mundo. E é Brasil.

Quarup (1967), de Antonio Callado. O romance político que cobre nossa segunda ditadura, a que veio com o Golpe de 64. Comunistas e reacionários, Igreja dividida entre suas dívidas com o Estado e com o homem enquanto ser livre para servir apenas à fé que escolheu, sendo esta a da generosa doação de sua alma ao bem comum – e o bem comum nunca será servir aos poderosos de plantão. Restauradora crônica da alma brasileira, dentro da qual ainda gritam os fantasmas indígenas, ameaçados da morte até mesmo de sua memória (pois é essa alma que deve ir a inquérito, diz um militar a certa altura do livro). Há tortura, há autodilaceramento, há resistência, e há a grave desconfiança de que o País está se perdendo em si mesmo.

Feliz ano novo (1975), de Rubem Fonseca. Contos numa prosa imperturbável, num naturalismo que às vezes beira a poesia do imenso poder de sugestão que tem o explícito espetáculo do cruel sem o acompanhamento retórico da dor. Fonseca escreve como um psicopata munido de uma erudição capaz de dar os detalhes de sua terrível operação de extermínio, sem a mínima complacência com o leitor e a emoção que causa. É como se sua prosa fosse filtrada por uma espécie de silenciador a abafar o tiro que as histórias deflagram. Tiro certeiro a denunciar a violência urbana, o pesadelo que se vive em pleno dia nas cidades grandes.

A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector. Embora autora consagrada pela via psicológica, foi dela esse emblemático caso do êxodo rural, tratado por tantos outros autores mas não de forma tão tocante e convincente. A vidinha de Macabéa, a heroína, dá o tom que mergulha o leitor na sufocante atmosfera de vazio daquela existência. O beco sem saída do migrante nordestino na cidade grande, caminhando, na sua desafortunada busca por uma ascensão social mínima, para um fim trágico onde o malfadado acaso parece não ter papel algum além de deixar claro que para destinos assim não há solução favorável.

Outros títulos poderiam compor essa lista. Nela, porém, o Brasil já se reflete inteiro num real cuja natureza só é proposta pela ficção que produz.

Talvez não seja só o viajante que precise descobrir isso. (07/03/2009)

AS TRÊS FACES DA PALAVRA

Eu não irei falar de Haroldo de Campos, não porque não queira, mas porque não é preciso, sobretudo porque gente muito mais capacitada que eu na matéria pode falar melhor.
Eu não irei falar do poema concreto, do movimento dos irmãos Campos e o amigo deles, o Décio Pignatari, na década de 50, da guinada radical contra o discurso que inundava e fragilizava, com sua gordura verbal, o poema brasileiro naquele tempo.
Não, eu não irei falar de Galáxias, esse monumento, que me cansa (ante minha frágil prosa) enquanto me encanta e me coa os excessos e as previsibilidades de ritmo.
Eu não irei falar da arte que se desenha com traço – no exercício da plasticidade –, da presença da concretude ainda no mesmo exercício, ou do cotidiano e seus instrumentos aparentemente despretensiosos dando em objetos estéticos que se revelam outra coisa e nos escapam enquanto nos habitam.
Repetidamente surpreso – e daí sempre renovado, o fôlego suplantando o esgotamento anunciado pela falência de formas confortáveis –, eu vivo a experiência diária do verbo que me respira. Dele me nasço e nele ressuscito dos silêncios quando estes representam tão-somente um beco sem saída.

A FALA QUE CALA

Eu falarei da natureza esquiva e generosa, ao mesmo tempo, da palavra que se esconde em si mesma e se exibe além do seu significado ou do seu som. A palavra como desenho, essa me interessa. A palavra como objeto, essa me interessa. A palavra como convivência, na maioria das vezes rio raso no qual molho os pés para atenuar o cansaço da caminhada.
Disso falarei, disso falo agora. Do falar. Do escrever. Do ato quase cego de ir pondo de um ponto em diante uma palavra atrás da outra até que não possa mais, até que chegue, até que pare porque a soma de sons me pede, porque o sentido se dá por satisfeito, porque o cansaço da mão corresponde ao cansaço da mente e nesse turvo esgar de socorro por paz que a alma reclama brota uma espera ou um fim. Sempre por enquanto.
Eu quero falar do que a frase não pode, podendo. Ela não pode ir atropelando enquanto, aleluia!, corre célere pelo espaço antes em branco agora pulverizado por letras que se aliciam em vocábulos que se olham e se separam ou unem como uma operação comum, única, negando e reafirmando o que outros já teriam dito (claro, outra coisa), e essa operação apenas quer pular essa etapa óbvia do recado e inseminar – sem artifício – o óvulo de temperatura branda do branco que aceita sem receio o recreio sério do vocabulário que se enleia em meio aos sinais comuns de uma sintaxe rotineira.
E nem mesmo – ainda que um pouco – o poundemonium de Júlian Rios, em sua larva babélica de combinações que recuso porque o discurso, se se liberta do diálogo ou do narrar ao ouvido preguiçoso, condena-se à repetição de cair sem parar no fosso colossal onde os sons, se cabem todos, se ocultam também. E já não podem ser vistos.
Eu quero não o que sei e nem o que não sei, eu quero o querer de poder fazer com que o verbo reverbere e reverta em mais verbo sem a verve que sofre não de soberba, mas de assoberbamento, eu quero a palavra que cala aquilo que o que fala consente, entregando-se sem luta. Eu quero a lua da pedra que é fruta sem polpa nem casca nem sumo mas pode tudo e fere todos os rumos dos satélites que crêem possuir uma luz que não é sua.
Eu quero o fm do vale onde não florescem rimas, o cimo da montanha onde tamanha é a ausência e esse vazio vaza tanto o pleno quanto o plano onde se desenha a rua. Eu quero não o jogo, menos ainda o jugo, nem o logro, mas logo o oco do colo onde o calor dança com as moléculas de uma forma sem fôrma, o anonimato sem esconderijo, o brilho sem ruído, o ápice discreto, o fértil corroído pela espera de que qualquer nome brote.
E brota, embora não se nota que o inominado sacuda as asas sem desenho, sem ar que as reconheça, sem atmosfera para abraçar um ser em cujas costas elas se seguram.
Três faces desenham essa palavra. Três caras a anunciam. Três bocas falam por ela.
A que escorre por fora do que é dito por todos, a boca que sugere com o molho que muda o sabor da carne. A que finge acompanhar mas sobrevoa a procissão como um anjo negro ou dourado capaz de ser visto somente quando o autor estiver morto. Esta é uma face.
E a segunda. A que não escorre, mas estanca, e fica, cristal, fixa e pétrea, audível apenas por aquele que aproxima o ouvido (ou o olho) do vocábulo ou um conjunto deles imerso num caldo ralo de palavras saturadas em frases presas fáceis da fome apressada dos que não escrevem como quem descobre nem descortina. Isto é, a face/boca da palavra que se nega a ser o que necessitam, recusa de cura, suicídio verbal diante dos mimos fúteis.
E, também – a terceira –, a face severa da palavra lamentosa de sua própria condição, que se arrasta sem afastar-se da via crucis que lhe é destinada, que não foge um só instante (nem letra) do seu desenho exato de ser mirrado e exato, defunto sólido e desolado.
Escolho, assim, o que representa meu escolho, sobra, resíduo tornado fortuna, exuberância de errar sendo livre por não lhe pertencer nem a fortuna de ser lido, que dirá compreendido. Reescrever é o que cabe, a busca pelo aparente brusco susto que é topar com uma sílaba onde não caibo, nunca palavras nas quais a história se crê redonda como um círculo sem circo, nunca ignorando a música que fala desde o vento antes de mim e nem o desenho que ainda no átomo tirou fotos primeiro, quando nem meu trisavô supunha um soneto, seres, que dirá netos, e isso porque o que em regra é dito é sempre um mundo com palavras de uma só cara, palavras baratas, um mundo que as usa com um fim que o salva enquanto ele as mata. (07/03/2009)

terça-feira, 3 de março de 2009

PEQUENO DEBATE SOBRE FACILIDADES DO JULGAMENTO MORAL

J. R.:

Pois foste chorar pitangas no blog através de um personagem aí, clássico, o "cara", e te deram de relho, que tal?

Eu ri à socapa, naturalmente.


BLOGUEIRO:

Pois ou eu errei na medida ou os caras não sabem ler. Negócio seguinte: eu não quis mostrar um pobre-coitado do qual todos devessem apiedar-se, nada disso. Eu quis mostrar que quando o cara tá fodido a galera INSISTE em ficar se fresqueando, mandando baboseira, e, o pior!, fazendo julgamento moral de por que o cara chegou àquele ponto. É como se eu, no post, tentasse dizer (inutilmente, vejo agora): "deixem o pobre homem em paz!" Se não for pra ajudar (eu não estava pedindo penico), larguem de mão o sujeito, deixem-no no silêncio do buraco onde se enterrou que uma hora ele sai de lá. Mas os MESMOS "amigos" de quem eu falava (sem citar nomes) continuaram com a mesma postura, que, aliás, é a atual, consagrada: a apologia dos fortes. Tipo: tem que aguentar porrada de instituição financeira (as mais demolidoras) e ficar sorrindo, ainda por cima, e não dizer nada. E quando algum espertalhão vier com gracinha, o cara, atolado, nem pode chiar com a inconveniência deles. Ah, não!...


J. R.:

Depois o "cara", no post seguinte, resolveu pentear o cabelo e seguir em frente. Boa! É isso, mais ou menos como o goleiro que busca a bola no fundo da rede e dá um bicão pro meio do campo. Pra recomeçar.


BLOGUEIRO:

É. Acho que me recuperei no post seguinte.


J. R.:

Pois pra variar hoje estou com a sensação de que não estou rendendo.
Às vezes invejo os manivelas em geral, que descarregam, ou carregam, alguma coisa e era isso. Tá feito, até a próxima.


BLOGUEIRO:

No mundo atual ("mundo"? NÃO ESTOU CHORANDO AS PITANGAS DERRAMADAS), o cara NUNCA ESTÁ RENDENDO. Só serve se produzir desumanamente. Voltamos ao tempo da febre do ouro no Alaska. E estamos lascados.


J. R.:

Pois eu acho que tu não andas rendendo, velho, esse é o problema. As pessoas têm toda a razão de grudar um chiclete no teu cabelo quando te vêem.


BLOGUEIRO:

E elas por acaso andam rendendo? E se não, achas que eu ia perder meu tempo grudando chiclete no cabelo delas? Sou tão santo assim?! Não, apenas a civilização me ensinou o mínimo: a fazer silêncio diante das derrotas contingentes (mesmo continuadas) e a não exagerar os méritos dos vencedores (vitória que a História tem mostrado como resultado, digamos, não muito legítimo...). (03/03/2009)

domingo, 1 de março de 2009

RECOMEÇAR DO FIM

A vida tem seus truques, minúsculos milagres que fazem da morte repetida, contida nas contingentes misérias, um engano provisório. Não foi engano, talvez: morreu-se ali. Mas foi provisório, de fato, e a vida – que só cessará sobre o planeta sabe-se lá quando – dá um jeito de reacomodar os destroços.

O vitimado não os esquecerá, é certo. Mas bastam alguns acenos ou o evento certo, aquele acontecimento que faz diferença (e quando menos esperamos por ele, ele vem), e pronto, o ser que se ressentia disposto quase à desistência definitiva percebe que está se precipitando. Que os amigos são tão impotentes como ele mas também tão capazes como ele. E se são amigos, nada como a ponte da palavra para que uns passem para a ilha onde o outro está.

O Apocalipse, palavra-de-ordem nas atuais igrejas políticas, convence mais aos crédulos que aos céticos. E se este homem, descrente, cansou-se do baile de máscaras (não intencional) enquanto o ritmo do mundo lhe soava como um terremoto, é hora de lembrá-lo que a Literatura, que tanta vida lhe tem dado, é feita de reescritura mais que de escritura, e de revisões e de cortes, aparas, acréscimos, ajustes. Isso serve perfeitamente à vida, sem cujas medidas seria apenas o tédio dos que nasceram em berço de ouro, ou o fim antecipado dos desistentes de tudo por pura preguiça, palavra vergonhosa cujo sinônimo mais nobre seria niilismo. “Vai lá, rapaz!”, ele diz a si mesmo. Ajeita o cabelo e vai. Tem chance de dar certo. (01/03/2009)

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

SEM GRANA E SEM GRAÇA

O cara tava devendo para quatro bancos, cinco financeiras. SPC, Serasa, Banco Central. Perdera a fome há dois meses.
O cara tava com quatro meses da escola da filha atrasados. Já havia começado o novo ano e nem a rematrícula fora paga. E era a primeira escola na qual ela se adaptara. O cara não tinha vontade de ver filmes, de escutar música, de parar à janela e olhar a rua lá fora como um ser qualquer.
Sentia-se perseguido, com a pressão – cada vez mais forte – de quem está sendo perseguido, será preso, surrado, algo assim.
Humilhado já estava sendo, há muitos meses. Uma humilhação que ele sentia sobretudo quando via, na escola da filha, a abissal diferença entre o que ela recebia na comparação ao que os colegas recebiam. Tirá-la de lá para pô-la numa pior só porque era mais barato? A obrigação de dar-lhe a melhor educação passava pela consciência em casa mas não evitava o desfecho de proporcionar-lhe que estudasse numa escola de ponta. Essa conta ele TINHA de pagar.
O cara não tinha emprego, e os empregos possíveis pagavam salários que nem chegavam a fazer frente aos juros da dívida que ele contraíra como um tipo de herpes genital. E herpes, como acúmulos de dívidas, não têm cura.
Havia amigos. Havia amigas. Havia admiradores e admiradoras.
Estes lhe diziam: “Pô, cara, vê se te ajeita!” Como se bastasse a consciência e a vontade e a decisão de ajeitar-se.
A cada vez que assaltavam um banco sem ferir ninguém, ele sorria. E pensava: “os verdadeiros assaltantes foram assaltados.”
O cara devia três meses de aluguel e a imobiliária entregara a situação a advogados que ameaçavam entrar com uma ação de despejo em uma semana se ele não conseguisse cumprir com um acordo que o oneraria, além do aluguel no mês seguinte, mais 50% do valor como um acerto durante oito meses pelos três atrasados.
Uma amiga disse-lhe: “entre amigos, dívidas não são nada. O pior são dúvidas.” Perfeito, filosoficamente – mas um conceito tão nobre só brota em quem não afundou no buraco que o cara estava.
Até o pescoço.
Mandavam-lhe fotinhos de um mundo perfeito, colorido, com fundo melodioso e açucarado. Ele assistia aquilo de olho no relógio do computador e sentindo a sudorese nas mãos, prontas a continuar, no teclado, o trabalho que entregue em tempo recorde pagaria uma das três contas da semana.
Mandavam-lhe a alegria estampada num universo de implacável desarmonia como se tudo estivesse bem – e estava, entre os que lhe mandavam isso –, e a intenção era boa, mas o diagnosticado perdera definitivamente o faro para flores e o que o esperava, mais tarde, eram os repetidos terrores noturnos.
Surpreendia, ironicamente, que ainda o notassem.
Na verdade, não o notavam.
Notavam o que ele fora, talvez, o que ele poderia talvez ser, a idéia fantasiosa que uma pessoa – mesmo destruída pela doença mortal da dívida – passa aos demais porque a distância protege o horror que a engole e a morte que a carrega para longe da vida dos que vivem e não notam o que a cada dia vai desaparecendo.
Era o que o consolava.
“Um dia eu desapareço definitivamente.”
Mas isso ia demorar. O diabo é que ia demorar, e como! Ele estava na meia-idade e sua expectativa de vida era de mais um quarto de século. Teria de aturar o discurso moralista dos exemplares homens que serviam de referência para seu círculo, e também da generosa (e inútil) esperança dos que ainda insistiam em incluí-lo no mesmo círculo quando ele já não dispunha nem mesmo das pegadas que sua trajetória nos últimos 30 anos deixaram em sua vida e que os mais recentes destroços apagaram a tal ponto que nem ele tinha como localizar os lugares certos, as ações adequadas, exemplares, de sua própria autoria, autoria que agora ele era o primeiro a negar – pela impossibilidade de repeti-la.
Corria o risco de ter de morar de favor. De levar a filha para uma escola pública. De completar três anos sem comprar um livro, um CD, de não gastar R$ 10,00 num presente para ninguém, independente da importância que tivesse.
Falido, tornara-se um pesteado que só se aproximaria de alguém para pedir socorro ou um empréstimo pessoal. Empréstimo que não pagaria tão cedo. Um grande contingente, percebendo isso, afastava-se como quem se afasta de alguém com hanseníase.
A sua biografia, diziam alguns, estava sendo rasgada por ele.
Enquanto isso, a cada dois, três meses, ele rasgava um carnê, enfim pago. Mas ainda havia muitos carnês para rasgar.
E também admiradoras que falavam em “saudade”, que o elogiavam (manifestações que, claro, lhe faziam bem), e que só aumentavam a dívida – afinal, isso não era um consolo, era quase um deboche.
Num ponto ele concordava. Também nele a saudade era grande. A de muitos anos atrás, quando ele não devia e não era objeto do julgamento moral dos que não sabem o que é uma grande queda nem o objeto deslocado da admiração dos que se encantam com o que um homem agonizante foi um dia.
Foi. (27/02/2009)

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

UM SITE QUE VAI ALÉM

Certos sites não basta citar. É preciso mencioná-los mais detidamente. Com nome, endereço, e algumas considerações para os mais apressadinhos que talvez só a indicação de um bom lugar para ser visitado não baste. É o caso do site da escritora – mais especificamente contista e poeta – Cida Sepulveda, campineira na geografia mas com um imaginário que transcende, não pela geografia, mas pela contundência de estilo e cenas que podemos comprovar nos livros de poemas Sangue de Romã (Scortecci, 2004) e Fronteiras (Pontes, 2008), e no de contos Coração marginal (Bertrand Brasil, 2007).


Vá direto, sem escalas, a este destino, onde os fracos não têm vez: www.cidasepulveda.com

Lá você vai encontrar nove entrevistas de arrepiar: com Marcelino Freire (esse boca-suja genial), Fabrício Carpinejar (na rotineira exuberância); Álvaro Alves de Faria (um dos nossos grandes poetas vivos, poeta que se demitiu do Brasil e, fiel à língua, aderiu a Portugal, num gesto desconcertante a deixar leitores e – devia – editores de sobreaviso); José Castello, um raríssimo exemplo de rigor e generosidade aliados à melhor crítica possível e constante no país (uma espécie de leitor ideal); Moacyr Scliar, que, depois de dezenas de entrevistas, dá nesse site um de seus mais completos depoimentos; Gonçalo M. Tavares, o português acima de qualquer classificação, provando que Portugal é prodigioso: além de Saramago e Lobo Antunes, tem Gonçalo; Maurício Melo Jr., o homem-livro do Brasil, um militante da divulgação desse produto bastardo e desses personagens definitivamente marginalizados não fosse a resistência e inventividade de Maurício, a dar visibilidade ao autor nacional até mesmo na televisão; Suzi Sperber, oxigênio na academia, visão crítica aguda e democrática para além dos muros universitários; e, claro, eu, numa entrevistas sem contemplações que Mario Goulart orquestrou e que Cida, com muita coragem e competência, editou. Autor exposto, sem pose ou abrandamentos. Como é do jeito de Cida. A generosidade da coragem e, a partir dela, o atalho até a verdade onde ela nasce com a forma e as idéias mais densas e mais incômodas. O leitor não deseja adormecer. O site de Cida Sepulveda, dando voz a outros autores, além da própria e intensa voz da autora, sacode-nos do disfarçado sono eterno. É ir correndo conferir. E depois retornar bem devagar, saindo desse site pensativos, transformados, transtornados, quase claudicantes.

http://www.cidasepulveda.com/ é Tarantino ou os Irmãos Coen a serviço da literatura, para quem gosta de referências cinematográficas. Para quem quer referências literárias mesmo, os nomes dos convidados dizem tudo, a começar pelo de Cida, a responsável pela saudável carnificina. "Carnificina"?! Acho que exagerei. Reflexo de tanta sensibilidade e talento revelados através de uma força que o ambiente do site propicia, sem espaço para a retórica beletrista. (23/02/2009)

sábado, 21 de fevereiro de 2009

O PREÇO DA AMBIÇÃO

O empresário (palavra que neste caso exigiria um adjetivo mortal, que por decoro declino aqui de utilizá-lo) e ex-deputado Sérgio Maya, 66 anos, responsabilizado pelo desabamento de um condomínio – o Palace II, na Barra da Tijuca, Rio, em 1998 –, com a morte de 8 pessoas e 150 famílias (quantas pessoas?) jogadas ao desabrigo (não é outra forma de morte, sem nenhum exagero retórico aqui?), acaba de falecer, causa: infarto agudo. Isso ocorreu na madrugada de sexta-feira, dia 20, antes que sol raiasse como ainda não raiou para muitas dessas vítimas que esperam há onze anos – data da tragédia do Palace – indenizações que em sua maioria não ocorreram por alegação do sentenciado de que não possuía mais bens – arrestados – para pagar os estragos.

Maya morreu e isso nada representa. De bom, talvez, só o caso de que em Ilhéus, BA, onde se encontrava, não prosseguirá com seus planos de novas construções. Nesse tempo que passou, andou preso apenas alguns meses, foi solto, pagou algumas indenizações, teve bens leiloados (processo que se arrasta até hoje) para fazer frente às reposições de 120 famílias com ganho de causa. O percentual que viu a cor do dinheiro até agora foi ínfimo. O sujeito continuou a agir, inocentado diversas vezes e julgado outras tantas das irregularidades da construção (material de categoria inferior ao anunciado, para começo de conversa).

A saúde acusou o baque, claro. Se a justiça funciona mais ou menos (menos que mais), a do corpo é mais incisiva, e não quer nem saber. Ele carregava na alma esse peso de toneladas que acabaram por fim em derrubá-lo. Se por acaso não foi a consciência culpando-o, foi a própria ambição buscando salvaguardá-lo do que não podia salvá-lo jamais: ele próprio, destinado, pela trajetória, a implodir-se.

O velório é grande. Não de Sérgio Maya, onde palavras como dor, perda, lágrimas etc. nem passam pela cabeça de quem se debruça sobre a notícia, mas o de provavelmente mil pessoas ou mais, atingidas pela construção de um prédio que a Sersan – também com bens leiloados –, empresa que ele dirigia, como uma entidade abstrata perpetrou um dos grandes genocídios do final do século XX no País. Aquele tipo de genocídio que os responsáveis podem chamar de acidente, acaso, tragédia imprevista ou que expressão quiserem. Os únicos que estarão velando o corpo de Sérgio Maya. E, claro, algum familiar, com o mesmo sangue mas, espero, com outra noção de justiça e com uma ambição que não se alimente de vítimas mas das iniciativas responsáveis, cada vez mais raras, quase um milagre.

As vítimas do Palace II nada ganham com essa morte. Mas desconfio que ganham, e muito, prováveis futuras vítimas, uma vez que recentemente foram apontadas irregularidades até mesmo num projeto que Maya havia, duas isquemias depois, apresentado em Ilhéus para um Centro de Convivência para idosos na Praia de Cururupe. Mesmo à sombra da morte (que talvez ele não pressentisse), a ambição suplantava o passado, comprometia o presente e impedia o futuro. Que se foi embora mesmo. (21/02/2009)

domingo, 15 de fevereiro de 2009

TURISMO LITERÁRIO: A CIDADE NA LITERATURA, A LITERATURA NA CIDADE

A ficção enfim chega ao mundo real. Não é verdade. Chegou há muito tempo, nós é que não nos dávamos conta. Assim como percebíamos que o mundo real chegava na ficção, mas, distraídos, acabávamos separando-os e, assim, empobrecendo o mundo real – porque o mundo imaginário, dele resultante, direta ou indiretamente, o recriava, o potencializava, o embelezava, o engrandecia, o enriquecia, o reconhecia.
Aceitando esse obstáculo (nosso olhar viciado) a impedir cidades e seus artistas de se misturarem nas ruas, nas praças, na geografia, enquanto de fato retratavam-se mutuamente, perdemos muito dos escritores, no caso específico da literatura, naquele aspecto de sua obra onde o cenário acaba fatalmente personagem.
Perdemos demais na cidade pela qual circulamos, cegos ao que a literatura dela já mereceu que a cidade mesma trouxesse para fora dos livros o que nos livros não podia ficar escondido, sugerido. E a cidade – em pedra, em bronze, em traços, em logradouros, em feições físicas – concretiza o que um imaginário edificou em palavras mas ali está ao alcance de nossos olhos, mais que miragem: presença táctil.
A literatura é uma via ampla demais para ser descartada na hora de conhecermos um lugar, uma cidade, um país. E na cidade, convém lembrar, a literatura não está apenas nas bibliotecas, nas livrarias, nas editoras, nas academias, nas casas dos escritores – ou nalguma sala onde um leitor concentrado mergulha fundo em um lugar, local, prédio, escada, janela de um último vandar vertiginoso, sítio, espaço, mato, lagoa, mar, vila, estrada.
Porto Alegre, de onde escrevo, não está apenas na Porto Alegre propriamente dita. Às vezes nem está nela mesma, mas em páginas da primeira fase de Erico Verissimo, como em Caminhos cruzados, em A Guerra no Bom Fim e Os Voluntários, de Moacyr Scliar, em Cães da Província, de Luiz Antonio de Assis Brasil. O Rio de Janeiro reside nuns cinqüenta textos de Machado de Assis, ou em O triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto. São Paulo nas Novelas paulistanas, de Antônio de Alcântara Machado, ou no romance-rio Balada da última cidade, de Renato Modernell. Alguns monumentos específicos, como a ponte Rio-Niterói, no conto "A maior ponte do mundo", de Domingos Pellegrini, autor que redesenha o interior do Paraná e suas sagas em Terra vermelha. Leia Miltom Hatoum e Manaus, esse milagre irônico, aparece como jamais se mostraria em Manaus mesmo.
Dá para fazer turismo sem sair de casa. E até mesmo atingir regiões fora do planeta (sem deixar de fazer parte dele), como a Macondo imaginária de Gabriel García Márquez. As sugestões são muitas. Só não cito aqui uma centena porque a dica foi dada e o resto é com vocês, leitores-turistas, capazes de encontrar com facilidade livros-lugares para visitar. (15/02/2009)

sábado, 14 de fevereiro de 2009

UM MILHÃO E MEIO DE LIVROS NA ESTACIÓN MAPOCHO

Há dois anos eu visitava uma feira e um país que me impressionaram. Nada escrevi na época. Faço-o agora, dois anos atrasados, mas o tempo para os textos é benéfico. Quase sempre. Espero que seja este o caso.


Outubro de 2007. Sou convidado para ir a 27ª Feira Internacional do Livro de Santiago, no Chile. Já estive em 50 feiras no interior do Rio Grande do Sul, desde a maior, a da capital, Porto Alegre, com 170 estantes, até uma em Cachoeira do Sul, com nove barracas que o sol tornava umas fornalhas. Já estive em feiras mais nobres, sim, no formato de bienais, como a de São Paulo e do Rio de Janeiro, onde Xuxa e Malu Mader (cujo marido, Toni Belotto, lançava um romance policial) arrastam multidões e só encontram rivais à altura num Pedro Bandeira ou num Paulo Coelho. Já um escritor sério, com rigor no projeto a que se propôs, autor de obra sólida, mexe com as atenções apenas por quinze minutos, meia hora se tanto.
Além do meio do caminho de minha vida, vejo-me então perdido em selva obscura. Chile! Um outro país. Feira internacional. Quem sabe, o papo será outro. Feira de livro é feira de livro. Já vi tantas. Já li sobre tantas. A de Guadalajara, concorrida. A “mais importante”, em Frankfurt, aonde fui em 2006, não vale. É um centro luxuoso de negócios. Desinteressante sobre todos os aspectos, exceto os econômicos.
A 8.000m de altura, com a velocidade média de 750km, o avião que me leva de Porto Alegre a Santiago parece parado no ar. Olho para baixo e vejo o Vale da Lua e, logo, o Deserto do Atacama. Legítimo tabuleiro, desenhado com as manchas regulares e tão liso como um mármore. Dessa distância, o céu sem nuvens, o ar limpo pela luz, o cenário é absolutamente irreal. Sinto piedade das centenas de fotos que vi até então. Estou entrando em outro planeta. O mundo é maior do que eu pensava e em cerca de 2.000km saio de uma paisagem afável para um quadro de Paul Klee pintado em tons de um cobre acinzentado.
Depois a Cordilheira dos Andes. Meia hora de cumes de montanhas que sobrevoamos transversalmente e que parecem desbastadas a canivete; a neve mais se assemelha a uma cal ressecada, pintalgando aqui e ali. Tudo é menos impressionante no sentido de menos majestoso; paradoxalmente, desconcerta – tem a face da geografia de um mundo tirado do computador ou de uma dimensão remota ou futura demais para o nosso presente inoculado por uma topografia modesta.
Descemos em Santiago e a cidade só aparece – suas construções, vias, pessoas ocasionais – no último minuto, como se, ultrapassada a cordilheira, visível de qualquer canto da capital, escondesse o território dos santiaguinos até o momento extremo, quando já perdi todas as referências, menos a da gravidade.
Um taxista, gordo e risonho, que por isso mesmo me distrai e então me assalta em U$ 35.00 até o hotel localizado a 20km do Aeroporto de Santiago, fala bem do Brasil e diz que no futebol a bronca deles é com a Argentina. Claro, é em outras áreas também. Primeiro habitante com quem travo alguma intimidade, percebo, apesar de seu esforço de atenção, o formalismo. (No século XVI, antes da conquista dos espanhóis, parte do Chile era governada pelos Incas, daí a herança dessa postura de uma nobreza quase arrogante.)
Chego no hotel. O cheiro de inseticida impregna tudo. Pergunto o que é. Tão acostumados ao cheiro, não sabem do que, afinal, reclamo. Outro problema: ligação interurbana internacional e a cobrar (preciso ligar para casa) nem pensar. Foi a Cordilheira que lhes deixou as telecomunicações comprometidas ou eles investem mal no setor? Ao contrário do Brasil, onde basta entrarmos em qualquer orelhão (no remoto universo andino a gente encontra um a cada 300 metros, e olhe lá) e ligar para Nova Yorque, Paris, Roma, Freiburg, no Chile no máximo você liga interurbano somente dentro do país. Passo alguns dias lá e vou embora sem saber se existe alguma forma de fazer a tal ligação. A cobrar (chamam de “cobro revertido”: fiquei com a expressão cravada como um trauma), a cobrar, meu caro, nem pensar. Pague (e o peso deles está bem pesado em comparação ao dólar: 2 U$ valem um peso chileno) e aí sim vencerá a Cordilheira e falará com a sua casa.
Da sacada do hotel olho o horizonte em torno. Poucas casas, muitos prédios, cada um com uma solução arquitetônica diferente. A rua tapada de árvores que parecem transplantadas de outra região e ali postas para impedir que eu enxergue qualquer coisa. Só mulheres, vizinhas, esfregando febrilmente os vidros das janelas. E o cheiro de um spray que me recorda as matas brasileiras onde a gente leva preparados para defender-se de mosquitos, borrachudos. E em Santiago não há mosquitos. Meu nariz, definitivamente, não se adaptou.

Santiago está distante 1.500km de Buenos Aires e 3.400km de São Paulo. Apresenta temperaturas máximas de 23º e mínimas de 0º. A luz acobreada do sol revela toda a condensação atmosférica, a poluição concentrada (contra a qual é preciso lutar com sprays que empestam qualquer ambiente e mesmo em lugares abertos, a levar o estrangeiro a espirrar como se sofresse de rinite). No 14o andar de um hotel de luxo, vejo incontáveis edifícios à minha volta. Sempre que observo com atenção um prédio das vizinhanças, há alguém limpando uma vidraça. É como se o vento, que sopra o tempo inteiro, deixasse sua marca nas janelas, não bastasse nas almas quase sisudas, graves, no mínimo formais dos santiaguinos.
As avenidas e ruas são largas, limpas, e desertas. O trânsito com poucos automóveis, ordenado. Raro ocorre uma batida, um atropelamento. Acidentes são mais comuns nas minas de cobre. O índice de desemprego é baixíssimo (3%). A economia é estável há mais de uma década. Pensemos em Brasília. Penaliza-me imaginar uma criança morando aqui. De dentro de um táxi vejo os parques vazios, dois ou três casais caminhando sem pressa. Meia dúzia de jovens conversando. Um cão ali, outra lá. Onde estão, afinal, os seis milhões de habitantes que constituem a população? Estarão quase todos empregados, trabalhando? Não há economia informal, a levá-los às ruas? E as crianças, e os velhos? A maioria dos lares é tão sólida que os habitam famílias capazes de dar o essencial para que seus moradores não necessitem passear?
Ou estarão todos na centenária estação de trens Mapocho – deixou de funcionar em 1987 e foi transformada no Centro Cultural Estación Mapocho –, onde de 23 de outubro a 4 de novembro ocorreu a 27ª Feira Internacional Do Livro de Santiago? (Mapocho é o riacho, mais estreito e menos poluído que o Tietê, que corta toda a cidade.)
A Câmara Chilena do Livro se esmera no evento, elegendo o Brasil como país homenageado (daí o slogan, um tanto previsível, de “O carnaval da cultura”), trazendo 15 escritores, dos mais consagrados e já com laços estreitos com a terra de Pablo Neruda, como Thiago de Mello, Augusto Boal, passando por autores conhecidíssimos como Moacyr Scliar e chegando à novíssima geração: Luiz Ruffatto e seu caleidoscópico registro social de meio século de imigrantes, Bernardo Carvalho e seu jogo infernalmente disfarçado de identidades e protagonismos, Cíntia Moscovich e sua ficção impiedosamente expiando as fendas doídas entre os afetos. Todos os gêneros são contemplados: da narrativa transgressora (André Sant’Anna, tímido no trato mas ousado na criação, com sua escolha por uma prosa coloquial num registro extremo onde o discurso parece engolir a si mesmo) aos infanto-juvenis (Marcelo Carneiro da Cunha, bem-falante, irônico sem ser ferino, um dos raros praticantes do diálogo entre nós, debatendo sua novela Ímpar, que tinha tudo para ser piegas, tratando de adolescentes com alguma deficiência, e que encara até com humor essa diferença).
No dia seguinte à chegada componho uma mesa-redonda junto com duas chilenas. Uma é a escritora e editora Carmen Lucía Benavides, especialista do Centro Lector Lo Barnechea, de uma simpatia equilibrada, sem exagerar no sorriso que lhe sai natural e sem jamais buscar controlar o que nela brota simples e acena fácil, ainda que na direção de pessoas com dificuldades capazes de as tornarem – ao menos aparentemente – hostis. A outra é Karen Plath, estudiosa do gênero de que trataremos. Nosso tema: o desafio de criar ficção para crianças.
Karen é filha de um ilustre da terra – Oreste Plath (1907-1996), folclorista, espécie de Luís da Câmara Cascudo chileno – e parece carregar isso com uma pompa que a mim me soa não só dispensável como prejudicial a ela. Esquecesse um pouco o orgulho que sente pelo pai e se tornaria mais visível.
Não resisto a dar uma sacudida num debate que corre o risco, como muitos “debates” promovidos para irmanar povos e idiomas, de acabar morno. Proponho a incorporação da filosofia à literatura destinada aos jovens leitores. Falo de minha coleção Brincando de Pensar, onde antecipo Platão e Aristóteles, por exemplo, para uma faixa etária entre os 9 e 12 anos. E provoco, lembrando a tese de Ernani Ssó: Os Irmãos Karamazov, de Dostoiévski, e João e Maria, que dupla marcante de livros onde irmãos protagonistas dão o que falar. É preciso deitar por terra a preguiça mental que subestima a grandeza simbolizada e o poder de sugestão da história, no caso, dos Irmãos Grimm.
O auditório onde falo, com 70 lugares, está praticamente cheio. Arrisco ir de espanhol mesmo, e o tradutor-intérprete intervém apenas três vezes em uma hora e meia. Estamos, idiomaticamente, mais próximos do que imaginamos. Ou, de forma isolada, o meu caso pessoal – o de ter possuído três avós uruguaios.

Feira, feirantes, autores

Passo as roletas mostrando meu crachá de convidado. A entrada, única, é um hall de 500m2 de largura e, dez metros à frente, uma escada de mármore desce para o que parece ser o único piso, três metros abaixo. Nas laterais, como sacadas interligadas, algumas entradas para bares, salas de reunião, auditórios, escadas que conduzem a antigos escritórios agora desativados. Aí, nesse solo de pedras esmaltadas sobre as quais o toc-toc dos calçados não se escuta, onde antes devia ser a plataforma de espera, a Feira – fria, sem o afeto impetuoso e às vezes desastrado dos brasileiros, nela tudo funciona direitinho. Na abertura há show de Elza Soares. Muito samba. O Brasil sendo homenageado, não foi à toa que Bernardo Carvalho confessou que quando está no estrangeiro o país é um rótulo que ele tenta arrancar para que entendam um mínimo da literatura que faz.
Muita venda. Os chilenos, que se vestem a rigor entretanto com gosto duvidoso (as roupas bem cortadas e passadas até com vinco mostram um excesso de cores em tom pastel e camisas xadrez), compram. Não vibram no fervor esperável do consumismo, mas compram. Devem ler, não sei, mas vi encherem sacolas e numa atitude decidida de quem sabe o que está levando para casa. Vi cerca de uma centena de estandes com sessões de autógrafos que se multiplicavam sem abrir mão, jamais!, da seriedade. E, óbvio, as indispensáveis atrações paralelas – aproximadamente 300.
Do que pude acompanhar, uma platéia comportada em demasia. Ou eu é que me acostumei aos brasileiros – que cochicham, cochilam, olham pros lados enquanto os conferencistas suam sangue para dar seu espetáculo nunca suficiente para paralisá-los nas poltronas.
Em Santiago, por pouco que se faça numa palestra, a platéia colabora. Faz perguntas pertinentes, pensadas, amplia o debate. E sorri, não para fazer graça, mas agradecer à resposta que o autor lhes dá.
Minhas parceiras vestem-se com floreadas saias e blusas de seda. Os cabelos não ousam mais que um penteado alto impondo o respeito devido a cortes que não arriscam nenhuma transgressão visual. Falam de forma controlada, macia, afável sem ser melosa mas nem inflexível. São mulheres comentando literatura para “niños”. Hay que tener ternura en la voz. Com um detalhe a dar elegância e evitar derramamentos nessa ternura: no estilo chileno, contido.
Não que sua literatura o seja. Repassemos seus clássicos mais e menos recentes, muitos deles traduzidos no Brasil. O primeiro nome que nos vem (favor não citar o inevitável e, por isso, óbvio Neruda), é Gabriela Mistral (1889-1957), primeira mulher latino-americana a ganhar um Nobel, em 1945. O primeiro desses pioneiros na transgressão foi Vicente Huidobro (1893-1947), com seu Criacionismo, depois aliando-se, em Paris, aos modernistas e, logo, na Espanha, aos futuristas de Marinetti. Grande parte da poesia de Huidobro foi originalmente escrita em francês. Há no Chile quem reclame o Nobel a ele ou ao poeta Nicanor Parra (1914-), que, vivo, tornou-se nonagenário e não perdeu a indignação. Os grandes criadores, com exceção de Donoso, de quem adianto falo, eram vocacionados à poesia. A partir da geração de 50, a prosa, imantada de luminescência pelos poetas, emerge. Em seguida há o apagão cultural. A literatura, claustrofóbica, vê durante cerca de uma década, do golpe com Pinochet em 1973 a 1983, minguarem ou se exilarem os talentos.
Logo surge Antonio Skármeta, um escritor de alguns méritos, sobretudo em O Carteiro e o Poeta, e Isabel Allende, único sucesso indiscutível de público mas diante da qual a crítica, em sua maioria, se cala. Exceção para a estréia da moça com A Casa dos Espíritos. E a razão talvez seja mais política que literária. Em seguida Isabel (que nasceu em Lima, criou-se no Chile e hoje mora nos EUA) deriva para duas tendências tão caras ao gosto popular: entretenimento ou temas indisfarçavelmente pessoais.
Skármeta tem sete livros traduzidos no Brasil e é, bem depois de Neruda e Isabel, o autor chileno mais lido entre nós.
O nome do momento no Brasil é Roberto Bolaño (Santiago, 1953-Barcelona, 2003), que morreu cedo, passou como um cometa, e, por isso, escreveu tão vertiginosamente no estilo e na quantidade sabendo, sim, que tinha os dias contados. Sofria de uma grave doença hepática. Esperou, em vão, por um transplante de fígado de 2000 a 2003. Antes desse duro desfecho, outras durezas o acompanharam. Nasceu filho de motorista e professora. Recém entrado na casa dos vinte anos, foi com a família para o México, onde encontrou sua vocação. Voltou ao Chile, ficou oito dias preso, foi libertado por detetives ex-colegas de escola, voltou ao México, depois andou por El Salvador, alguns países da Europa, onde trabalhou de cobrador de ônibus, lavador de pratos, camareiro, vigia noturno, na limpeza pública urbana, descarregando barcos, colhendo uvas em fazendas. Por fim, estabeleceu-se na Espanha. E embora ainda trabalhasse em serviços que não lhe davam o conforto material necessário, começou a inscrever-se em diversos e importantes concursos literários. E a ganhar muitos.
Em 1984, Bolaño publicou, em colaboração com Antoni García Porta, sua primeira novela (até então só havia escrito poemas), Consejos de un discípulo de Morrison a un fanático de Joyce, com que obteve o prêmio Ámbito Literario. Nesse mesmo ano lançou La senda de los elefantes, que abocanhou o prêmio Félix Urabayen. Em 1993, com 40 anos, os médicos diagnosticaram a doença que iria matá-lo. Bolaño fica obcecado: quer deixar um legado, uma obra que faça a diferença dentro de um contexto onde o passado grita e o presente tenta, timidamente, protestar. Nesse ano saem Los perros románticos, uma reunião de sua poesia, produzida entre 1977 e 1990, e a novela La pista de hielo (A Pista de Gelo, Cia. das Letras, que o publicou quase todo até agora no Brasil, saído em 2007). Em 1997 lança seus contos completos, Llamadas telefónicas, que mereceram o prêmio Municipal de Santiago de Chile, o mais importante no país.
1998 trata-se do ano da explosão internacional de Bolaño. Começa a publicar numa grande editora, Anagrama. Lança Os Detetives Selvagens (no Brasil sai em 2006, sempre pelo mesmo tradutor, Eduardo Brandão). Sua prosa caudalosa mas conduzida por uma corrente de força devastadora, seus protagonistas espocando diante do leitor uma polifonia alucinante, seu tema que consegue – sem deixar de ser o de sua geração – superá-la na ótica e, sobretudo, na estrutura sinfônica, de um cuidado estilístico, perdoem, doente (neste caso, saudável para a literatura). Sua narrativa vertiginosa, com um fôlego de assombrar, e, no entanto, táctil sem perder a sugestão, a poesia, e nem por isso resultar em obscuridades ou gorduras verbais, leva-o, com Os Detetives..., a receber duas importantes distinções: o prêmio Herralde de novela e o – pelos brasileiros, conhecidíssimo, por que tem em sua lista gente como Vargas Llosa, para começar – prêmio Internacional de Novela Rómulo Gallegos: “por la calidad de la obra y su novedosa apuesta narrativa”. O humor concentrado, ferino, irônico, não muito comum na literatura de língua espanhola (exceção de Borges, concentradíssimo), é um dos elementos a fazer de Os Detetives Selvagens um livro cuja edição original eu comprei em Santiago. Seu livro mais recente, Noturno do Chile (2004 no Brasil), foi escrito quanto ele havia visitado o país depois de duas décadas de ausência. Segundo o crítico Jorge Herralde, trata-se de uma “pequeña obra de arte escalofriante”. Deixou coisas póstumas. Em breve saberemos.
Em tom menor, mas disposto a derrubar o que surgisse pela frente, Alberto Fuguet (Baixo Astral, ed. Record, 2001), da novíssima geração, dispara contra a hipocrisia e o medo da sociedade chilena que em plebiscito manteve o poder de Pinochet. Em 2005 sai no Brasil seu segundo livro, Os Filmes de Minha Vida (Agir). Um sismólogo (a piada é quase óbvia, mas não perde a graça) estremece a cada terremoto pessoal – afetivo, financeiro, político etc. – enquanto repassa os filmes que marcaram sua vida, como uma espécie de caminho prometido e impossível. E as relações que ligam tais filmes a passagens da vida da personagem principal. Fuguet não tem a profundidade nem o virtuosismo de Bolaño, mas é, depois deste, um dos mais interessantes autores do Chile atual.

Mas e a Feira?

Se Bolaño ocupou tanto espaço neste texto, e, menos que ele, outros nomes, é porque afinal o “onde” se impõe e com ele o “quem”. E é preciso saber um tanto do Chile e do que andaram e andam produzindo por lá para entender o impacto que isso pode produzir e que tipo de dimensão tal literatura consegue levar à sua feira. Falando dos escritores chilenos, todos eles, mesmo os mortos, presentes nas prateleiras e no olhar e na boca (quando audível) dos chilenos e visitantes, configuram uma arte multifacetada, eternamente em crise e em desafio. E, por isso, capaz de dar respostas desconcertantes (como Bolaño, claro). A Feira não difere radicalmente de nada que eu já tenha visto, exceto das mal organizadas. O principal estava lá: todas as boas editoras, seus principais títulos, atendimento profissional (com um certo pudor, indisfarçável). Quinze países se fizeram presentes, com destaque para a Espanha e a Argentina, naturalmente.
Não é cansativa como as nossas bienais. Tem um tamanho que eu não saberia precisar, mas é adequado. Um único andar, o térreo, onde os mais de cem estandes se estendem, através dos quais em meia hora de caminhada a nossa vista e o nosso interesse alcançam. Mais, como costuma acontecer em feiras internacionais, seria cansativo e um desperdício. Menos, como em feiras locais, seria talvez frustrante.
Agradou-me um detalhe a permear tudo: uma espécie de neutralidade em que nem o Brasil era edulcorado nem o Chile infestava o espaço com algum tipo de nacionalismo tardio, nem mesmo a inevitável latino-americanização do conjunto dos catálogos. O mundo todo estava lá, afinal de contas. São grandes selos editando grandes nomes, de todos os continentes.
Numa das palestras (e em conversas paralelas, entre colegas escritores, jornalistas chilenos e educadores santiaguinos) fiquei sabendo que o grande feito deles é a Biblioteca Nacional, um novo conceito de biblioteca, autêntico ambiente a dessacralizar o livro e a oferecer a todo tipo de público quase todo tipo de ambiente num prédio adaptado para a biblioteca. Lá, o silêncio é quase proibido. Tem sala de jogos pela Internet. Tem sala para bandas de rock se apresentarem. Tem gibiteca. Tem uma multiplicidade de ambientes (cada um de alguma forma dialogando com o outro), de tal jeito que não nos sentimos nas seculares “igrejas das bibliotecas” mas num novo lugar, para o qual, por enquanto, o único nome conhecido é “biblioteca”. Mas nem parece, tão interessante e democrático e efervescente e LOTADO que é. É isso mesmo: lotado. Movimentado. Nem parece uma biblioteca. Ou todas as demais no mundo é que não parecem?
Mas e a Feira? Autores lançando livros: mais de cem. Vendas: os números são polêmicos, como costumam ser nesse tipo de evento. Mas não é exagero dizer que chegam a 200.000.

A volta

Não sou assaltado no retorno. Um motorista da Câmara Chilena do Livro vai ao hotel e me leva ao aeroporto. Não guardo boa impressão de Santiago. É um lugar ideal para adultos dispostos a não passar fome, não terem contas atrasadas, morarem com segurança... e só. Simplificação, claro, mas não distorção. Chego no aeroporto e penso nos editores com quem deixei meus cinco livros com mais potencial para o continente. Situação delicada essas negociações. E recordo as editoras entusiasmadas com a produção brasileira em geral, críticas com a sensatez necessária ao que se faz no Chile e orgulhosas dentro da dignidade de gabar-se sem ser ridículo.
Compreensivelmente, houve homenagens (merecidíssimas), à irada lira de Gabriela Mistral. Atenho-me à Feira e ela, compreensivelmente, expõe com energia as novidades mas dá destaque, quase estande por estande, aos protagonistas da história literária do país. Um deles, José Donoso (1924-1996), de quem publicaram no Brasil seu romance mais ambicioso e bem-realizado, O Obsceno Pássaro da Noite (Francisco Alves Editora, esgotado), tomado de um clima de loucura no qual o gótico lembra as moderníssimas graphics novels quadrinizadas (de um Neil Gaiman, por exemplo) e não o Realismo Mágico que dominava a Americana Latina quando o livro foi lançado, na virada nos anos 1970 para os 80.
A novidade mais impactante ficou por conta de um boliviano, Edmundo Paz Soldán, que autografou Palacio Quemado (Editorial Alfaguara) no dia do encerramento. Tinham mesmo que encerrar o evento de forma exemplar. Esses chilenos são muito sérios, e não arriscam. Não num evento desses
Não vejo a Cordilheira na volta, não testemunho o cenário de um outro mundo. Mal embarco, adormeço. Outra feira que ficou para trás. Acordo quando o avião dá o aviso: “tripulação: preparar para aterrissagem. O Aeroporto Salgado Filho...” Olho o relógio. A companhia aérea é a mesma porém estamos quase uma hora atrasados. Estou de volta ao Brasil. (14/02/2009)