terça-feira, 14 de outubro de 2008

CONSELHOS PARA UM JOVEM LEITOR

A leitura é uma ação delicada, difícil – só na aparência simples. Pega-se um livro que se elegeu, com certa incerteza (como ter certeza acerca do que vamos encontrar no miolo do volume?), e abre-se, como abrimos uma porta para entrar numa casa, num auditório, em algum espaço no qual coisas acontecerão. Não sabemos o que vai acontecer. E isso nos deixa curiosos, às vezes ansiosos, às vezes pressionados pela atenção que é preciso colocar durante o ato da leitura, essa visita a esse espaço onde muita ação e muitas personagens surgirão diante de nossos olhos.

A ação pode ser pouca lenta, complicada (mais psicológica que movimento externo) – e nos aborrecer.
Pode ser vertiginosa, cheia de detalhes, e nos deixar sem fôlego, emocionados pelos acontecimentos.
Pode ser uma ação delicada, uma única trama sem grandes lances acrobáticos ou perigosos, mas no entanto repletos de riqueza humana no que os protagonistas realizam. E isso pode nos tocar fundo. Fixar raiz em nossa memória.

Quando se fala em ação, pensa-se logo em diversão, distração. Isso faz parte, sem dúvida, porém (e que ótimo “porém” esse) uma obra literária sonha geralmente com algo maior: comover o leitor, deixar-lhe sinais de que a vida é mais rica ainda do que aparenta. E é fundamental estarmos alertas para captar esses sinais.

As personagens. Pode-se dizer “os” personagens ou “as” personagens. É substantivo comum de dois gêneros. Alguns estranharão: por que “a” personagem? Porque uma de suas fontes vem da palavra latina “persona”, que quer dizer máscara. E ser uma personagem é vestir uma máscara, cumprir à risca um papel. O autor não perdoa. Mas a personagem também não. Muitas vezes, enquanto estou escrevendo, a personagem resolve fazer coisas que eu nem imaginaria ela fazendo. A personagem tem, sim, a sua independência. Controlada por mim, mas ainda independência. Sob esse aspecto, a personagem nunca é um “túmulo”, expressão que utilizamos para definir pessoas tímidas, discretas, que não dizem nada sobre si e sobre os outros ou dizem quase nada. Num livro, as personagens são expostas cruamente, impiedosamente pelo escritor. E o leitor tem a afortunada oportunidade de (como um espião) descobrir tudo, os segredos mais invioláveis, na vida jamais mostrados, na literatura sempre, de um jeito ou de outro, exibidos. Sem, claro, que a personagem saiba.
Você, leitor, fica a par de tudo. E a personagem não irá persegui-lo, fique tranqüilo. Ela ignora o quanto você sabe.
Basta ler como se espiasse por uma fresta que o levasse a um mundo paralelo.

Sim, a literatura é um mundo paralelo. E um mundo – uau! – com a ambição saudável de examinar quase microscopicamente tudo o que neste mundo, o real, de onde escrevo, não se examina, exceto os cientistas (descobertas que só ficam entre eles no momento em que ocorrem, e que só são divulgadas tempos depois, já de uma forma um tanto simplificada). A literatura não, a literatura é um mundo secreto mas o mais democrático dos mundos secretos. O mais popular.

Por isso peço-lhe, jovem amigo que ainda está treinando olhar a página impressa pelo menos uma vez a cada dois dias: aguce os ouvidos. Ouça as palavras que o autor utiliza, o seu vocabulário. Socorra-se no dicionário se alguma delas lhe soar estranha. Escute a harmonia das frases, o ritmo dos parágrafos. A música do texto todo. A linguagem de que se utiliza um autor é como o modo de falar de uma pessoa. E uma pessoa mostra muito quem é pelo jeito como se expressa, mesmo que minta.

Ler com todas as antenas ligadas ajuda-nos a flagrar a mentira, a achar a verdade até em lugares que ela parecia nem existir, de tão singelos que são (uma estrela cabe num grão de areia, é uma idéia e uma imagem a se pensar). E, mais que tudo, a beleza. A beleza é a verdadeira verdade, a verdadeira bondade, a arte expressa com toda sua musculatura à mostra.

E, por fim, leia procurando, não só ao autor, à história que ele conta, aos personagens que ele pinta, aos cenários que descreve, à linguagem com a qual ele conversa com você. Leia procurando a si mesmo. Em algum trecho, no meio do caminho, ou até no fim, quando menos esperar, você poderá se deparar com algum fragmento do livro que diz tudo aquilo que você sempre desejou dizer ou precisou dizer e não sabia como. Agora sabe. Agora pode.

Porque leu, e, lendo, pode escrever-dizer a voz que se somou à sua e, desta forma, ajudou a sua voz a então poder, a partir da leitura, começar a desenhar o rosto que você de fato tem (até então ilegível para você), a história que é sua (e que você nem sabia que havia uma história possível de ser contada). O jovem leitor em geral não descobriu ainda que somente com a leitura ele conquista não apenas o conhecimento “externo” do que muitos escritores quiseram dizer e incontáveis histórias e as figuraças que vivem essas histórias, conquista não apenas uma “cultura”, a permitir-lhe ser, inclusive, um bom falante e um bom ouvinte. Mais que isso, conquista a si e começa enfim a infinita aventura de desvendar os mistérios que ele próprio carrega, há anos. (14/10/2008)

sábado, 11 de outubro de 2008

O DELICADO EXERCÍCIO DA FORÇA

Você deseja, como todos, se dar bem.
Mas “se dar bem” não pega bem, sobretudo dito assim, a seco.
Na verdade, você quer mais. Você deseja ter alegrias com algumas constância e paz ao máximo. A paz acariciada pelo prazer de, inundado de oxigênio por todos os lados, não ser uma ilha, não, e sim alguém que habita sensorialmente e – sempre se quer mais – intelectualmente uma região imensa, inesgotável.

Você quer demais essa experiência. Não, você não quer “uma” experiência, mas várias, sem-conta, você almeja a soma e o predomínio do que faz seu corpo, sua mente, você de forma inteira.
É preciso persistência. Por incrível que pareça (e a idéia até nos faz rir), ser você mesmo necessita de cuidados, de diários reconhecimentos. Como se existisse um espelho especial feito exclusivamente para você. E a passagem frente a ele (e o postar-se diante dele) é obrigatória. Salvadora.
O melhor de tudo é que esse espelho é só uma idéia que humildemente se coloca diante de você. Uma idéia que enxerga você.
Sim, você é visto por ela, a idéia, por ele, o espelho, que, pensando bem, só existe multiplicado: são muitos espelhos, em todo lugar, em casa, na rua, na hora da diversão, na hora do trabalho – até na hora do repouso.

Delicado exercício de ser (porque “ser” significa “ser alguém”, o que é muito mais que “ser algo”), como é fundamental esse permanente estado de alerta mesmo no alheamento. Um alheamento que, segundo Drummond, é “porosidade”. Isto é, nunca se ausentar tão plenamente para não se perder a música do mundo e, junto com ela, a voz que se herdou alimentada pela voz que se construiu.

Cave, fuce, procure, afaste as cortinas, observe, leia, ouça, fale, toque, seja tocado – encare o desafio e a provocação (deliciosa e grave) de identificar o que é força em você e o convoca a construir mas também a fruir, a fazer – e sua recompensa –, a receber o que se move na mesma discreta ação que é gêmea da sua.

Todos nos procuramos. Nós, você, a humanidade, o mundo, as coisas.
E se se repelem, muitas vezes, é porque não compreendem o choque inevitável causado pela paralisação da procura. Alguma força sempre esbarra conosco no caminho. E nos derruba, se não estivermos fortes.
Interessante: pode nos levantar, essa força outra, se estivermos fortes – mesmo frágeis – para ser erguidos. Ajuda externa que nunca é isolada. Nós, decisivamente, a ajudamos. (11/10/2008)

sábado, 4 de outubro de 2008

UM POUCO MAIS SOBRE "WHISKY"

Terminou agora na tevê a cabo a exibição do filme que recomendei. São 22h15min quando escrevo este post sobre Whisky, recomendado a mim por Roberto Silva, que tenta, inutilmente, esconder-se em João Pessoa. Pobre Jacobo, o dono da fabriqueta de meias (de discutível qualidade e gosto) e de um carro que sempre custa a pegar. Filhos da puta esses dois diretores, um deles, Juan Pablo Rebella, de apenas 32 anos, morto dois anos depois de lançado o filme. Como o Uruguai é um país triste...

Na vidinha precária da fábrica de meias de Jacobo não cabe um único discurso. Nem meio. Com a chegada do irmão, Herman, vindo do Brasil (eta país de falastrões), o sujeito, contaminado e bem-sucedido, é a única promessa de vínculo, mesmo que provisório. Aliás, nem se trata de vínculo (o irmão vem para os dez anos de morte da mãe, a cujo enterro nem compareceu), mas do ato do sorriso como um evento isolado. Fazer cara (puro mecanismo) de quem diz "uísque" e, assim, mostrar os dentes para o fotógrafo. É o que passam a fazer Jacobo e sua principal funcionária, Marta, que combina com ele, durante a estadia do irmão, cumprir o papel de esposa do desencantado patrão. Nota: não há confissão de desencanto. É desencanto puro, em estado bruto, para além das autocomiserações.

A alegria advinda das discretas demonstrações à visita familiar é no máximo uma declaração de boas-vindas e, depois, com o passar dos dias e da convivência, sob o peso das diferenças entre o anfitrião sem ilusões nem bens e o visitante com charme e dinheiro, o que é drama vira comédia e o que poderia ser comédia vira incômodo, insuportável silêncio. Detalhe: como o silêncio é enfático nessa história! As imagens são quase singelas e, no entanto, impossível resumir a trama, que aponta em tantas direções. Uma das razões é a solidão atroz das duas personagens principais, Jacobo e Marta, e a carência nunca assumida de um e sempre assumida – embora calada – da outra.

O roteiro é uma obra-prima, ainda que a palavra o desmereça, por ser uma expressão gasta e absolutista. Os atores são daquela rara espécie que prova que interpretar não é nem um pouco menos que criar. A sensação, nítida, que me ficou, é que Whisky é um fragmento poderoso das minhas memórias, e que estarei sempre lembrando-o misturado à minha vida, acerca da qual sempre surgem novas dúvidas que poderiam transformá-la, não estivesse ela fechada para a transformação, e iluminadoras certezas sombrias. (04/10/2008)

WHISKY


Hoje, às 20h15min (jante cedo ou – é sábado – jante tarde), na tevê por assinatura, canal 65 da operadora NET, Telecine Cult, um filme uruguaio, Whisky. Nós, que somos vizinhos de Uruguai e Argentina, estamos com o faro mais atento ao bom nível de sua cinematografia, sobetudo a argentina. Bem, quem me lê aqui, sobretudo os não-gaúchos, fiquem ligados. Whisky é uma comédia comovente, aquela espécie de história que reúne o auge das potencialidades narrativas, onde o que é drama humano converte-se em lágrima seca, engolida em favor de sorrisos a costurar um humor raro. Humor alimentado na base de uma melancolia difusa. Solidão e orgulho se unem, uma para dar a profundidade da condição do protagonista, o outro para resgatar sua dignidade e mostrar o quanto o irmão representa para ele. A trama? Morta a esposa há anos (fato que o viúvo encobre), o personagem encarnado por Andrés Pazos, Jacobo, possui uma mulher que trabalha para ele em sua fábrica de meias e que, além de funcionária, é sua única amiga. Recebe a notícia da iminente visita do irmão, Herman, a quem deseja causar boa impressão. Combina com a amiga, Marta, que represente a atual esposa. Os afetos sublimados e as perdas caladas dão um show de contida e, por isso mesmo, tensa e densa emoção a nos arrancar reações que poucos filmes merecem de nós. Whisky é desses poucos filmes, a ser visto e revisto. Ainda bem que tevê por assinatura, em geral, costuma repetir diversas vezes, durante um ano inteiro, praticamente toda a sua programação. Tenho esperanças de ver e rever o filme. dirigido pelos uruguaios Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll em 2004, umas três vezes no mínimo, até meados do ano que vem. Mas não facilitem. Programem-se para hoje. Se não acharem o máximo, me cobrem. Prometo me retratar. E, francamente, duvido que o faça. Não por orgulho. (04/10/2008)