sábado, 23 de agosto de 2008

A MORTE QUE SALVA

Morre fisicamente o escritor, célebre pela qualidade de sua obra. Imagina-se que a posteridade lhe será grata, reconhecendo seus méritos e povoando as décadas vindouras de ecos do aplauso que ele conheceu em vida. Entretanto, um professor de literatura mais afoito burla a vigilância precária da viúva e arranca das mãos hesitantes da mulher páginas que o autor desejaria enterrar consigo. Está feito o crime.

Um mês depois de morto, sai em edição de luxo a primeira besteira no conjunto da obra do autor, até então cuidadíssima. Quer o tal professor, a exemplo do mau-exemplo Max Brod, impedir que caia no esquecimento o que o autor quis assim. Max Brod teve sorte, o Kafka inédito de fato valia a pena, mas foi uma exceção, a regra é o defunto ter razão, e o que deixou sem a luz do público de fato merecer tal escuridão. Fizeram isso com Fernando Pessoa depois de morto, cujo “baú inesgotável” de obras-primas efetivamente deu obras-primas, mas também muita bobagem, como O Livro do desassossego, que nunca deveria receber a atenção que a maioria do material escondido mereceu. Com Pessoa tinha um atenuante, como com Kafka: o autor foi exigente além da sensatez, e realmente escondeu o ouro. Mas o normal é o autor esconder aquilo que não desejaria mesmo que lessem.

Feito este prólogo, um pedido: respeitem a memória do morto – ele pede silêncio além do que disse em vida. Toda palavra nova, trazida ao palco postumamente, é som distorcido, é sentido extraviado, é um homem empalhado forçado a pular o carnaval. Cinco anos depois do funeral, um leitor menos informado acerca do ocorrido com nosso impotente e infeliz defunto, depois de ler cinco livros póstumos (a média com o coitado foi de uma exumação por ano), exclamará, desconsolado: “mas esse cara não é grande coisa! Engraçado, quando vivo festejavam-no com tanto empenho...”

O morto quer que o lembrem de quando era vivo, e escrevia. E, ao escrever, escolhia o que era melhor, o que funcionava, e isso ele tornava público; o resto, ele deletava o arquivo, queimava os
papéis, rasgava (e até aí salvava-se, quase sem saber), ou simplesmente (ó imprudência!) deixa adormecido numa gaveta. Este último procedimento – delicadeza do autor com a imperfeição de seu trabalho – revelava um método simples, cômodo, e, enquanto vivo, eficaz. Alguma parcela daquele equívoco talvez servisse para ser aproveitada adiante. Só que adiante estava também a morte, e, morto, ele não poderia arbitrar sobre o percentual aproveitável. Ficava 100% do insuficiente, quando não do fiasco, para cair nas mãos das carpideiras de plantão. Chorando sua morte, insistem em revivê-lo pelo que não pretendeu dizer, pelo que, em última instância, não disse, esfregando ante nossos olhos o texto arrependido.

Agora o desfecho deste reconhecimento e deste restabelecimento da justiça: evitemos de imputar ao autor, hoje sem chance de interferir sobre os desígnios de sua obra, a responsabilidade por um crime cujo impulso ele reconheceu porém cuja realização ele não autorizou. Paremos de acrescentar aos seus títulos – momentos que ele julgou raros, extraordinários, e, por isso, exemplares – quaisquer pedaços de experiências que o próprio ato de experimentar esgotou, trechos ordinários que o todo da obra selecionada dispensa, momentos menos felizes cuja derrota de execução já basta, quanto mais estender essa derrota aos pósteros.

Morte feliz a daquele escritor cujo último livro publicado em vida é, sim, o último livro de sua bibliografia. E os seguintes não passem de homenagens de terceiros, clubes de leitores, associação de críticos, enfim, essa outra espécie de desdobramento – cá pra nós, na maioria lamentável –, mas pelo menos com a honestidade de ostentar a assinatura de gente viva que pode ser responsabilizada pelos próprios erros. Morto o autor, leva para o túmulo a paz de enfim ter descansado. Isso quer dizer simplesmente que agora não escreverá mais. Nunca mais. E não publicará mais. Nunca mais. O que já estava, ficou. O que não aconteceu com ele, não pode mais
acontecer. A obra precisa ser dele para depois ser nossa. (23/08/2008)

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

ONZE PASSOS PARA PAIS INCENTIVAREM SEUS FILHOS A LER

Tudo começa, naturalmente, na infância. É preciso ler, ler muito, para poder escrever.
A seguir, alguns passos para o incentivo à leitura, quando o leitor ainda está verde
e recém dá seus primeiros passos.


1. A faixa etária adequada para o contato inicial com livros se dá entre os dois e os cinco anos.

2. É importante que o professor indique o livro correspondente à idade e à capacidade de concentração da criança ou que os pais avaliem a adequação desse material.

3. A leitura deve transcorrer em um ambiente calmo, sem interferências ou ruídos (rádio, televisão etc.). O adulto deve assumir o papel do narrador da história, familiarizando assim o pequeno “leitor” com o autor que apresenta a narrativa.

4. É fundamental que o adulto que está apresentando o livro à criança faça comentários sobre a aparência do volume, sobre as figuras, o formato, talvez até contando algum fato da vida do autor. Enfim, é decisivo mostrar à criança interesse em folhear o livro, demonstrando que ali, naquelas páginas, muita coisa se pode descobrir e se quer descobrir. E na hora de ler, faça-o dramatizando, com emoção escancarada. Tudo para que jamais o ato da leitura pareça algo chato ou desinteressante.

5. Se a criança quiser tomar o livro de suas mãos e folheá-lo devagar, de qualquer jeito, “erradamente”, nenhum problema. Deixe. Não se deve ter pressa, e esse processo de convivência com o livro, no início, vai ser assim mesmo.

6. Cada ilustração e cada palavra devem ser mostradas. Uma dúvida, uma hesitação? Pare, explique, volte atrás. É decisivo não perder o fio da meada. Compreender direitinho a história para gostar dela.

7. A criatividade da criança deve ser encorajada. Antes de cada cena seria interessante perguntar o que ela acha que vai acontecer.

8. O ato da leitura – nessa fase inicial – deve ser em conjunto. É uma ótima oportunidade para pais e filhos se sentirem juntos, unidos. Manifestando carinho, calor, o adulto envolve afetivamente a criança e a faz lembrar desse momento – a leitura – como um instante prazeroso.

9. Se a criança reagir negativamente ou não quiser terminar o livro, é importante deixar que isso aconteça. O livro não pode ser uma obrigação, uma sentença, um castigo.

10. Terminado o livro, deve-se conversar com a criança sobre a história lida. Pede-se que a criança conte o que acabou de ser lido. Pode-se ir escrevendo a história, agora contada pela criança, observando o nexo entre as partes, a correta ligação entre as diversas cenas do enredo. Com isso, a criança vai aprendendo que o pensamento tem uma estrutura com começo, meio e fim.

11. Não é raro a criança solicitar que se leia mais de uma vez a mesma história. Satisfaça-a, sem maiores preocupações quanto ao retorno, repetidas vezes, ao mesmo livro. Isso serve para fixar uma identificação com determinada trama, determinado estilo, determinado assunto. Não esquecer, entretanto, de oferecer livros bem diferentes, comparando-os, indicando assim a diversidade de opções de leitura. (20/08/2008)

domingo, 17 de agosto de 2008

ANIVERSARIANTES

Hoje, 17 de agosto, é uma data e tanto. Ao menos para mim. Nascidos neste dia. Para começar, um herói bem ao estilo épico, David Crokett (1786), a leste do Tennessee, EUA, soldado, caçador e político do Velho Oeste. O poeta Fagundes Varela (1841), na Fazenda Santa Rita, Rio Claro, Rio de Janeiro. Simplesmente escreveu um dos poemas da língua, “Cântico do calvário”. Do trágico ao cômico (a demonstrar que os signos nada sabem): May West (1893), em Nova York. Atriz e cantora, supra-sumo da irreverência, uma das mulheres com mais humor que a história registrou (junto com outra norte-americana, Dorothy Parker). Pensando em cinema, que tal um dos maiores atores de todos os tempos (para o meu gosto, Taxi driver, Touro indomável, Cabo do medo e Tempo de despertar, cá pra nós!), Robert de Niro, em 1943, em Nova York, o primeiro vivo da lista. Tem um monte aí que eu poderia pôr só para constar. Mas o derradeiro nome não merece: é gente que só é citável pela vi-si-bi-li-da-de, os conhecidos bergamota-de-amostra, e não exatamente por algum talento que lhes conceda a imposição gerada por alguma importância que possam ter (Hélio Costa, Elba Ramalho, Zezé de Camargo... socorro!). Mas tem mais, gente que é gente além da conta, pelo que contam e cantam: Ed Motta (1971), das mais inacreditáveis vozes surgidas nos últimos 25 anos no País (desde os 19 anos dele). E uma voz mais jovem ainda que, sem precisar emitir notas em concentrada busca por uma melodia, hoje completa 24 anos. Voz que me embala num simples telefonema: a de minha filha Maria. Tá na história, pra quem me lê, e que sabe que a história é muito descuidada. Será comigo também. Mas eu não serei. E coloco o nome de Maria Bentancur ao lado de todos esses nomes citados, sem nenhuma pieguice, e com todo o compromisso do mundo. Os melhores. O acaso, de alguma forma, os reúne. E a mim bastaria May West contando piadas sacanas na festa de Maria, e De Niro fazendo uma performance para ela. Não vai dar, tá certo. Então vou eu lá, com aquela precariedade de todo pai, querendo ser desbravador, ator, cantor, poeta, para tentar dizer do seu amor. Mas o pai não é tudo isso. Não é nada disso. E, nessa hora, somente, e essencialmente, é pai. Mas o afeto – essa forma imprevisível de expressão –, ainda bem, acaba sempre dando o seu recado. (17/08/2008)

PS.: Na quarta-feira, dia 13, tivemos o aniversário de um dos grande escritores infanto-juvenis do Brasil (embora pratique outros gêneros), Ernani Ssó. Não saiu nenhuma nota na imprensa, claro. O cara é pra lá de bom e não faz média, principalmente com a arte que pratica e com os críticos que poderiam lê-lo com muito proveito. No dia seguinte, 14, guria ainda, pouco mais crescida que minha filha, aniversariou uma das jornalistas mais inquietas e criativas que conheço, um tanto extraviada pelo mercado acomodado, isto é, sem informação alguma de onde de fato está o ouro. Seu nome: Bela Figueiredo. Bom nome, ótimo texto, péssimo mercado. Abração com o carinho nascido de tanto admirá-los, gente! Já quanto às editorias (de editoras de livro, imprensa etc.), que reaprendam a ler, inclusive currículos.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

O BRASIL CORRE PARA TRÁS

Vicente Lenilson, nosso maior atleta nos 100m rasos, a mais nobre das modalidades olímpicas, neste 15 de agosto, numa das eliminatórias – que o derrubou– para classificação à prova final (que assistirá de algum lugar longe da pista), levou 10 segundos e 26 décimos para percorrer a distância que já baixou dos 10 segundos para os 9 há exatos 40 anos. O atual recorde mundial pertence ao jamaicano Usain Bolt, com 9seg e 72 décimos, marca atingida no começo de junho último. Nesta prova em que Lenilson correu como um Gordini ou voou como um 14-Bis, 7o colocado ao final, o mesmo Bolt, mais lento desta vez (9segundos e 92 décimos), fez o melhor tempo.

Lenilson, natural de Currais Novos, RN, 31 anos, 1,66m (baixinho o moço), com a velocidade conquistada hoje – o melhor dos brasileiros na modalidade, nestes jogos olímpicos –, superaria com folgados 14 décimos de segundo ao alemão Armin Hary e seu modesto tempo de10”30 na Olimpíada de Roma, em 1960, há 48 anos. Faltavam ainda 17 anos para o futuro atleta potiguar nascer. Nascimento demorado esse. (16/08/2008)

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

"CATATAU" EM CATUÍPE

Qual era a liberdade criadora com que nos deparávamos naqueles idos de 1975, quando não havia liberdade política e a arte não podia dialogar à vontade? Quase nenhuma, embora ao artista a liberdade seja um bem comum inalienável e ele a use de todas as formas, sobretudo as imperceptíveis pelo vigia da hora. Assim, a vanguarda, mais que um experimento, era uma obrigação. E nesse ambiente vigiado as mentes experenciavam viagens mais longas, bem mais longas, que nossos rotos sapatos de Carlitos.
A estrada empoeirada por bombas de gás lacrimogênio quando muito jovem com cara de protesto se reunia precisava ser asfaltada por uma civilidade construída sobre cultura e liberdade. Gente com longas barbas de pose de hippie trilhava esse caminho, mas era necessário mais que uma performática pose de Walt Whitman; era fundamental dar munição verbal a si mesmo, saltando sobre os muros de um discurso vigiado. Paulo Leminski foi um sujeito que teve essa cara e essa coragem alimentadas por dois milênios de poética, desde a de Aristóteles.
Daí que o rebelde não se fez de fúria pura e juvenil e sim transgrediu autorizado pela própria tradição que, enciclopédica, vence o que usa seu nome mas é apenas cânone constituinte da hora política severa.
Não faz muito tempo perdemos esse transgressor, o Leminski, 45 aninhos ainda, na flor da idade, mas com uma produção de quem passou dos 60. Foi em 1989 e muita birita derrubou o poeta-contista-ensaísta multimídia paranaense. Uns 15 volumes desaforados foram seu testamento, sobretudo sua obra-prima, Catatau, uma prosa experimental com cara de romance, mas corpo de poema em prosa. Leminski se foi mas ficou uma legião de leitores formada às margens de seu texto coleante, humorado, inventivo.
Falar em invenção parece obviedade quando se trata de arte, mas em Leminski isso era o ponto de partida e de chegada. Homem da publicidade, vivia de antena ligada no que o mercado pedia sem trair o que ele próprio, Leminski, pedia a si mesmo, e afora o Catatau, nenhum texto seu ia fechar a cara para o público. Assim, promoveu a convergência entre o complexo das idéias e o simples da forma, em textos que iam da piada à crônica, transitando em meio à região afável de uma espécie de circo das letras (“A palmeira estremece / palmas pra ela, / que ela merece”).


O começo

Mas isso foi o fim. Carreira interrompida pela doença (tinha tantos planos, conforme me contou ao telefone 15 dias antes de morrer: “vou partir pro conto, mas com calma, que tu estás na terra do Scliar”; “ainda estou me devendo um romance”), cada vez mais ia aproximando uma curiosidade insaciável que o fazia flertar com meia dúzia de línguas – consta que até egípcio ele andava estudando – com um registro verbal dessa curiosidade capaz de traduzir o mais remoto e o mais transcendental para a fala mais cotidiana possível.
Leminski queria o difícil tornado em fácil. Queria o mais profundo boiando na superfície, a nossa espera, leitores de sorte, alfabetizados no idioma desse paranaense.
Embora seu começo tenha pegado o monstro a unha. Catatau (1975) “refaz” o percurso dos holandeses no Brasil, que trazem René Descartes na bagagem e o filósofo do mais supremo racionalismo mergulha na febre da selva tropical (uma hipótese, claro), na selvageria de um povoamento que não se fez com a liberdade essencial que se respirava na Holanda de então (país mais livre da Europa no século XVII, e para onde Descartes e Spinoza, por exemplo, tinham se mudado).
Catatau é – hoje cabe chamá-lo assim, devido à fluidez dos gêneros literários – um romance, um monólogo, num ritmo alucinante de fluxo de consciência, de um Descartes perdido e achando um país que poderia ter ido por outro caminho. Mas é também o “espírito” do texto se manifestando, evocado pelas inúmeras entidades que o proclamam e por uma força suprema em ressurgir, ou melhor, permanecer enquanto sente que vai – sua chama, sua alma, sua força, sua luz, sua palavra – apagando-se ou confundindo-se já sem nenhuma identidade.
Foram duas décadas e meia em que a parte mais desenvolvida do Brasil esteve nas mãos da Companhia das Índias Ocidentais, capitaneadas por Maurício de Nassau, que para cá trouxe (desta vez, historicamente falando, de verdade) sábios, pintores, matemáticos, cientistas, gente capaz de conviver com alemães, polacos, índios, negros e brancos em paz e em liberdade de credo, não importando que houvesse entre eles católicos, protestantes, judeus etc.
Recife/Olinda foi a primeira experiência (exitosa) cosmopolita do País. Isso é História. Depois os holandeses, que viam no Brasil não apenas um paraíso físico a se explorar com fins econômicos, mas um mundo de fato novo, com fauna e flora exóticas, uma terra adequadamente chamada por eles de Vrijburg (pronúncia: “fraiberg”, cidade livre), foram derrotados pelos senhores de engenho luso-brasileiros que preferiram o feudo ao capitalismo e à liberdade. “Em Guararapes, o Brasil selou seu destino de ser nação periférica, dependente, lusitanamente condenada a viver o passado dos outros” escreveu Leminski num artigo póstumo, publicado no já extinto Nicolau.
No livro, um “catatau” de coisas (idiomas e dialetos, civilização e barbárie, conceitos, imagens, fatos da história, da ciência, das artes, plantas, reais e imaginárias, bichos, reais e imaginários, pessoas, reais e imaginárias, palavras, reais e imaginárias, muitas se entredevorando, num recurso usado por Guimarães Rosa entre nós e por James Joyce na Irlanda) é apresentado num esforço entre lírico e épico de tomar um território, habitá-lo e, por fim, compreendê-lo.
A última intenção é a que não fica.
Descartes/Nassau/a Voz que Fala (e que falha) com os ouvidos livres a todos os sons que se encontram numa pororoca lingüística naufraga no próprio discurso que monta. Monta? O discurso é que monta nele e em nós, leitores, atordoados da primeira à última página, levados pela correnteza, talvez em pleno mar já, longe do Brasil que não achamos.
Do Brasil que não se achou.
Leminski soube achá-lo. Precisou de um Catatau, esforço hercúleo.


PS.: Catuípe é uma cidadezinha do interior do RS onde, durante uma semana, revisei as últimas provas da edição até agora definitiva do livro, que saiu pela Sulina dois meses após a morte do autor. Leminski já tinha feito duas revisões e me pediu: “lê mais uma vez, sempre aparece uma besteira, ainda mais nesse aí.” Peguei o livro e fui me esconder numa cidade de 20.000 mil habitantes a 300 quilômetros da sede da editora. Voltei sete dias depois sem nada anotado. Queria logo que os fotolitos ficassem prontos. Ficaram em três dias. Que fossem pra gráfica. Foram no dia seguinte. E que o livro ficasse pronto. Ficou mas o autor foi embora antes. (13/08/2008)

sábado, 9 de agosto de 2008

MISTÉRIOS DA CRIAÇÃO LITERÁRIA 10


Quem não gosta de descobrir? Quem pode descobrir se não vê? Quem pode ver se não escuta? Quem pode escutar se não fala? Quem pode falar se não lê?
Na leitura está o caminho de uma série de mistérios. Continuamos aqui uma série sobre os mistérios da escrita criativa, da criação literária. Criação que nos ajuda a criarmo-nos enquanto seres cheios de mistérios.

X

A seguir uma pequena morfologia do artista. O que o constitui. O que o nega. O que o insinua. O que o anuncia. O que o ameaça. O que o salva.

O que é um artista? Alguém que tenta ser uma espécie de espelho do mundo, espelho no qual se refletem a vida e os seres que a vivem ou tentam vivê-la.
O que é um artista? Alguém que busca, por meio de tintas e telas (se é pintor), instrumentos musicais (se é compositor), palavras (se é escritor) recompor a existência humana e seus significados.
O que é um artista, afinal de contas? Para explicar isso direito milhares de livros foram escritos, milhares de artistas deram seu depoimento, e no entanto a resposta não é fácil nem é uma só.
É necessário, em primeiro lugar, saber que tipo de artista estamos falando. Por exemplo, um pintor: deve ter olhos. Um músico: deve ter ouvidos. E um escritor: um ator. Isso mesmo, um ator.
Um escritor é um homem que deseja “pintar” com palavras o que vê. Um homem que “canta” (se é um poeta) com palavras o que escuta. Um homem que procura, como se fosse um ator, vestir a pele da humanidade inteira (de um macho adulto, de uma mulher, de uma criança, de um velho) e com essa multidão de papéis que interpreta, atingir a voz e as verdades que servem para ele e para os que o lêem.
Um escritor sabe que uma boa história necessita de bons personagens. Bons personagens são marcantes, têm personalidade, falam de uma forma especial, como se o que dizem formasse um desenho único, irrepetível: o desenho de sua alma. Bons personagens possuem um modo original e próprio de falar. Suas frases, suas expressões, seu vocabulário, e também seus gestos, seu comportamento, suas roupas, suas manias, muitas de suas características, enfim, somam-se para compor um perfil que deixa fundas marcas no leitor, que impressiona, que vale como uma espécie de modelo humano exemplar.
Mesmo que esse modelo não seja exemplar, mesmo que se trate de um ser comum, de uma pessoa vulgar, sem qualidades, sem beleza, sem importância. A miséria – o drama – de sua desimportância constituem ótimo material literário.
Grande é o escritor que saiba “repetir” de forma convincente alguém que o leitor identifique (como a um vizinho, um parente, ou mesmo um desconhecido), alguém que o leitor reconheça como plausível, ou seja, verossímil. “Esse tipo de pessoa eu conheço” diria o leitor diante da personagem criada. Êxito do autor.Ou então, “que tipo mais extraordinário!” Isso nos casos de exceção, que combina mais com aqueles escritores capazes de criar gente que sintetiza o drama do homem diante dos mistérios da existência. Figuras cujo modelo não faz parte da nossa família (se fizesse, já tinha sido expulso). Figuras que julgamos únicas porque não lhes conhecemos a síntese senão ali mesmo, na obra.

Criar um indivíduo, tomando todos os cuidados, observando cada mínimo detalhe na descrição, nos diálogos, fixar um tipo de pessoa a partir de seus hábitos, do tom de sua voz, do jeito neurótico como passa a mão repetidas vezes pelo cabelo, ou como grita desnecessariamente, ou como pensa, sim, principalmente como pensa.
Um homem são suas idéias.
E, antes de que as examinemos, um homem é a coragem de pensar ou o medo de pensar. Um homem que tema tanto viver, um fraco, e que por isso não ouse elevar seu espírito tão alto, ainda assim é um homem – uma vítima de si mesmo –, e interpretá-lo é um trabalho rigoroso, complexo, e tanto o ator quanto o escritor são chamados a fazê-lo.
O escritor apresenta-se, muitas vezes – a maioria delas, inclusive –, sem ter sido chamado. Um viciado cometendo excesso, mas excessos que revelam nossa verdade humana (portanto, nossa humanidade), e um vício que se apóia em duas dependências: a beleza e a verdade.
O escritor denuncia. Transforma (sempre em algo maior). Cria, onde antes havia, se não o vazio, ao menos o insuficiente.
Ele é o fruto dourado de uma terra (quando sem arte) estéril. E brota. Ou faz brotar.
Sem ele, sem sua obra, é o mundo cego, surdo, mudo.
É o mundo uma dimensão plana, exígua, sem fundo.
É mundo, sim, mas não habitável.
O artista, qualquer que seja sua ferramenta (neste caso estamos falando do escritor), torna o mundo real mais legível. É como se, sem ele, a realidade fosse intraduzível, e, de alguma forma, invisível a si mesma.
Nesse sentido, o escritor, é sem dúvida, um deus. Só depois dele o mundo, enfim totalmente criado, está pronto para a confissão.
Como um deus, porém, solitário, essa confissão só pode vir dele. Os homens que ele tenta salvar estão calados. Ou perderam-se na babel de palavras. Por isso mesmo ele fala por eles. (09/08/2008)

MISTÉRIOS DA CRIAÇÃO LITERÁRIA 9


Quem não gosta de descobrir? Quem pode descobrir se não vê? Quem pode ver se não escuta? Quem pode escutar se não fala? Quem pode falar se não lê?
Na leitura está o caminho de uma série de mistérios. Continuamos aqui uma série sobre os mistérios da escrita criativa, da criação literária. Criação que nos ajuda a criarmo-nos enquanto seres cheios de mistérios.

IX


A arte é uma das tantas respostas para a dúvida. E não só para a dúvida. Mas todo artista é, antes de tudo, ou simultaneamente, um filósofo. O que é um filósofo?

Uma brevíssima história do espírito

Entre as milhares de formas de vida animal no planeta, o homem é a única com inteligência capaz de prodígios. Um desses prodígios é pensar o universo à sua volta. O homem é o único animal que pensa.
Os demais animais aceitam o mundo como ele é, sem procurar alterar nada. A sua atividade, mesmo intelectual (a formiga, a abelha ou o castor são hábeis artesões, engenheiros e matemáticos) é essencialmente prática. O homem não restringe seu raciocínio somente à função utilitária deste. Vai além: constrói mentalmente obras cujo destino é apenas mental, ou seja, com utilidade teórica e não, prática.
Se o reino da matéria é o único reino que as demais formas vivas reconhecem, o do espírito oferece uma porta que só o homem pode abrir.
Há homens que, infelizmente, raramente abrem essa porta. Por medo. Por insegurança. Por hipocrisia. Por ignorância. Por falta de liberdade. Por pobreza.
Outros a abrem, mas só um pouquinho, deixando ver através da fresta uma pálida noção do espetáculo que há lá dentro.
A inteligência humana não tem limites, e abrir a porta do espírito é apostar tudo na extraordinária força de nossa mente.
Essa aposta, como toda aposta, incorre em riscos, em erros, mas provavelmente acabará encontrando o maior dos tesouros: a verdade.
Pensar é uma aventura inenarrável. Pensar é viver em dobro. Pensar é provar por que somos superiores ao gato, ao cachorro, ao cavalo.
Pensar é descobrir.
Pensar é ver além dos olhos. Pensar é escutar além dos ouvidos. Pensar é falar além da boca. Pensar é multiplicar.
Pensar é enriquecer.
Pensar é ganhar confiança. Pensar é amadurecer. Pensar é conquistar.
Pensar é viver, viver mesmo.
Um homem que não pensa de fato não é um homem por inteiro, é um homem pela metade. E de um homem pela metade não se pode dizer que viva.
O pensamento conduz às respostas que precisamos para entender tudo o que acontece.
O pensamento também conduz a novas perguntas, que com mais pensamento nos levarão a novas respostas.
Quanto mais perguntas, melhores respostas. Isso porque se as dúvidas se multiplicaram, satisfazê-las exigiu mais e melhores argumentos.
É uma ilusão pensar-se que a criança é um eterno inocente.
Com três, quatro aninhos de idade é comum fazerem indagações, cobrando-nos a toda hora uma resposta satisfatória acerca da origem das coisas, do porquê de tudo ser como é.
Ou seja: já nascemos filósofos.
A curiosidade é inerente ao homem. O ser humano é o único animal da face da Terra que se faz perguntas.
Que se admira. Que se espanta.
Que não consegue dormir com uma dúvida martelando em sua cabeça.
Mas a atividade do espírito não é privilégio dos filósofos. É do homem em geral, embora nem todos os homens possam ser chamados de pensadores.
A origem da palavra filosofia vem do grego, e quer dizer “amor à sabedoria”.
Mas amor à sabedoria têm também os cientistas e os inventores, que buscam através do raciocínio lógico não uma construção puramente mental, como os filósofos, mas de aplicação imediatamente prática. Se os filósofos vivem à procura de propor questões e respondê-las, os cientistas e inventores vivem à procura de soluções concretas para problemas concretos.

E os artistas, eles não têm amor à sabedoria?
Evidente que sim.
Os escritores, os músicos e os pintores vêm a sabedoria por outro ângulo, não exatamente o da verdade, mas o da beleza.
Para eles a verdade não é nada sem a beleza.
É na apaixonada satisfação do gosto através da criação estética que eles atingem o ponto mais alto de suas vidas: a conquista do belo.
O belo é um conceito complicado, difícil de se traduzir, e para chegar a ele é necessário muita transpiração e muita inspiração.
A obra de arte anseia tocar a perfeição, como um amante quer tocar o ser amado. Mas o artista teme fazer o papel exatamente de um amante, apaixonado por algo que só ele reconhece como belo.
O amante tem todas as desculpas do mundo. Sobretudo porque seu objeto desejado tem um só propósito: satisfazê-lo e fazer-lhe companhia.
Já o artista, ao contrário, quer compartilhar com o mundo sua experiência de maravilhamento, e para isso deve fazer com que o mundo também se apaixone.

Assim, filósofos, cientistas, inventores, artistas – todos fazem do pensamento o que um atleta faz do corpo: seu instrumento incansável.
A um corpo – já que falamos em atleta numa época em que o culto ao corpo está muito popularizado – é fundamental cultivar, isto é, malhar, alimentar, cuidar. Por que com um cérebro seria diferente?
Uma mente que não se exija o máximo é uma espécie de corpo indolente, sedentário. Um cérebro que não se exercite, não faz com que as ligações entre os bilhões de neurônios se desdobrem em novos milhões de ligações, nunca chegando a conclusões – e dúvidas – novas, originais, fortes.
Somos uma máquina, sem nenhuma dúvida, e uma máquina precisa de reparos e de manutenção.
Parada, ela estraga.
Em movimento, pode então mostrar toda sua serventia e poder.
Nossa cabeça necessita, exige combustível. Trocando em miúdos, informação. Com mais dados informados, melhor ela processa os que possui. Seu percurso vai além, acelera e cresce em fôlego, em alcance. Chega a lugares – a idéias – que nem sonhou antes, quando ignorava o que agora sabe. (09/08/2008)

MISTÉRIOS DA CRIAÇÃO LITERÁRIA 8


Quem não gosta de descobrir? Quem pode descobrir se não vê? Quem pode ver se não escuta? Quem pode escutar se não fala? Quem pode falar se não lê?
Na leitura está o caminho de uma série de mistérios. Continuamos aqui uma série sobre os mistérios da escrita criativa, da criação literária. Criação que nos ajuda a criarmo-nos enquanto seres cheios de mistérios.

VIII

Há perguntas que respondem mais que certas respostas. E há perguntas que exigem respostas. Abaixo algumas perguntas acerca de questões essenciais envolvendo a literatura e a vida literária.

1) O escritor é, por definição, um habitante das sombras mesmo, ou não será essa uma definição um tanto romantizada?

2) Tendo que escolher apenas uma das hipóteses – a fortuna de ter público ou a glória de ter crítica favorável –, qual você acha que seria a opção escolhida pela média dos escritores?

3) Mesmo respeitando a opção particular pelo recolhimento extremo de um Dalton Trevisan ou de um Rubem Fonseca, qual sua opinião sobre os reflexos dessa inclinação ao esconderijo na obra desses escritores – ela ajuda ou prejudica na divulgação e na compreensão de seus livros?

4) O conto parece ser o gênero de maior êxito entre os escritores brasileiros. Vide Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Moacyr Scliar e tantos outros. Por que essa vocação brasileira para o conto, até porque se sabe que romance vende mais?

5) Qual sua opinião sobre uma certa rejeição do público ao conto? Considerando-se o pouco hábito de leitura e o menor tempo disponível ainda, é praticamente incompreensível que romances enormes vendam com muito maior facilidade que histórias curtas.

6) Quanto de crítico tem que ter o biógrafo de um escritor, 50%?

7) Não será o escritor alguém que tem dificuldade em aceitar quem não se devora por dentro, com o ácido da autocrítica, por não estar criando (não importa o quê)? Afinal, o escritor, que cria para criar-se, sabe que todos não estamos prontos. (09/08/2008)

MISTÉRIOS DA CRIAÇÃO LITERÁRIA 7


Quem não gosta de descobrir? Quem pode descobrir se não vê? Quem pode ver se não escuta? Quem pode escutar se não fala? Quem pode falar se não lê?
Na leitura está o caminho de uma série de mistérios. Continuamos aqui uma série sobre os mistérios da escrita criativa, da criação literária. Criação que nos ajuda a criarmo-nos enquanto seres cheios de mistérios.

VII

A literatura, como a arte em geral, como a vida, é feita de paradoxos, e obedece ao ritmo imprevisível e caprichoso das paixões humanas, dos vícios, dos enganos, do desconhecido. Tenta-se aqui iluminar um pouco esse reino nebuloso e contraditório.

“Talentos – O sujeito, afinal de contas, era medíocre, porque, sendo talentoso, deu vez a um medíocre em sacrifício da própria genialidade, posta de lado pela dúvida sempre cruel da autocrítica, a princípio uma virtude, a seguir, um vício. Não acreditava no outro, claro, porém, incapacitado de crer em suas virtudes e engenho, preferiu render-se ao movimento contínuo, talvez monótono, da necessidade de afirmação do colega, sem talento algum, sim, entretanto tornado mais forte que ele diante da indiferença do mundo.
Por outro lado, que talento o do sujeito que, sendo medíocre, sentiu a hora única na brecha mínima que foi a dor atroz da profunda insatisfação do amigo talentoso, e naquele segundo de hesitação deixou-o para trás, permitindo que ficasse inédita uma novela lancinante do outro, e que as portas se abrissem ao vazio fútil e fácil que foi então sua ascensão imposta pelo simples desejo de subir. Desejo que ninguém segura. E que o universo, feito de matéria escura, aplaude.”

“Legado – Anos e anos tentando, e fracassando como um miserável sem sol. A obra não lhe vinha, não de forma aceitável. Aliás, vinha-lhe a obra, sim, mas em forma de condenação: sua derrota cotidiana, o peso terrível de acumular fracassos. Faltava-lhe, talvez menos que engenho, paciência. Sua vida tinha sido até então aquela marca inapagável do insuficiente. E perto dele só ficavam os que não desejam obra alguma, os que aceitavam o silêncio vazio.
Até o dia em que de repente ele achou a direção certa, e fez o que sempre sonhou, e acertou, ah, acertou, sem nenhuma dúvida acertou. E quis ficar quieto, quando terminou de criar, abraçado a um resto de rancor feliz por enfim ter acertado. Imaginou finalmente pertencer-se.
Porém, o primeiro homem que passou por perto teve a atenção despertada pela obra, e interessou-se, e logo outro, e outro, e outro. E em pouco tempo muitos estavam querendo aquilo para eles. E pegaram o que ele achava que lhe pertencia. E, antes mesmo de transformarem a obra em outra coisa (ele já o pressentia), levaram-na para bem longe. E só lhe restou começar tudo de novo, órfão do que criara, reiniciando o doloroso ritual para que nascesse outro filho ou obra, que também lhe seria arrancada, se a fizesse atraente, e deformada bem longe dos seus braços.” (09/08/2008)

MISTÉRIOS DA CRIAÇÃO LITERÁRIA 6


Quem não gosta de descobrir? Quem pode descobrir se não vê? Quem pode ver se não escuta? Quem pode escutar se não fala? Quem pode falar se não lê?
Na leitura está o caminho de uma série de mistérios. Continuamos aqui uma série sobre os mistérios da escrita criativa, da criação literária. Criação que nos ajuda a criarmo-nos enquanto seres cheios de mistérios.


VI

Criar é um risco, um salto sobre o fosso, às vezes direto no fosso. Implica contradições, absurdos, olho no olho do medo mais puro. Criar, artifício de quem, ao menos em tese, já estava criado, é continuar; entretanto, é também nascer, e isso implica algumas mortes. A seguir algumas frases acerca da arte e suas miragens, distorções e verdades.


“Shakespeare sabia tudo de Ben Johnson e nada de William Shakespeare.” – Manuel Urbano

“A disciplina pode brutalizar um homem, mas a falta dela certamente brutaliza uma obra.” – Anthero Luz

“Nada há mais feio que dar pernas longuíssimas a idéias brevíssimas.” – Machado de Assis, em Dom Casmurro, que está completando cem anos de publicação.

“A questão não é: Como podemos manter a imaginação pura, protegida dos ataques da realidade? A questão tem de ser: Podemos encontrar uma maneira de fazer as duas coexistir?” – J. M. Coetzee

“Cuidado: a autocrítica, a princípio, é uma virtude, mas a seguir, um vício.” – Teófilo Lins de Albuquerque

“Ritmo parece coisa de poeta (e é), mas não pode ser dispensando nunca, por ninguém, não importa o gênero. Os grandes ensaístas (Antônio Cândido, José Guilherme Merquior, Davi Arrigucci Jr., José Miguel Wisnick) possuem um ouvido atento ao escrever, imagine os grandes ficcionistas, que vivem de criar climas, atmosferas, e não há clima sem rigorosa atenção ao tempo (e inclusive à ‘música’) da situação criada.” – Anselmo Bicalho

“Segundo Mario de Andrade, conto é tudo o que o autor tiver chamado de conto. Preguiça do Mário, ou ironia. Melhor partir de um pressuposto mais consistente. Conto é uma narrativa ficcional breve, cuja brevidade exige compactação (essa palavrinha tão up-to-date no futebol), compactação entre todos os seus elementos.” – Otília Meirelles

“Consolo: Shakespeare, como a maioria de nós, não sabia o que estava fazendo.” – Anthero Luz (09/08/2008)

MISTÉRIOS DA CRIAÇÃO LITERÁRIA 5


Quem não gosta de descobrir? Quem pode descobrir se não vê? Quem pode ver se não escuta? Quem pode escutar se não fala? Quem pode falar se não lê?
Na leitura está o caminho de uma série de mistérios. Continuamos aqui uma série sobre os mistérios da escrita criativa, da criação literária. Criação que nos ajuda a criarmo-nos enquanto seres cheios de mistérios.

V

Dois breves diálogos, quase dois minicontos, pocuram refletir sobre o artista e seu perfil fugaz e irônico. O escritor é sempre uma figura inclassificável, frágil e forte – como qualquer um.

Um livro que não poderia ser escrito

– Não há o que eu não escreva!
Quem se vangloriava era o Elizeu, inchado como um garnizé. A Bruna assombrada:
– Qualquer tipo de livro?
– Qualquer – confirmava o Elizeu.
– Até poesia?
– Ih, isso é fichinha...
– Rimada?
– Rimada.
– Metrificada?
– Metrificada.
– Cheia de imagens e símbolos?
– Cheia de imagens e símbolos.
Estava ficando monótona aquela conversa. Elizeu até se condoeu da modéstia da exigência da Bruna. Poesia! Isso é coisa pra quinze minutos, vinte. Crônica também é rápido, é só bate-papo. Conto demora um pouco mais, digamos, umas duas horas. Sabe como é, a situação, o clima.
Tinha uma coisa que ele nunca tentara: romance, mas romance é um troço deste tamanho. Mais de cem páginas, um monte de personagens, um monte de cenas, diálogo pra mais de metro – a Bruna nem ia lembrar que existe romance.
Só que a Bruna lembrou.
– E um livrão assim, tipo ...E o vento levou?
Pô, o catatau da Katherine Mitchel tinha oitocentas páginas.
– Aquela chorumela? Tá louca, mulher!
– E daí, você faz ou não faz?
– Ah, não, um desses eu não faço... – tartamudeou.
Bruna sorriu, compassiva.
Elizeu reagiu, ferido de morte.
– Não faço porque não quero, só por isso. Já imaginou quanto poeminha e quanto continho eu ia deixar de fazer só por causa de um negócio arrastado assim?
– Quer dizer que não posso esperar um romance de você?
– Não! – Elizeu estava vermelho, mais um pouco e se descontrolaria.
– Que pena...
Elizeu saiu apressado, sem nenhuma pena da Bruna.


A namorada e o escritor

A namorada lê o que o escritor escreve e estremece.
– Quanta bandalheira! E você não é bandalho...
Continua:
– Quanta loucura! E você não é louco...
E arremata:
– Quanta crueldade! E você não é mau...
– Sou um escritor – ele responde –, e um escritor é uma espécie de ator completo, até de um super-homem.
– Que faço eu – pergunta ela, preocupadíssima –, tão vulnerável contra tantos poderes? (09/08/2008)

MISTÉRIOS DA CRIAÇÃO LITERÁRIA 4


Quem não gosta de descobrir? Quem pode descobrir se não vê? Quem pode ver se não escuta? Quem pode escutar se não fala? Quem pode falar se não lê?
Na leitura está o caminho de uma série de mistérios. Continuamos aqui uma série sobre os mistérios da escrita criativa, da criação literária. Criação que nos ajuda a criarmo-nos enquanto seres cheios de mistérios.

IV

Qual a receita, qual o segredo da ficção? Existe essa receita, esse segredo? O leitor nem quer saber, quer logo a ficção que o seduza, a história que o comova. Mas o escritor quer saber. Quer e tenta e parece que.... Nosso colaborador Anthero Luz conta uma história e com ela nos revela se o escritor compreende ou não o mistério de sua arte, quais os ingredientes que a compõem.

“O escritor Alaor é sério pra burro. Não quer conversa fiada. Passa as madrugadas na internet, as manhãs na biblioteca do pai, desembargador aposentado, e durante a tarde ele debulha para uma página em branco impotente todos os dados que acumulou. Cruza-os, relaciona-os, uma informação levando a outra, e outra a outra, e assim por diante. Alaor não quer conversa fiada, por isso pratica o alterofilismo mental, sustentando um conhecimento cada vez mais concreto, com fatos, figuras, teses mais do que respeitáveis. O diabo é que um crítico, de quem sempre falaram bem a Alaor, e ao qual Alaor pediu socorro acerca de seu mais recente romance, perguntou: “romance? Cadê as personagens?”
Alaor apressou-se: “mas e o deputado, e o senador, e a mulher do senador, e o cientista, e o professor, e?” O crítico o interrompeu: “personagens se movem, gesticulam, suam, vagam, mais perdidos que encontrados dentro de um romance. O que você faz é listar uns nomes, umas ocupações, e mencionar situações em que essas figurinhas carimbadas se pronunciariam. Isso é só tema, pretexto, ponto de partida. Você não chegou a começar a fazer arte, Alaor, parou antes.”
Alaor é um sujeito do qual se pode dizer tudo, menos que não seja sério. “Tem um monte de idéias interessantes na história.”
“Mas não tem história”, devolveu o crítico.
“Mas e o enredo que montei?”
“Montou, Alaor, montou. E enredo é um troço pra lá de complicado. Deve ser a parte mais invisível da ficção, aquela que, quando o leitor foi ver, já aconteceu. Tudo, aliás, deve ser invisível, os personagens sendo o que são sem o autor gritar para mostrá-los. A trama se desenrolando sem trama alguma, uma cena levando a outra, com suavidade. Ou com sobressalto, que se há de fazer, mas um sobressalto do qual até o autor se ressente.”
“Mas tem tanta frase inteligente no meu livro.”
“E o que isso tem a ver com ficção?”
“Mas aí fica meio confuso...”
“Nada melhor que a confusão para revelar um caráter, um drama.”
“O perigo, caro crítico, é o escritor cometer muita conversa fiada.”
“Literatura é conversa fiada.”
“Eu sou sério demais”, advertiu-o Alaor, ofendido já, e orgulhoso da própria seriedade.
“A diferença é que arte é forma; e você, que só vive das idéias, é formal.”
“Não, não, não!”, horrorizou-se Alaor. “A literatura não pode ser tão superficial...”“Num certo sentido, é bastante. Vive de olhar demoradamente a superfície, onde bóiam sinais remotos de algo que se agita no fundo – e nunca será revelado.” (09/08/2008)

MISTÉRIOS DA CRIAÇÃO LITERÁRIA 3


Quem não gosta de descobrir? Quem pode descobrir se não vê? Quem pode ver se não escuta? Quem pode escutar se não fala? Quem pode falar se não lê?
Na leitura está o caminho de uma série de mistérios. Continuamos aqui uma série sobre os mistérios da escrita criativa, da criação literária. Criação que nos ajuda a criarmo-nos enquanto seres cheios de mistérios.

III

Morto o autor, se gostamos dele, queremos mais. Porém, cabe a pergunta: devemos querer? Morto, não terá ele concluído sua obra? Por que não nos entregarmos a simplesmente relê-lo. Pronto: reler é a forma mais aperfeiçoada de ler. Chega. O defunto já esfriou, não quer publicar mais. Simplesmente porque não produz mais. Mas hoje costuma-se desenterrar até bilhetes para o gerente de banco do escritor e querer dar à luz esses bilhetes como se fossem, porque assinados por quem são, obra a se considerar. Um crime. Nosso colaborador Anthero Luz reflete sobre esta questão polêmica:

“Morre fisicamente o escritor, célebre pela qualidade de sua obra. Imagina-se que a posteridade lhe será grata, reconhecendo seus méritos e povoando as décadas vindouras de ecos do aplauso que ele conheceu em vida. Entretanto, um professor de literatura mais afoito burla a vigilância precária da viúva e arranca das mãos hesitantes da mulher páginas que o autor desejaria enterrar consigo. Está feito o crime.
Um mês depois de morto sai em edição de luxo a primeira besteira no conjunto da obra do autor, até então cuidadíssima. Quer o tal professor, a exemplo do mau-exemplo Max Brod, impedir que caia no esquecimento o que o autor quis assim. Max Brod teve sorte, o Kafka inédito de fato valia a pena, mas foi uma exceção, a regra é o defunto ter razão, e o que deixou sem a luz do público de fato merecer tal escuridão.
Fizeram isso com Fernando Pessoa depois de morto, cujo “baú inesgotável” de obras-primas efetivamente deu obras-primas, mas também muita bobagem, como O Livro do desassossego, que nunca deveria receber a atenção que a maioria do material escondido mereceu. Com Pessoa tinha um atenuante, como com Kafka: o autor foi exigente além da sensatez, e realmente escondeu o ouro. Mas o normal é o autor esconder aquilo que não desejaria mesmo que lessem.
Morte feliz a daquele escritor cujo último livro publicado em vida é, sim, o último livro de sua bibliografia. E os seguintes não passem de homenagens de terceiros, clubes de leitores, associação de críticos, enfim, essa outro espécie de desdobramento, cá pra nós, lamentável, mas pelo menos com o honestidade de ostentar a assinatura de gente viva que pode ser responsabilizada pelos próprios erros. Morto o autor, leva para o túmulo a paz de enfim ter descansado. Isso quer dizer simplesmente que agora não escreverá mais. Nunca mais. E não publicará mais. Nunca mais. O que já estava, ficou. O que não aconteceu com ele, não pode mais acontecer. A obra precisa ser dele para depois ser nossa..” (09/08/2008)

MISTÉRIOS DA CRIAÇÃO LITERÁRIA 2


Quem não gosta de descobrir? Quem pode descobrir se não vê? Quem pode ver se não escuta? Quem pode escutar se não fala? Quem pode falar se não lê?
Na leitura está o caminho de uma série de mistérios. Continuamos aqui uma série sobre os mistérios da escrita criativa, da criação literária. Criação que nos ajuda a criarmo-nos enquanto seres cheios de mistérios.

II

O que é a obra? Que condições a propiciam e o que exatamente a anuncia? Como pode ser reconhecida? Fomos buscar auxílio junto a um valioso colaborador, que fez questão de afirmar que “obra que é obra não tem espelho”. E, advertindo-nos, “não perguntem ao autor”, mandou-nos a seguinte história:

“O homem termina mais uma de suas peças. Lê novamente o que acabou de escrever, francamente incomodado. Mais que as dúvidas habituais que assaltam os que pensam e produzem, em regra pressionados por prazos, o espírito do homem é tomado de um tormento já rotineiro: novamente vê no que criou a marca do excesso, do imperfeito.
Relê tudo com uma atenção desconsolada. Lá estão, bem claros, o enredo improvável, cheio de episódios de exceção, os personagens descontrolados, neuróticos a um passo do inverossímil, e suas falas então, literárias em demasia, de uma profundidade só cabível a um artista, não a um homem ao qual a arte não elegeu.
Sente-se incoerente esse homem que escreve. E, mais que incoerente, falho. Aceita a incoerência (não é ela moeda corrente em suas obras?), assim como aceita o descontrole emocional, o ridículo nos atos das criaturas que põe em cena, o despropósito de suas decisões, a natureza quase bestial de algumas, quase divina de outras. Aceita isso, sim, mas aceita como aceitamos um ritmo cego que nos toma e nos carrega e logo que ele acaba saímos em outra direção.
E tudo isso que o homem escreve é feito numa linguagem que pinga, ressuma, reverbera. Muita música, muita imagem, muita ação, muita legenda. O homem sente-se francamente cansado. Cansado de tudo. Sabe que errou miseravelmente em seu projeto estético. Perdeu desde a primeira linha a possibilidade do equilíbrio. Qual seu destino?
Evidente: cair. Cair do mais alto sonho até a mais baixa realidade. O mundo é impiedoso, disso ele sabe. Que glória poderá esperar? Nenhuma. Claro que nenhuma. O consolo é o relativo sucesso mais imediato – por enquanto ele está vivo e é isso o que mais importa – que seu trabalho faz junto ao público, vulgar, como se sabe.
Quando acaba o espetáculo, ele volta para casa, e logo já bola outra peça descabelada, outro exagero, outro conjunto de vilanias, ridículos, incongruências, únicos sinais que lhe acenam e depois dos quais ele duvida que tenha chegado ao ponto certo.Um dia morrerá, não se ilude, tudo terá acabado, mas as dívidas não se acumularão, alguma herança material restará, e se seu nome – William Shakespeare – tiver sido varrido da face da Terra, ele não estará presente para lamentar esse resto de silêncio. Até porque concordaria com ele.” (09/08/2008)

MISTÉRIOS DA CRIAÇÃO LITERÁRIA 1


Quem não gosta de descobrir? Quem pode descobrir se não vê? Quem pode ver se não escuta? Quem pode escutar se não fala? Quem pode falar se não lê?
Na leitura está o caminho de uma série de mistérios. Começamos aqui uma série sobre os mistérios da escrita criativa, da criação literária. Criação que nos ajuda a criarmo-nos enquanto seres cheios de mistérios.

I

Quem é o escritor? O que faz com que ele escreva? Fomos buscar na literatura portuguesa algumas vozes que dessem conta dessa resposta difícil, quase sempre paradoxal.

“Eis tudo – obstinação. Ela nos une e nos diferencia, e nos prende por laços invisíveis. Não conheço outra forma de encontrar termos para nos definir. (...) Crença humilde porque regressa ao princípio, e produzindo uma teia sem pensamento como a aranha, no entanto tem a ambição parente das coisas criadas por Deus, porque se radica na intuição de que a palavra, mesmo caótica, quando pronunciada em voz alta, adia indefinidamente o fim.” – Lídia Jorge.

“Só enquanto escrevo é que geralmente vou sabendo o que de fato desejava escrever. Daí decorre um acentuado gosto (...) pela aventura, tanto das palavras como dos seres. O que mais me importa é partilhar com os outros o conhecimento (que também julgo ter certa invisibilidade) do real. Ou, pelo menos, a ilusão desse conhecimento.” – David Mourão-Ferreira.

“Para o escritor tudo é diverso. Porque o imaginário não está só nele e nos livros que escreve – e sim também em quantos os lêem e vivem. Além disso, nenhum escritor consegue revelar duas vezes o segredo das coisas que materialmente não existem. Por isso mesmo não saberei descrever a essencialidade, o espírito, o sentido do irrepetível, a voz extinta das personagens e dos livros que comigo navegaram o tempo e depois se extinguiram na vida e no mundo dos meus leitores. De tudo o que escrevi, sobram-me suspeitas, noções elementares, grandes desejos astutos, murmúrios que estão para o tempo como o ato de ter escrito pode estar para o destino eterno da literatura.” – João de Melo.

“A arte é um absoluto porque fala não à nossa razão mas à emotividade que não discute. Ela opera-se e determina-se como a verdade, a qual assenta não em operações racionais – como nunca assentou – mas no que chamei um dia o nosso ‘equilíbrio interno’ onde se decide quase tudo o que à vida importa. As razões são a sobra do que nesse equilíbrio se decide, para um protocolo da nossa sobrevivência.” – Vergílio Ferreira.

“Aquele que me habita e escreve, vive uma espécie de treva. Quase nada sabe da sua própria escrita. Menos ainda falar dela.” – Al Berto (o nome é esse mesmo, moçada).

“O melhor dum escritor é ser razoável no entendimento, comum no convívio, justo no aconselhar, benigno no julgar e sempre alerta perante as glórias. (...) Também não é bom ser austero demais, nem culto, que pareça solidão fingida. (...) Arregaço as mangas, não para escrever um livro, mas para me acotovelar com a multidão.” – Augustina Bessa-Luís.
(09/08/2008)

terça-feira, 5 de agosto de 2008

CULTURA BRASILEIRA E CULTURAS BRASILEIRAS



Há Brasil na cultura?

A cultura de um país com as particularidades do Brasil só pode ser considerada em um sentido plural, resultado, como Alfredo Bosi diz (“Dialética da colonização”, Companhia das Letras, 1992), “de um processo de múltiplas interações e oposições no tempo e no espaço”. Quando se fala em cultura brasileira imagina-se algo absoluto, ou quase. No entanto, é preciso compreender – incorporando à nossa leitura da realidade, mesmo que voltada ao recorte da Cultura – os elementos econômicos, sociais e, claro, culturais que constituem a identidade própria (nossa) e dos outros, enquanto sujeitos sociais que interagem no processo histórico, a partir da sua condição de gênero, raça e classe.
Uma operação complexa, em resumo, que passa por evitarmos algumas armadilhas como, principalmente, a do amordaçamento de vozes que brotam naturalmente em nossa periferia (nem por serem marginalizadas, vozes menos nossas).
A dimensão histórica não é unidimensional. Desdobra-se, curva-se diante de tantas épocas (cinco séculos) e tantos poderes, muitos deles organizados para solapar uma identidade nacional e simplesmente transplantar uma do país colonizador ao país colonizado.
Assim, é preciso, em cada texto que lemos, em cada música que escutamos, em cada filme que vemos, etc. (no caso de produtos nacionais) qual Brasil se manifesta e, sobretudo, se de fato há ali, resistindo, uma manifestação brasileira.
Um exemplo é Lima Barreto, brasileiríssimo em tudo. E desse esforço de romper com uma dicção lusitana em nossa literatura (dicção que prevaleceu até o ocaso do século XIX) nasceu a Semana de Arte Moderna, um capítulo à parte na resistência contra uma versão em falsete da literatura portuguesa e/ou francesa, influentes de tal forma no Brasil de então, que os modernistas – e, antes deles, Lima Barreto – resolveram botar pra quebrar, partindo pra gíria, pros fatos históricos mais imediatos, sacudindo o verniz do discurso tradicionalmente acadêmico e misturando à sua fala a fala “inculta” do povo, com piadas em forma de versos, sintaxe às vezes estropiada, neologismos em número elevado como forma de resistir.
Esse tipo de resistência tem um século, quem sabe mais. Ainda hoje resistimos, e tal esforço não é o sacrifício isolado de um país de Terceiro Mundo. Está aí a França, a esfregar no insidioso processo da inserção de palavras inglesas em seu dia-a-dia o equivalente no idioma francês para objetos, seres e situações.
Desta forma, cabe a pergunta: quanto há de Brasil em nossa cultura?
Muito, é a resposta. Muito se formos buscar o país certo na cultura certa. Há, inevitavelmente, incertezas no processo cultural, e nessas regiões de incerteza habitam obras, artistas, manifestações de fato postiças. Aí não encontramos Brasil algum. Ou, de alguma forma, encontramos um Brasil esquálido, subserviente.
Que, com um pouco de otimismo, vira Brasil aos poucos.
Do rock de garagem, colado no rock inglês ou norte-americano, passa-se a um roque que progressivamente adquire cor local. E que encontra seus temas no caos urbano REAL de nossas metrópoles.
Da música sertaneja, há trinta anos tributária da música country e do faroeste hollywoodiano, passamos aos poucos a um auto-reconhecimento com a “infiltração” cada vez maior da cultura nativa da região Centro-Oeste.
Apesar de tudo.
Tudo.
Porque o processo de assimilação de uma cultura alienígena foi fácil, sem defesa, propagado por uma política imperialista que pôs o país e seu povo a serviço do invasor (não há outra palavra para isso).
Desta forma, encontrar PELA PRIMEIRA VEZ em quase 500 anos a cara do Brasil, o jeito do Brasil, seu falar e sua filosofia, seu viver e seu sentir, seu dizer e seu estar, seu ser, em suma, tem sido uma aventura muitas vezes paga com a vida, como é a trajetória de heróis culturais que viveram num isolamento típico de sacrificados.
Guimarães Rosa, brasileiríssimo, só foi saudado como gênio, num primeiro momento, porque ninguém o entendia. Afinal, escrevia como que num dialeto – o dos vaqueiros do sertão das Gerais, linguagem à qual Rosa acrescia sua inventividade lingüística.
Ao mesmo tempo, escritores como Valdomiro Santana, no norte, e Simões Lopes Neto, no sul, tinham que esperar quase um século para serem lidos e compreendidos. Valdomiro ainda não foi. E o gaúcho Simões Lopes Neto começou a ser reconhecido quarenta anos depois de sua morte.


Diante da TV

A perda da dimensão histórica é uma morte simbólica pior que muita morte real. Um genocídio, na verdade, que atinge um enorme contingente de espectadores diante de um artefato artístico (um filme, uma novela, uma música, um quadro, um livro). O que ocorre é que a obra de arte, comprometida com o meio no qual é veiculada (meio devedor do mercado, mercado soberano sem uma política cultural saudavelmente mediadora), essa obra de arte busca a facilidade e a superficialidade. Essa facilidade se traduz na pressa com que é produzida essa obra, e essa superficialidade se traduz na forma com que a obra não mergulha fundo na realidade do país onde está sendo produzida.
Daí que diante de tal obra, como pode o fruidor potencial de tal “arte” reencontrar-se nela? Primeiro, porque ele estará ausente como personagem e como tema. Não sendo agente histórico (porque foi alienado dessa história, já que alienou-se dela e nela), fica à margem do que é discutido na obra. Aliás, não há discussão. A obra serve tão somente para requentar preocupações remotas de uma outra terra que governa a terra onde o espectador mora. No nosso caso, temas caros aos Estados Unidos, visão norte-americana de relacionamento com o mundo e com os povos, arte norte-americana, e arte de segunda categoria mesmo lá, é bom que se diga.
O espectador não percebe que está sendo traído. Pior, que estão roubando-lhe o país diante dos próprios olhos. Pior: que o estão emudecendo, tirando-lhe a voz que seria igual à do vizinho, por exemplo, e os personagens que ele assiste não falam, nem como ele, nem como o vizinho. Falam como quem?
Ora, como falam figuras convenientes à política exercida pelos países dominadores. Sem contestação, sem visão crítica, sem reconhecer minorias, sem reconhecer diferenças, sem admitir a enorme diversidade cultural entre os povos e até dentro de um mesmo povo, como é o caso do Brasil.
País-continente, como ficou consagrado, porque sua extensão territorial e sua divisão em regiões lhe dá a característica plural de ter no mínimo umas cinco realidades bem específicas, especiais, autênticas, e merecedores do melhor registro, seja ele estético ou histórico. A realidade do litoral. A do pampa. A do sertão. A da floresta amazônica. A das metrópoles. Esta classificação é só uma possibilidade. Aí teríamos cinco culturas dentro de uma mesma cultura.
Porém, há mais possibilidades. O que seria uma riqueza, e é. Mas o processo cultural, assimilacionista, abre mão dessa riqueza e a substitui pela pobreza do discurso hegemônimo do capital estrangeiro internacional, que aqui aporta e aqui discursa. Temos os ouvidos alugados.
Outra possibilidade de classificação: a cultura do rico, da classe média e do miserável. Três culturas. Outra: a erudita e a de massas. Duas culturas. E certamente poderemos encontrar outras classificações, por etnias (embora seja um caminho perigoso, chegando ao racismo).
A verdade é que irônica e perversamente há uma trilha na História que nos desviou do único rumo aceitável, o que nos leva ao coração de nós mesmos: um povo desigual, num país desigual, com florestas e mar, com algumas das maiores cidades do planeta e vilarejos perdidos no fim do mundo, e que pode e deve dialogar consigo, ou monologar, se for o caso. A realidade de São Paulo. A de Ouro Preto. A de Uruguaina. A de Fortaleza. A de Belém. Temos aí, por certo, cinco registros bem diversos. Cinco ilhas. Que ficaram isoladas no imenso arquipélago brasileiro, condenado a ouvir uma só voz, muitas vezes num outro idioma, enquanto tantas vozes murmuram tantas histórias vindas de tantas bocas que logo se calarão. De desesperança, se não for de fome. (06/08/2008)

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

SEM CHANCE

Tá, tá, tá. Viver? Viver assim tipo o cara acreditar que a vida é uma coisa tão grande e importante como a palavra e-xis-tên-cia? O pessoal leva fé, não é não? Pois vejo um aviso prévio nisso tudo. Que vida que nada. Isso é coisa pra (desculpe o mau jeito) trouxa. Trouxa que é – vá lá! – esperto. Mas dessa esperteza eu me canso, tenho um desânimo que só vendo. Vida? Sei o que é, nada que se possa chamar de importante. Sei, sei. Roupa boa, saldo no banco que não te dê vergonha de dizer na frente dos colegas. Pois é, e os colegas. Cada um tem o seu ritmo, dizem. E tu te fodes enquanto eles se arrastam, saem para fumar no corredor, bebericar café de duas em duas horas, ir no banheiro, mijar ou retocar a maquiagem, sei lá quantas vezes. Vida é pra idiota, que se alegra com bobagem; pra louco, que é louco mesmo e enxerga o que quer ver; pra filho-da-puta, que só vai chorar pela mãe quando ela estiver morta. E, cá pra nós, não será por ela, será por ele. E ele não vai perceber que chorar por ele será por ela. Enfim, complicado demais pra essa gente demasiadamente ocupada em escalar a montanha social, alta. Como é alta, meu Deus do céu, aqui debaixo eu vejo. Vida é isso. Nada. Ou uma bosta que aparenta muito. O que é pior que nada, porque além do oco de sentido da coisa tem a pretensão de ser mais do que é. E eu não quero nada com a vida, entende? Não entende? Como não entender que alguém não queira nada com a vida? Não falo daquela, nos livros de ciências naturais, de zoologia, de botânica, de física, de astronomia. Falo da vida que arranjaram agora pra todo mundo consumir, a vida dos shoppings, das sextas e sábados à noite das baladas, dos domingos à tarde em estádio de futebol, dos churrascos de fim de semana apertando família que mente que é unida quando o que os une é uma cadeia de dívidas, favores em troca de outros piores, mais caros, um elo venenoso, criança sendo respondida com indiferença, impaciência ou com a alegria bestial dos que subestimam a imaginação infantil. Vida. Sei. Ouço sobre isso desde que nasci. Passei dos cinqüenta. Tenho tido que aturar essa merda de papo sobre a crise da meia-idade. Se fosse verdade, eu já tinha crise aos quinze. E tinha. Quem não tem, sendo capaz de ver ao menos um palmo além do nariz? Levei umas três décadas para descobrir isso: um homem é só uma máquina de enganar imbecis, inclusive a si próprio, produzindo risada e excreções fácil, fácil, ou uma máquina fria de subir ao pódio dos resultados que, afinal, são o que conta para falarem do sujeito enquanto ele respira e anda pelas ruas. Anda pelas ruas? Nananinanão. Rua está proibido. Viu o Rio de Janeiro? Viu São Paulo? Rua é para Catuípe, Veranópolis, Não-Me-Toque. Rua de fato é aquela que tem calçamento limpo, sem obstáculos, e árvores e gente passando e se cumprimentando sem pressa em perímetros urbanos de no máximo 30.000 habitantes. Mais que isso vira praça de guerra. Ou já vai virar, espera o próximo noticiário. Vida é pra fazer da mulher um poço de esperança com uma figura mitológica falecida, o Amor, esperança lançada na direção de um sacripanta, o homem cada vez mais infantilizado. Vida é pro homem virar no que é, um felino competitivo ou um relaxado cagando e andando para tudo, menos para ele mesmo, e isso quando no fundo ele não está, de fato, se lixando para absolutamente tudo, ele incluído. É caso para desistir? É claro que sim. Mas aí passaram os anos; há filhos na roda, sobretudo filhos; tem ex-mulher querendo te pôr na cadeia; tem ex-mulher querendo te pôr de novo na cama; tem ex-mulher, e pior que ex é sempre a atual, que custa mais caro, mais do que podes pagar. Vida, vida mesmo, era uma facada de prata do sol na água do açude quando se tinha sete anos. O açude hoje é um areião brabo de onde não se tira nada. O sol, com o furo da camada de ozônio, tá nos matando, que nem a bomba de Hiroxima, só que bem devagarinho. A lua virou piada desde 1969 quando os americanos foram lá e enfiaram uma bandeira listrada no cu daquelas rochas e ficaram dando pulinhos na nossa cara. Vida. Sei. (04/08/2008)