domingo, 3 de novembro de 2013

MAR DE POEMAS

 


BOAS INTENÇÕES

Meu coração está cheio delas
Pulsa lateja gane com suas palavras
Feitas da memória do melhor

Ele diz o que vivi, o que vivo, o que vejo
A luz cambiante, as árvores testemunhas
Para isso preciso edificar discurso

Não desenho, não toco um mísero instrumento
Resta então esse tom quase afogado
A desejar contar o que é bom

Homem e não anjo, carne sem asas,
Eu juro a verdade: que a amargura, na metamorfose,
Seja tão doce quanto a voz de minha avó

E então não seja amargura, nunca mais. Seja fé
Na vontade compartilhada, no prazer dado com prazer
De uma pessoa a outra. Construa-se a favor daquele que busca.

Minha intenção só condena o que condena
E eu, que já condenei, sei que era de medo
Mas agora falo sem parar na procura do perdão florescendo

Não aceito minhas antigas desculpas, minha preguiça
(Essa doença grave). Só aceito o que tiver de ser,
O que a vida me mostrar. Não fecharei os olhos

Não emudecerei, usarei todas as palavras, sim,
Mas só as indispensáveis, as que podem ajudar o outro
A ouvir. E a falar. Jamais voltarei a calar a voz alheia

Com o verbo gorduroso, pesado, escuro
Que eu destilava como se estivesse me vingando por estar vivo,
Quando vivo mesmo é que não estava.

Não estou cheio delas, as boas intenções. Estive vazio, esses anos todos.
Agora as boas intenções brotam, olham para tudo
E para todos. E contam, sem cansar, o que pretendem fazer.


A PÁGINA

A página não foi encontrada.
Juram: estava lá,
Para quem quisesse.
Busquei-a, sugiram tantas.
Uma até com o meu olhar.
Mas sei: não estava lá.
Testemunhas confirmam
E eu desconfio.
Era a minha, a minha.
Mas não estava lá
No exato lugar
(que lugar é esse?)
Em que neste momento transito
E os óculos tão cansados
Não me ajudam.
A página está
E não foi encontrada. Continuo
Como debaixo de uma chuvarada.
Atrás da página não encontrada.


ESTOU BEM DOS OLHOS?
                 Pensar é estar doente dos olhos
                                     Fernando Pessoa

Verdade, não estou pensando em nada. Nada
Me inunda a mente, absolutamente nada.
E no entanto, como é intenso esse
Instante em que estou sendo eu, esse
Agora em que meu corpo tremeria se eu
Não o agarrasse com força. Sim, não
Estou pensando em coisa alguma.
Mas o que sinto, essa emoção que não deixa
Nenhuma forma parada, ah, o que eu sinto
É tão enorme, possui uma força de derrubar
O que eu nem suporia pôr abaixo.
Mas venho, tudo que me faz, até a vazia mente,
E vou caindo todo eu e até a ausência do
Meu pensamento cai, caiu. Porque sinto, sinto muito.

QUEM PODE SER POETA

Eu é que não. Impossível
Ser aquele que quase canta,
Sem cantar,
Algo que nem é música e
Tampouco a prosa aprovaria.
Ao contrário do homem, o mundo
É que vive no poeta. E eu,
Não fosse a química, o expediente,
Eu estaria condenado até como simples
Homem que nunca ousaria um poema.
Ouso-os, os poemas?
Então é porque sou um homem que sabe,
Muito bem,
Sua impossibilidade. Com ela
Cria sua questão essencial
(Da qual amaria fazer parte):
Quem pode ser poeta?


EU EM MIM

Neste âmbito
Homem transido
Trazendo tanta memória
Tanto esquecimento
Habito
O incalculável espaço de um corpo
O coração bate tanto quanto
A cabeça dói. Ela,
Bate-se evitando a vizinhança
Da parede.
A parede é de ossos, músculos, carne
A parte mais frágil
Mas preciso desse amparo
Por isso paro, me escoro
No que em mim pede
Procuro dar-me e receber-me
Estou sempre à espera
Do homem que me espelha
E me espera também
Somos dois elementos
Dois seres, água e fogo
Para não queimar de todo
Para não afogar-me
Transito na estrada, pequena estrada
Que sou desde nascido
Assim aprendo com o tempo
E meu olhar enfim
Acompanha as horas.


CAFÉ DA MANHÃ

Um quase interminável bocejo
Depois os ossos estalando,
Um a um - todos.

Estou completo, mas é preciso
Escovar os dentes, reescovar
Lavar o rosto como se o redesenhasse
E sinto a pele me conhecendo
A cada manhã.

Penteio os cabelos, calculo
Que devo deixar libertos
Os movimentos que me levam
Até a rua, até a tua
Oferta
- incluindo alguma ameaça -,
mundo.


PRESO

Não posso sair
Do espesso texto
Balão de oxigênio.

É aqui, nele,
Nesta sintaxe ágora
Que me expando
Seguro-me ainda respirando
E me protejo.

Chamam de poema
Deem o nome que quiserem
A mim vem
como o ar, chega
Completamente aberto, espaço
Nele me deito
Nele posso caminhar.


POR AMOR À FICÇÃO

E não havia Paraíso nem Purgatório nem Inferno
Não existiram Adão, Eva, menos ainda um irmão assassino
De outro irmão. Ninguém levaria a sério Noé e sua barca
Menos ainda o superespetáculo de um dilúvio
De tal forma que eu, habitante desse território onde cresce
Um tal imaginário capaz até de pai sacrificar o filho
Por amor a um deus que o substituiu por um carneiro
Ah, eu, tendo de escutar todas essas histórias, incluída
A de um poderoso demônio a fazer gárgulas parecerem pombos,
Tornei-me, inevitavelmente, um fervoroso crédulo, um fiel
Seguidor de todas as literaturas, da argentina à russa. E
Nem poderia ser diferente.


A CABEÇA ABAIXO DAS NUVENS

Claro que não ando com a cabeça nas nuvens
Nem raspo o rosto ao rés do chão.
Subo escadas, desço até o porão,
Nada que gere vertigens nem me soterre.

Minha ossatura experimenta o equilíbrio
Permitido pelo que é natural, nada de
Corda-bamba que não nasci para equilibrista.
Andar sem o bambo ritmo dos bêbados,
Avançar à frente na certeza de não tropeçar.


Que mais eu quereria, numa hora em que espocam
Carnavais, torcidas organizadas e sua violência como uma efígie,
O trânsito de carros alarmado em suas buzinas, o de gente
Se debatendo nas feiras de liquidação?

Não. Não ando com a cabeça nas nuvens. Cada passo
Merece de mim o atento olhar antes de mover-me. Assim,
Não caio do prédio. Tão simples como o vento da primavera,
Conquisto metro a metro, vida a vida, esse tempo que é meu.


E NO ENTANTO SE MOVE

Tente escutar esses galhos,
Seus tímidos braços, e as folhas.
Calados, os pássaros
Dão saltos de um ramo a outro.
Indiscreta brisa não esconde
Que move a relva.

Mais abaixo, o murmúrio
Do córrego, cascalho se movendo
Sob a água.
Ninguém por perto.
Nuvens cobrem o sol
Num denso manto.

Uma aranha perde o equilíbrio,
A tempo agarra-se
À última linha da teia.
Ramos esparsos no chão,
Crestados e murchos
Pela luz de ontem e anteontem
E a umidade de alguns dias.

Os galhos nervosos buscam
Algum contato.
Não há estrada por perto, não
Existe sequer um cão perdido.
As aves movem a cabeça
E voam para longe.

Também o fio d’água segue
O rumo de algum encontro.
Talvez o sono reparador
Da densa voz da neblina.


DORMINDO

Ainda é o sono, embora
Lá fora me cheguem todos os sons,
Os movimentos acordaram
Dentro desse sonho de aqui estar
Pleno na vigília que impede
O sono de ir embora.

Ainda é o sono. Escrevo
Tudo que meus dedos podem.
A casa é a mesma
De ontem, quando fui deitar?
Não! Transmutada, ela ajeita-se
Debaixo do silencioso céu.

Durmo, os olhos minguados,
A mente aberta vendo imagens
Que o real não pode nem lhe cabe
E ao sono todas elas pertencem.
O sono: finalmente dou corda para ele,
E o sonho, despertado, acontece.


PROSA

Destilo esse verso, como se
Verso fosse, sendo prosa.
Ele posa de poema. Faz-se assim
E me chega sem ser leve, sem
Me trazer essa incansável música
Que eu queria escutar no corpo todo.

Só a cabeça, no entanto, vai segui-lo,
A um tão discreto ritmo sem batida.
Não são horas, dir-se-ia para o corvo.
Não são horas, mas o verso quer-se aqui.
Ele se ajeita como um desses mendigos
Na calçada apinhada, tantas coisas.
Impossível o descanso, a doçura
De uma imagem que abra uma porta
E permita desta forma o jeito solto
De um poema tão tisnado, tanta prosa.

Bem que existe esse esforço de levar
O que precisa ser dito, e tem de ser
De um modo muito mais que particular
Feito boneco alegre de ventríloquo.
O prosaico, insistente, vai se impondo.
Chega antes e diz por que tem de haver
Esse quando, essa malha a cobrir
Uma prosa desde o começo destilada.


LEITURA

Leio com atenção
Teus olhos piscando antes
De ficarem vermelhos. Leio
Teu distraído olhar
Entre as estantes do café
No fundo da livraria.
Vês tua crença no que enxergo
Se não lesse, se
Apenas visse
Um vendedor se aproximando.
Andam quase que por todo lado
Os frequentadores, tão fiéis.
Isso me faz bem, como o café
Que aqui, próximo a lombadas,
Beberico.
Leio a tua boca, entreaberta,
Buscando algo rápido a dizer.
Entanto, permaneces calada
E mesmo assim eu leio, leio.
Não poderia deixar de ler.
Leio teu nariz se entregando
A fruir todos os aromas que chegam,
Tuas pequenas orelhas de ratinho,
Tuas longas sobrancelhas de cigana.
Leio mais, porque é, lendo,
Que sentado posso lento assistir
Com concentração os movimentos
Daqueles que às mesas já folheiam
O título escolhido. E entre goles
Entregam-se a frases quase secas.
Eu sempre inverto e vejo só depois
Os livros. Antes gosto desse cheiro,
Do pó, da água quente, misturados
Ao açúcar que me chega com o sabor
De quem daqui a pouco erguer-se-á
E, de estante em estante, vai olhar
Sem gula e sede e já tendo lido muito.


NA BOCA

Língua com língua
se tocam, se batem
quase abatidas
o coração aos saltos
os lábios roçam
uma carne macia
como na noite
agora é dia
a saliva unta
de um ser único
o outro a ser
em si, afinal,
dono de
seu momento.


POSTAR-SE

Posto-me disposto
E quase ereto
Certo de que irei
Reto, feito
Um lobo avançando
A lento passo
Na direção
Da presa
E mostrar-lhe
Já sem tempo de fuga
Minhas presas.


DEITAR-SE

Agora posso entregar completamente
Meu corpo depois de um dia inteiro
Pensando, correndo, pensando,
Assustado sobretudo consigo mesmo
E então eu permito que ele se renda!
Dou-me, quase, mas dou-me –
Não que seja como no amor –
Há algo de morte lenta nesse relaxar
E o prazer, que poderia vir, se esconde
Debaixo das cobertas, e onde mais?
Sei que é hora de guardar todas as armas
Dar repouso às ásperas batalhas
E desejar um sono impossível, sempre,
No seu início, impossível, sempre.
E essa palavra tão eterna me distrai,
Não embala, não conduz ao sonho, não
Faz com que eu caia no fundo do poço
Tão desejado. Ali mergulharia,
Pescaria os peixes mais azuis,
Dormiria como dormem aquelas pedras
Tão ovais que a manhã me ofertou.
Guardei-as num cesto sobre a estante
Que tenho aqui no quarto entre outros quadros
E livros e cds lá do barroco. Já um ronco
Me acorda e me vejo dormir por meia hora.
Mas é o grande sinal, é o primeiro de todos
Os avisos de que o dia terminou.


O AMOR E SEU SILÊNCIO

Sabe o amor calar, mesmo
Quando sua força de amar
É daquelas de dar urros
Distribuir murros
Juntar o Pacífico e o Atlântico
Nos olhos mais fundos
Que as crateras do mar lá no meio.
Sabe ficar quieto, embora
Inquieto a toda hora, demonstre
Que algo não vai bem.

Mas as pessoas acreditam em discurso,
Nas declarações, nos exageros.
E ainda que o amor jamais tenha sossego,
Age como se soubesse toda a calma
Que habita a planície lunar.
O amor não conta, se não quer contar.
Mantém seu segredo com uma força
De titã, uma decisão que nem o experiente deus
Poderia tirar. O amor não consente que digam
Seu santo nome em vão.


NÃO SEI RIR

O humor salva, sempre soube.
Rir é remédio, impulso. Mas o que me coube
É esta cara séria, expressão grave,
Um modo de ver em tudo o risco,
A ameaça disposta a cumprir-se,
Em vez de flores e borboletas, o cisco.
Não é mau-humor. Meu temperamento
Conduz à ansiedade, e então avanço
Através das calçadas em si difíceis,
E seus tão renovados obstáculos.
Olho os rosto e ali procuro
Um olhar que me avise “salve-se!”.
Mas riem, estão distantes enquanto eu
Enxergo o metal da tarde cada vez mais denso.


O MORTO

Puseram-no tão firme como nunca estivera
No caixão ladeado de velas,
No centro da sala onde flores não respiravam.
E dava pena ver seu cabelo como se fosse
Uma peruca. O rosto, outro rosto.
A pele estriava as veias vazias.
As mãos traziam o gelo de agosto.
Quase ninguém chorava e isso era
O que mais comovia: olhavam-no
Mas já não estava ali.
Quando tamparam tudo e enfim
O féretro seguiu até baixar à terra,
Alguns amigos suspiraram de alívio.
Assumia agora a sua real ausência.