domingo, 29 de março de 2009

RECRIAR-SE

O ser é tão-somente tema da filosofia. Poucos são, raros mesmo. E, no entanto, quem é não basta sê-lo. É fundamental – para sobreviver e, assim, ser – a representação do ser. E é aí que o Carnaval começa. Carnaval com quarta-feira de cinzas. Festa terminada em tragédia.

Sendo, seria o auge se o mundo fosse apenas espaço para a manifestação e expansão desse ser: eu (você). Mas o mundo é um espaço caro, um outdoor valendo os olhos da cara (e quem enxerga, isto é, tem o mergulho quase suicida de reconhecer as estremeções da vida, a tensa comoção diária da vida, as traições repetidas à vida que produzem a única “vida” admitida por quase todos, quem enxerga a esse ponto não chega a outdoor nenhum). Sem outdoor – e, claro, isto é só uma metáfora, mas uma metáfora próxima demais da realidade –, vamos sumindo, sumindo, até desaparecer por completo.

Cuidado. A máxima do futebol nunca foi tão válida. “Futebol é momento.” Pois arte – minha frágil moeda de troca – é momento. E passado o momento, a obra-de-arte realizada, o projeto conquistado, a ação cultural efetiva e efetivada, tudo isso tendo chegado a seu termo, sua conclusão, pipocam os reflexos, a visibilidade temporária semeia e acena com frutos logo ali. É regra que eles demorem. Não espere. Se esperar, terá perdido o momento. E a não ser que você tire da manga outra obra-de-arte, outro projeto, sua imagem se dispersará, “polvo de estrellas”.

Então só vejo saída – todas elas, a emergencial e a saudável saída para um passeio no mundo que pode vê-lo – se apenas você o ver primeiro: o mundo adora fingir-se de distraído, de não vê-lo até mesmo sem fingir, viciado em cobrar – repito – os olhos da cara para que você realize uma trajetória “livremente” em seu ágora claustrofóbico pela pressão do preço que lhe cobra. O mundo é um estúdio de televisão, é uma equipe de produção, é um marchand, um empresário, um agente literário, um produtor cultural. Sempre às voltas com a inacreditável demora em lhe dar uma resposta.

Você é quem tem de ter as respostas. Até as resposta de que precisa, além das que precisam. E o mundo carimba ou não, endossa ou não. E se carimba e se endossa e se diz “sim”, não vibre demais. É só um momento, quem sabe isolado e que nada garante para o próximo lance. Se você demorar, ele nem vai lembrar do que veio antes, não saberá dizer um único item da sua biografia. Você, enquanto está vivo, nunca tem biografia. Precisa morrer para darem por concluído o retrato.

E seu retrato (morto já, sem expectativa alguma mais), e nem ele, seu retrato, pode ficar esperando. Alguém da família, um amigo, um fã, um editor (se você foi escritor), precisam carregá-lo para cima e para baixo. O mundo cobra um aluguel exorbitante até dos mortos.
Vivo, então, nem adianta reclamar. É inútil e até injusto que tantos mortos ainda peçam passagem para viverem a vida atrasada que ficou por ser reconhecida, no que realizaram enquanto o mundo gastava os dias com simplesmente ser, sem precisar provar coisa alguma. Ele tem o espaço e o tempo, ele é o dono do que é mais caro. Ou você paga o preço, tornando o que você é num veículo que sirva como moeda de troca constante, ou você pode ser acusado de um estranho assassinato: o do artista que você passou a vida anunciando e que, segundo as leis do mundo – que é impossível chamar de critérios – nunca deu as caras.

Não deu mesmo. Deu obras. Mas quem é que está interessado nelas sem uma lendazinha pessoal a tiracolo?

Você é tímido? Transforme isso em mercadoria, urgente. Ou então esqueça. Recrie-se, refunda-se, refaça-se. Ou simplesmente adormeça e, quando acordar, aceite a suprema resignação de, depois de ter feito tanto, tornar-se espectador dos que além de produzir, produzem-se. (29/03/2009)

domingo, 8 de março de 2009

ESCREVI. E AGORA?

Pois é. O mais difícil foi feito. O incalculável desafio da criação. Você superou traumas, obsessões, obteve a necessária autocrítica para domar as ilusões enganadoras. E chegou, incólume, até o fim do livro com que sonhou um dia. Ele está pronto, e você o escreveu todinho, linha a linha. O que pode querer mais?

E quer! Quer publicá-lo. Por necessidade que outros compartilhem essa experiência indescritível de outra forma que não a do próprio livro que você fez. Essa experiência que tem vários nomes: minha obra, meu alívio, minha superação, meu presente para mim mesmo e, quem sabe para a Literatura, essa senhora caprichosa e exigente. Porém, para isso, é preciso achar a visibilidade certa ao produto do seu esforço e talento. E a visibilidade só virá numa boa edição. Começa assim a segunda etapa, tão misteriosa e desafiadora quanto a primeira. Pois é, publicar BEM é tão complicado quanto escrever bem.

Trabalhei cerca de 20 anos em meia dúzia de editoras, médias e grandes. Sem contar que tenho amigos escritores já publicados generosamente e escritores recusados tantas vezes que até passaram a se perguntar se não escolheram errado a ferramenta para expressar-se. Não escolheram, pode acreditar em mim.

Acontece que publicar BEM (nem perco meu tempo em comentar a decisão de publicar de qualquer jeito, isto é, pagando do bolso e fazendo uma edição artesanal, amadora, destinada, parece, a garantir que o livro NÃO EXISTA: não vejo sentido nisso), publicar BEM, garanto, é uma batalha incessante, repetida, e que começa a cada livro novo que você escreve, mesmo que já tenha publicado vários.

Sério.

O Brasil – sabemos – não é um país de leitores. Logo, não se pode afirmar com muita tranquilidade que exista um mercado livreiro. Não para a literatura nacional.

Óbvio, as exceções fora. Luis Fernando Verissimo, Lya Luft, Rubem Fonseca, João Ubaldo Ribeiro, Paulo Coelho, Mario Prata, que vendem muito bem, jamais enfrentarão esse problema. E mais uns 50 nomes que embora não vendam tão bem assim trazem prestígio à editora porque já possuem uma obra consolidada ou mesmo com poucos livros possuem um trânsito favorável no meio. Como em qualquer área, no mercado editorial também o fato de você ser bem relacionado com os nomes certos, de preferência dentro das editoras, garante aquela boa edição básica.

Todos esses autores mal chegam a 50 nomes, talvez alguns mais, se tanto.

Mas a maciça maioria é de gente que até ganha um prêmio polpudo em dinheiro de alguma instituição séria mas o autor é tão sério que não está aí para brincadeiras. Recluso em seus escritório, faz literatura de primeira porém não tem amiguinhos no meio e depende de que a editora aposte em seu livro. Como não existe mercado e ele, apesar de bom e de recentemente premiado (alías, o diabo é que é “recentemente”), ainda não construiu um público para si. Então, o editor o vê como um risco.

Livro é um produto como qualquer outro. Esta é uma lei inviolável para 90% dos editores, dos excelentes aos médios. Os ruins só publicam se você pagar. E sendo um produto como outro qualquer, deve gerar lucro, caso contrário...

Como gerar lucro se você tem a favor de si apenas o fato de ter escrito excelente literatura? Por acaso este país sabe lá o que é “excelente literatura”? Soubesse disso, e não comprava Paulo Coelho. Aliás, o mundo todo ignora o que seja, a ignorância não é privilégio no Brasil. Apenas somos um pouquinho mais especializados que a maioria.

Enfim, escrito o livro, na hora de procurar um editor decente prepare-se também para tomar tantos cuidados e agir com estratégias decisivas, observar detalhes ínfimos, agir com o rigor extremo, com a mesma obsessão que você teve na hora da criação artística. Publicar um livro numa boa editora é igualmente uma grande arte. Ou, no mínimo, tirar na loteria. (08/09/2009)

sábado, 7 de março de 2009

OUTROS INTÉRPRETES DO BRASIL



Que livros de ficção nacional um estrangeiro deveria ler para entender o Brasil e os brasileiros? Aqui um roteiro básico.


Três maçudos volumes envoltos por uma atraente caixinha (Editora Nova Aguilar, 4.616 páginas, R$ 220,00), organizados e apresentados por Silviano Santiago, mostram-nos como nasceu, cresceu e virou no que virou este país. Uma seleção de títulos onde se pensou gênese, ascensão, crises, choques históricos de uma terra onde parece haver muita cordialidade de fachada em cima de muito drama soterrado. Entretanto, isso seria leitura indispensável, sim, mas dureza de leitura. Problema nosso.
Agora, imagine um estrangeiro, instalado em algumas de nossas capitais, assolada pelas diferenças com que ele se depara. Vai se perguntar em que espécie de lugar, afinal, se meteu.
Tais estudos esclarecem muita coisa, mas não parecem ser o caminho mais adequado – e muito menos o mais prazeroso. Desta forma, é melhor indicar para outro tipo de leitor, ou para nós mesmos, a bela série Intérpretes do Brasil (a da caixinha), constituída pelos vol. 1: O Abolicionismo, de Joaquim Nabuco, Os Sertões, de Euclides da Cunha, A América Latina, de Manuel Bonfim, Populações Meridionais do Brasil, de Oliveira Viana, e Vida e Morte do Bandeirante, de Alcântara Machado; vol. 2: Retrato do Brasil, de Paulo Prado, “Introdução à História da sociedade patriarcal no Brasil” com Casa-Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos, de Gilberto Freyre; vol. 3: “Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil” com Ordem e Progresso, de Gilberto Freyre, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Júnior, e A revolução burguesa no Brasil, de Florestan Fernandes. Guarde esse tesouro na tal caixinha para vasculhá-lo durante meses a fio até que o nosso país percorra as suas veias, leitor, num fluxo natural.

Enquanto isso, socorra aquele viajante que não tem na alma a superfície leve dos turistas e deseja, de fato, entender o que houve aqui, quem habita essas terras, mas entender com o sabor de uma linguagem que lhe acaricie o ouvido e comova seu coração além de inquietar e iluminar sua mente.
É hora de levar a mão àquela inestimável e sempre refeita listinha dos grandes escritores onde repousam as obras que atravessaram o tempo dando voz a quem tinha e a quem não tinha. Se depender da listinha, o viajante vai concluir que caiu num lugar raro, como poucos no mundo. No mínimo, um lugar capaz de produzir grande literatura.


A espinha dorsal de nossa memória

Esse arranjo de um Intérpretes do Brasil ficcional tem que ser “reduzido”. (Não esquecer que nosso amigo viajante não teria fôlego nem vontade de ler uns 50 títulos.) Formado por, digamos, dez nomes, a lista deixará de fora coisas boas (Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis, alguns poetas). O consolo é que, aqui, se tratam de dez grandes nomes. Grandes nomes.

O cortiço, de Aluísio Azevedo (1890). – Primeira década republicana. A vida na periferia do Rio de Janeiro. O embrião do que hoje seria uma favela. Esse romance naturalista fala do dia-a-dia na pobreza extrema disfarçada pelo riso alimentado nos botecos e na inocência do ambiente miserável de quem quer sobreviver a qualquer custo, confundindo essa sobrevivência com vivência. O personagem principal é o próprio povo, no que tem de mais caricato e mais real.

Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911), de Lima Barreto. Espécie de Dom Quixote brasileiro, o protagonista cria planos absurdos para salvar o Brasil. Tenta produzir o ciclo de ouro da agricultura nacional, a que as formigas cortadeiras reduzem a pó. Tenta recuperar a “autêntica” língua nacional, o tupi-gurani, falado pelos índios que aqui moravam, tenta aliar-se às forças do sanguinário Marechal Floriano Peixoto (governo 1891-1894), imaginando estar ajudando a preservar a legitimidade de um poder que irá prendê-lo e executá-lo.

Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos. As personagens agem como animais, e o mais humano talvez seja a cachorra da história. No Nordeste assolado pela seca, o caboclo sem teto, sem comida, sem rumo, com família a quem ama sem nem saber dar nome a esse amor, precisa safar-se e safá-los. Como? A terra e seus donos não são fonte nem ouvido para suas queixas num livro onde a seca reside até na forma como foi escrito.

Terras do Sem Fim (1942), de Jorge Amado. A luta pela terra sob os desmandos dos coronéis, reis no sertão embrutecido. A civilização resume-se a cidades onde a modernização é pífia. O ciclo do cacau é tratado de forma implacável. O livro é sangüíneo, erótico, e se localiza numa região litorânea à mercê do comércio internacional, extirpando as riquezas locais e provocando os donos das regiões cacaueiras a ampliarem suas posses sertão adentro.

O tempo e o vento (1949-1962), de Erico Verissimo. O mais extenso painel ficcional histórico do País. No caso, o da formação e fixação do Rio Grande do Sul. Trilogia dividida em diversas novelas que descreve como um épico a terra fronteiriça eternamente sob disputa, os costumes peculiares na relação com regiões tão distantes do mesmo Brasil, o linguajar contaminado pelo espanhol das fronteiras e um caráter severo do nativo da região, contraído pela permanente tensão dessa disputa (sobretudo na I Parte, O Continente).

Grande sertão: Veredas (1956), de Guimarães Rosa. Aqui há problemas. Como um viajante, pouco familiarizado com o português, poderá entender este romance? E não é apenas porque Rosa deitou e rolou com a linguagem. É pelo livro como um todo, a estrutura, de um parágrafo só, um tijolo. Um jagunço, do centro-oeste de Minas, passando pelo sudoeste da Bahia e atingindo o leste de Goiás, enfrenta as piores feras, as humanas e as sobrenaturais. Há batalhas sangrentas onde um mundo primitivo (República Velha, 1889-1930) mostra sua cara e sua voz. Há à fé demoníaca e imprevisível de uma realidade que aos poucos se “acomoda”, isto é, se aceita. Numa mistura de prosa regional e poética com filosofia minando o espaço da ficção. Ou seja, o bruto pensa, além de sentir.

O coronel e o lobisomem (1964), de José Cândido de Carvalho. A linguagem também exige um pouco. Mas bem menos que no livro anterior. Um coronel da Guarda Nacional, herdeiro de terras no interior do estado do Rio de Janeiro, conta da infância, herança, perdas e recuperações, lutas e disputas de bens contra a canalha como meio social vigente. Sendo ele o narrador, os elementos do fantástico que o escritor elege ganham relevo, inspirados nos causos do meio rural, cuja oralidade destravada e uma riqueza sintática dão ao texto um raro sabor narrativo. O imaginário é de fato popular: aparição de lobisomem, assombrações, sacanagens sem conta do protagonista, um humor quase puro não fosse alimentado pela força de suas ações. A geografia é mais litorânea e a perspectiva do narrador fica entre o absurdo e o gaiato. Parece outro mundo. E é Brasil.

Quarup (1967), de Antonio Callado. O romance político que cobre nossa segunda ditadura, a que veio com o Golpe de 64. Comunistas e reacionários, Igreja dividida entre suas dívidas com o Estado e com o homem enquanto ser livre para servir apenas à fé que escolheu, sendo esta a da generosa doação de sua alma ao bem comum – e o bem comum nunca será servir aos poderosos de plantão. Restauradora crônica da alma brasileira, dentro da qual ainda gritam os fantasmas indígenas, ameaçados da morte até mesmo de sua memória (pois é essa alma que deve ir a inquérito, diz um militar a certa altura do livro). Há tortura, há autodilaceramento, há resistência, e há a grave desconfiança de que o País está se perdendo em si mesmo.

Feliz ano novo (1975), de Rubem Fonseca. Contos numa prosa imperturbável, num naturalismo que às vezes beira a poesia do imenso poder de sugestão que tem o explícito espetáculo do cruel sem o acompanhamento retórico da dor. Fonseca escreve como um psicopata munido de uma erudição capaz de dar os detalhes de sua terrível operação de extermínio, sem a mínima complacência com o leitor e a emoção que causa. É como se sua prosa fosse filtrada por uma espécie de silenciador a abafar o tiro que as histórias deflagram. Tiro certeiro a denunciar a violência urbana, o pesadelo que se vive em pleno dia nas cidades grandes.

A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector. Embora autora consagrada pela via psicológica, foi dela esse emblemático caso do êxodo rural, tratado por tantos outros autores mas não de forma tão tocante e convincente. A vidinha de Macabéa, a heroína, dá o tom que mergulha o leitor na sufocante atmosfera de vazio daquela existência. O beco sem saída do migrante nordestino na cidade grande, caminhando, na sua desafortunada busca por uma ascensão social mínima, para um fim trágico onde o malfadado acaso parece não ter papel algum além de deixar claro que para destinos assim não há solução favorável.

Outros títulos poderiam compor essa lista. Nela, porém, o Brasil já se reflete inteiro num real cuja natureza só é proposta pela ficção que produz.

Talvez não seja só o viajante que precise descobrir isso. (07/03/2009)

AS TRÊS FACES DA PALAVRA

Eu não irei falar de Haroldo de Campos, não porque não queira, mas porque não é preciso, sobretudo porque gente muito mais capacitada que eu na matéria pode falar melhor.
Eu não irei falar do poema concreto, do movimento dos irmãos Campos e o amigo deles, o Décio Pignatari, na década de 50, da guinada radical contra o discurso que inundava e fragilizava, com sua gordura verbal, o poema brasileiro naquele tempo.
Não, eu não irei falar de Galáxias, esse monumento, que me cansa (ante minha frágil prosa) enquanto me encanta e me coa os excessos e as previsibilidades de ritmo.
Eu não irei falar da arte que se desenha com traço – no exercício da plasticidade –, da presença da concretude ainda no mesmo exercício, ou do cotidiano e seus instrumentos aparentemente despretensiosos dando em objetos estéticos que se revelam outra coisa e nos escapam enquanto nos habitam.
Repetidamente surpreso – e daí sempre renovado, o fôlego suplantando o esgotamento anunciado pela falência de formas confortáveis –, eu vivo a experiência diária do verbo que me respira. Dele me nasço e nele ressuscito dos silêncios quando estes representam tão-somente um beco sem saída.

A FALA QUE CALA

Eu falarei da natureza esquiva e generosa, ao mesmo tempo, da palavra que se esconde em si mesma e se exibe além do seu significado ou do seu som. A palavra como desenho, essa me interessa. A palavra como objeto, essa me interessa. A palavra como convivência, na maioria das vezes rio raso no qual molho os pés para atenuar o cansaço da caminhada.
Disso falarei, disso falo agora. Do falar. Do escrever. Do ato quase cego de ir pondo de um ponto em diante uma palavra atrás da outra até que não possa mais, até que chegue, até que pare porque a soma de sons me pede, porque o sentido se dá por satisfeito, porque o cansaço da mão corresponde ao cansaço da mente e nesse turvo esgar de socorro por paz que a alma reclama brota uma espera ou um fim. Sempre por enquanto.
Eu quero falar do que a frase não pode, podendo. Ela não pode ir atropelando enquanto, aleluia!, corre célere pelo espaço antes em branco agora pulverizado por letras que se aliciam em vocábulos que se olham e se separam ou unem como uma operação comum, única, negando e reafirmando o que outros já teriam dito (claro, outra coisa), e essa operação apenas quer pular essa etapa óbvia do recado e inseminar – sem artifício – o óvulo de temperatura branda do branco que aceita sem receio o recreio sério do vocabulário que se enleia em meio aos sinais comuns de uma sintaxe rotineira.
E nem mesmo – ainda que um pouco – o poundemonium de Júlian Rios, em sua larva babélica de combinações que recuso porque o discurso, se se liberta do diálogo ou do narrar ao ouvido preguiçoso, condena-se à repetição de cair sem parar no fosso colossal onde os sons, se cabem todos, se ocultam também. E já não podem ser vistos.
Eu quero não o que sei e nem o que não sei, eu quero o querer de poder fazer com que o verbo reverbere e reverta em mais verbo sem a verve que sofre não de soberba, mas de assoberbamento, eu quero a palavra que cala aquilo que o que fala consente, entregando-se sem luta. Eu quero a lua da pedra que é fruta sem polpa nem casca nem sumo mas pode tudo e fere todos os rumos dos satélites que crêem possuir uma luz que não é sua.
Eu quero o fm do vale onde não florescem rimas, o cimo da montanha onde tamanha é a ausência e esse vazio vaza tanto o pleno quanto o plano onde se desenha a rua. Eu quero não o jogo, menos ainda o jugo, nem o logro, mas logo o oco do colo onde o calor dança com as moléculas de uma forma sem fôrma, o anonimato sem esconderijo, o brilho sem ruído, o ápice discreto, o fértil corroído pela espera de que qualquer nome brote.
E brota, embora não se nota que o inominado sacuda as asas sem desenho, sem ar que as reconheça, sem atmosfera para abraçar um ser em cujas costas elas se seguram.
Três faces desenham essa palavra. Três caras a anunciam. Três bocas falam por ela.
A que escorre por fora do que é dito por todos, a boca que sugere com o molho que muda o sabor da carne. A que finge acompanhar mas sobrevoa a procissão como um anjo negro ou dourado capaz de ser visto somente quando o autor estiver morto. Esta é uma face.
E a segunda. A que não escorre, mas estanca, e fica, cristal, fixa e pétrea, audível apenas por aquele que aproxima o ouvido (ou o olho) do vocábulo ou um conjunto deles imerso num caldo ralo de palavras saturadas em frases presas fáceis da fome apressada dos que não escrevem como quem descobre nem descortina. Isto é, a face/boca da palavra que se nega a ser o que necessitam, recusa de cura, suicídio verbal diante dos mimos fúteis.
E, também – a terceira –, a face severa da palavra lamentosa de sua própria condição, que se arrasta sem afastar-se da via crucis que lhe é destinada, que não foge um só instante (nem letra) do seu desenho exato de ser mirrado e exato, defunto sólido e desolado.
Escolho, assim, o que representa meu escolho, sobra, resíduo tornado fortuna, exuberância de errar sendo livre por não lhe pertencer nem a fortuna de ser lido, que dirá compreendido. Reescrever é o que cabe, a busca pelo aparente brusco susto que é topar com uma sílaba onde não caibo, nunca palavras nas quais a história se crê redonda como um círculo sem circo, nunca ignorando a música que fala desde o vento antes de mim e nem o desenho que ainda no átomo tirou fotos primeiro, quando nem meu trisavô supunha um soneto, seres, que dirá netos, e isso porque o que em regra é dito é sempre um mundo com palavras de uma só cara, palavras baratas, um mundo que as usa com um fim que o salva enquanto ele as mata. (07/03/2009)

terça-feira, 3 de março de 2009

PEQUENO DEBATE SOBRE FACILIDADES DO JULGAMENTO MORAL

J. R.:

Pois foste chorar pitangas no blog através de um personagem aí, clássico, o "cara", e te deram de relho, que tal?

Eu ri à socapa, naturalmente.


BLOGUEIRO:

Pois ou eu errei na medida ou os caras não sabem ler. Negócio seguinte: eu não quis mostrar um pobre-coitado do qual todos devessem apiedar-se, nada disso. Eu quis mostrar que quando o cara tá fodido a galera INSISTE em ficar se fresqueando, mandando baboseira, e, o pior!, fazendo julgamento moral de por que o cara chegou àquele ponto. É como se eu, no post, tentasse dizer (inutilmente, vejo agora): "deixem o pobre homem em paz!" Se não for pra ajudar (eu não estava pedindo penico), larguem de mão o sujeito, deixem-no no silêncio do buraco onde se enterrou que uma hora ele sai de lá. Mas os MESMOS "amigos" de quem eu falava (sem citar nomes) continuaram com a mesma postura, que, aliás, é a atual, consagrada: a apologia dos fortes. Tipo: tem que aguentar porrada de instituição financeira (as mais demolidoras) e ficar sorrindo, ainda por cima, e não dizer nada. E quando algum espertalhão vier com gracinha, o cara, atolado, nem pode chiar com a inconveniência deles. Ah, não!...


J. R.:

Depois o "cara", no post seguinte, resolveu pentear o cabelo e seguir em frente. Boa! É isso, mais ou menos como o goleiro que busca a bola no fundo da rede e dá um bicão pro meio do campo. Pra recomeçar.


BLOGUEIRO:

É. Acho que me recuperei no post seguinte.


J. R.:

Pois pra variar hoje estou com a sensação de que não estou rendendo.
Às vezes invejo os manivelas em geral, que descarregam, ou carregam, alguma coisa e era isso. Tá feito, até a próxima.


BLOGUEIRO:

No mundo atual ("mundo"? NÃO ESTOU CHORANDO AS PITANGAS DERRAMADAS), o cara NUNCA ESTÁ RENDENDO. Só serve se produzir desumanamente. Voltamos ao tempo da febre do ouro no Alaska. E estamos lascados.


J. R.:

Pois eu acho que tu não andas rendendo, velho, esse é o problema. As pessoas têm toda a razão de grudar um chiclete no teu cabelo quando te vêem.


BLOGUEIRO:

E elas por acaso andam rendendo? E se não, achas que eu ia perder meu tempo grudando chiclete no cabelo delas? Sou tão santo assim?! Não, apenas a civilização me ensinou o mínimo: a fazer silêncio diante das derrotas contingentes (mesmo continuadas) e a não exagerar os méritos dos vencedores (vitória que a História tem mostrado como resultado, digamos, não muito legítimo...). (03/03/2009)

domingo, 1 de março de 2009

RECOMEÇAR DO FIM

A vida tem seus truques, minúsculos milagres que fazem da morte repetida, contida nas contingentes misérias, um engano provisório. Não foi engano, talvez: morreu-se ali. Mas foi provisório, de fato, e a vida – que só cessará sobre o planeta sabe-se lá quando – dá um jeito de reacomodar os destroços.

O vitimado não os esquecerá, é certo. Mas bastam alguns acenos ou o evento certo, aquele acontecimento que faz diferença (e quando menos esperamos por ele, ele vem), e pronto, o ser que se ressentia disposto quase à desistência definitiva percebe que está se precipitando. Que os amigos são tão impotentes como ele mas também tão capazes como ele. E se são amigos, nada como a ponte da palavra para que uns passem para a ilha onde o outro está.

O Apocalipse, palavra-de-ordem nas atuais igrejas políticas, convence mais aos crédulos que aos céticos. E se este homem, descrente, cansou-se do baile de máscaras (não intencional) enquanto o ritmo do mundo lhe soava como um terremoto, é hora de lembrá-lo que a Literatura, que tanta vida lhe tem dado, é feita de reescritura mais que de escritura, e de revisões e de cortes, aparas, acréscimos, ajustes. Isso serve perfeitamente à vida, sem cujas medidas seria apenas o tédio dos que nasceram em berço de ouro, ou o fim antecipado dos desistentes de tudo por pura preguiça, palavra vergonhosa cujo sinônimo mais nobre seria niilismo. “Vai lá, rapaz!”, ele diz a si mesmo. Ajeita o cabelo e vai. Tem chance de dar certo. (01/03/2009)