domingo, 29 de junho de 2008

UMA AUSÊNCIA: TODA AUSÊNCIA

Como o cocheiro no conto de Tchecov, que, não tendo a quem contar as mágoas, confessa-se e a seus fracassos ao pobre cavalo que conduz e de quem cuida, busco a ti cujos olhos estarão fechados a esta hora, dormindo. Ou abertos, vendo um filme atrás do outro, algum debate na tevê, até mesmo algum comercial.
Busco teus ouvidos, escutando as histórias de parentes, filhos, amigos, vizinhos. Escutando os ruídos indistintos do apartamento ao lado. Escutando a rua e seus sons tão óbvios quanto indistintos.
Busco teu olhar, a ver (não por enxergar), mas ver de um jeito que não sei olhar nada, a ótica do enigma que numa simples vislumbrada desvendas como quem retira a toalha da mesa da cozinha.
E, pior, nem busco. Penso nessa audição, não para mim agora. Penso nesse olhar, não para mim agora. Penso, agora, em tua boca, ressonando, plácida, que um beijo não esperaria para despertá-la, ou em sua voz, abrindo espaço entre o morno hálito que sai junto e diz, quase numa canção: “tu, hem!”
E eu nada.
Eu aqui. Eu aonde? Eu aqui aonde. Eu lá aqui mais pra lá ainda do que poderia estar, sem me alcançar. Sem me alcançares. Sem me veres. Sem me escutares. Sem me falares.
Eu não eu quase eu se pudesse me olhar sem desgosto, se pudesse me escutar sem achar que digo sempre as mesmas coisas, se pudesse – dormir. Dormir mesmo. De preferência sem os malditos sonhos.
E acordar pelo menos sozinho. Sem ti mas sozinho. Sozinho mas recuperado para mim mesmo e, desta forma, mais próximo de ti.
Pronto a, aproveitando-me da solidão mais plena, voar até aonde estás, mesmo se acompanhada, e tomar baldes de sereno como faria um adolescente de filmes ou um adolescente real de porre. Até que o primeiro sol e tu saindo de casa o encontrariam próximo ao portão da garagem. Para ser recolhido como um animal entre arisco, entre ameaçador.
Eu morderia. Sim, eu morderia. Mas só a mim. Para provar, no adocicado gosto da saliva ferida, que meu sangue ainda não secou. (30/06/2008)

QUATRO HORAS DEPOIS DO GRENAL

Afinal, não precisei me esconder tão fundamente num livro do Philip Roth: o Grêmio escondeu-se mais em si mesmo e o Inter teve a suprema sorte de acreditar no futebol que não conseguia (e então pôde, taticamente sendo melhor).
Não choveu conforme eu desejara, mas não precisou chover. O sistema defensivo montado por Tite – que 15 dias após conviver com o vestiário colorado, concentração, treinos e rachões, começa efetivamente a conhecer o time, infinitamente mais do que só em assisti-lo pela tevê ou mesmo no estádio, sentado nas arquibancadas, como deveria estar fazendo antes de ser contratado – deixou o ataque gremista a seco, não fosse uma isolada penalidade máxima batida de um jeito que...
Outra hora a gente discute, mas aquela paradinha, esperando o goleiro atirar-se para um canto e só depois o batedor decidindo-se, com ¾ da goleira aberta, a empurrar confortavelmente a bola para os fundos da rede, é, além de covarde, me parece, ilegal. Tem jeito de pelada, não de profissionalismo. E eles ganham uma banana pra fazer macacada. Mas os árbitros, a FIFA... (Ontem assisti seis pênaltis batidos, e convertidos, todos eles: quatro com paradinha: só respeitei os dois que chutaram direto, sem truques além da técnica em si.)
Pelo menos numa coisa acertei: os juízes são os maiores perebas do futebol atual. O gol do Inter (gol por justiça mas não por direito) foi ilegal: Nilmar estava impedido quando alçou a bola para Índio cabecear. Houve um pênalti em Nilmar feito por Rodrigo Mendes, quase na cara do árbitro, que corria naquela direção, mas ele não viu. Nem o bandeirinha, que viu o pênalti (existente, embora inacreditavelmente bobo) de Renan no mesmo Rodrigo Mendes.
Isso o Grenal teve: no desespero de anular o adversário, ações absurdas, inexplicáveis, desnecessárias. Sorte que por perto só havia esse tipo de árbitro que costuma ser escalado pela comissão do setor na CBF e então algumas dessas ações, decisivas para mudar o placar da partida, não foram assinaladas. E algumas, corretas, mas e daí, no calor da decisão... Não fosse o bandeirinha, dava Inter!
Maldito bandeirinha! Eu também tinha dito que o juiz era uma das grandes chances do Internacional, e se só houvesse a decisão do árbitro contando, e o bandeirinha nem tivesse entrado no estádio, o pênalti a favor do Grêmio não teria sido visto e o Inter teria ganho a partida. Mas, certo, eu sei: não seria legal. Não chego a ser torcedor a esse ponto
Um amigo, pelo tom do comentário que postou no texto anterior, sentiu-se xingado de marciano em razão da frase “o Grenal se impõe a quase todos nós – sei: existem os marcianos, que nem estão aí” etecétera e tal. E depois despediu-se, a seco, com tal frase: “não te desejo boa sorte.” Provoquei-o, espero que saudavelmente, eu mesmo postando um comentário, dizendo que tanto não é marciano, e, assim, é torcedor, e gremista, que não deseja sorte a um colorado, claro. Minha estratégia, na verdade, era outra: levá-lo a escrever, qualificando o espaço, como sugeri em post bem anterior (“Acessos e comentários”, de 21/06) no qual discorro acerca da discrepância entre a quantidade de gente que lê o blog e gente que o comenta. É se fazer as contas e uns 6% no máximo deixam algum tipo de opinião. De qualquer forma, o importante (o mais importante) é que a quantidade de leitores suplanta a dos que escrevem. E apenas ler é mais elegante – e sensato – do que escrever insanamente. Escrever: coisa que eu, por exemplo, faço. Procurarei evitar, não o ato de escrever, mas o seu exercício máximo.
Espero que ele, bem-humorado que é (mas grave quando a situação o exige), chateie-se com o árbitro do Grenal e não comigo.
Ah, outro detalhe. Examine-se, detidamente, meu texto. Antes de escrever “marciano”, afirmo que o futebol se impõe a “quase” todos nós. Ora, “quase” não são “todos” e ele pode – e é – uma honrosa exceção dentro dessa totalidade só culturalmente absoluta (no imaginário nacional do qual boa parte ele dispensa).
Tenho que rever as grandes rivalidades. Não são mais partidárias (os partidos estão sucateados). Não são mais futebolísticas (não, ao menos, em alto nível). São, como posso dizer..., na alcova das particularidades, onde, parece, as pessoas não querem papo que não seja exatamente aquele para o qual se sentem (sem sei se disponíveis) muito interessadas. Fora isso, mesmo que 85,7% do estado estejam envolvidos, 14,3% responderão num estalo: “pediu, levou!” e esquecerão, nem digo a paciência, esquecerão que delicadeza faz bem para ambos os lados, ambas as torcidas.
Principalmente se houvesse um vencedor. Este, poderia ser paciente e delicado e gentil e compreensivo e todas as variantes simpáticas que fazem a civilidade do que lê, muitas vezes, até mesmo, por obrigação. Disfarçando-o, lógico.
Mas vamos ao que interessa à maioria, ao Grenal, passadas quatro horas. Meia-noite toca o limbo entre domingo e segunda-feira e já adentro a segunda, seus primeiros minutos, para dar fecho a este texto. Eu escrevi que para um torcedor do Inter, do jeito que ia a coisa, um empate soaria como goleada. Soou. Mas muitos gremistas também estavam bastante tranqüilos após a partida, quase satisfeitos, possivelmente satisfeitos (e isso declarado por setores da imprensa, não por mim, um colorado).
A questão é que não houve mortos nem feridos. Só marcianos e terrestres, alguns quase uma coisa ou outra. (29/06/2008)

SEIS HORAS ANTES DO GRENAL

Acordei às 9h, não dormi direito. Levantei-me três vezes pela madrugada, comi doces, tentei, por duas vezes, ver algum filme ao acaso. Tudo inútil. Tudo por causa do Grenal.
Porém, às 9h, ah, dor das dores, um sol me provocou: hoje vai ter goleada e sabes de quem contra quem. Temi, tremi, mas então... Ao meio-dia o céu enfarruscou, as nuvens, plúmbeas como escrever-se-ia (inclusive esta mesóclise) em 1940, deram-me alguma esperança. Vai chover, vai chover! Tem de chover, e muito...
Ontem, numa festa escolar junina, junto a minha filha de oito anos, encontrei um grande poeta e um (maldição) típico torcedor, o que não sou: daqueles que olham o adversário e sorriem desafiadores. Claro que ele era gremista (aliás, estava de aniversário, e parecia já comemorar de véspera uma outra festa). Claro que era o Paulo Seben. Se o leitor não sabe que Seben é gremista, mais azul impossível, está perdoado. Mas ignorar o poeta que ele é, ah, não.
Bem, estou tentando desconversar e levar o papo em outra direção, a da literatura. Mas o Grenal se impõe a quase todos nós (sei: existem os marcianos, que nem estão aí, e 75% das mulheres, que ainda não começaram a dar a importância que o futebol possui), levando-nos, neste domingo, a suportar hora a hora, minuto a minuto, segundo a segundo, antes de a bola rolar. E quando ela rolar, “ai, zizus”, como escreveu o Manuel Bandeira num poema cujo interesse da parte dos gremistas é nenhum nesta hora.
Para o bem da verdade, nem meu é grande tal interesse, neste instante, mas só Bandeira para me salvar. Bandeira não!, Manuel Bandeira, que, torcedor votado mais à tortura da melancólica desconfiança com as mínimas possibilidades do time do que aos êxtases da vitória sonhada, não uso bandeira, camiseta, não tenho pôster na parede. O Inter foi campeão gaúcho neste ano? Quando?
Tento achar um serviço de meteorologia. As nuvens taparam o sol, as nuvens! Não detecto nenhum número de telefone, como se tal serviço fosse um atacante gremista e eu um lento zagueiro colorado, chegando atrasado, não encontrando nada. E às 13h o sol reaparece, ameaçador – para esconder-se meia hora depois. As condições climáticas parecem saber que hoje há Grenal e não resistem a aumentar o sofrimento dos sofredores.
Sim, “estou” (futebol é momento) um sofredor atualmente. Mas se um milagre acontecer – para mim um empate já será um milagre –, não vou, por causa disso, mudar meu estilo de sempre. No máximo verão em meu rosto a expressão de alívio que sentem as plantas, numa estação de seca, após um dia inteiro de chuva.
O diabo é que hoje, pelo jeito, não vai chover mesmo. Em tempo: benditas as palavras de David Coimba, “Grenal não tem nada a ver com futebol.” Lamentavelmente, acho que o David se enganou feio. Se não tivesse nada a ver com futebol, aí sim é que o Inter tinha toda a chance do mundo. Mas, enfim, vamos ver. Pensando bem, Deus não existe e tudo é permitido. (29/06/2008)

sábado, 28 de junho de 2008

O INTER TEM MUITAS CHANCES NESTE GRENAL

O leitor gremista que tenha compreensão, algo menos complicado da forma com que a tratam quase todos. Compreensão.
Por algum time eu teria de torcer. Podia ser pelo São José. É pelo Inter.
Como domingo, 29 de junho, haverá Grenal, só depois do jogo, só muuuuuito depois do jogo, é que nossas relações – entre eu e o torcedor gremista – poderão se restabelecer. Por mim, não precisaria esse prazo. Já estou numa boa com eles, sempre estive, desde que não ponham o Grêmio acima da sensatez e da civilidade. O Inter eu o ponho – não abaixo do c. do cachorro, mas só porque é futebol. E futebol, às vezes (hoje ando pensado "o diabo é que só às vezes")...
Pois esta é a primeira chance do Inter num Grenal para o qual chega muito desacreditado, e com razões de sobra.
Não diminuo o Inter. O Inter é que anda se diminuindo.
Para começar, futebol é velocidade, e o Grêmio está voando nos cascos enquanto no segundo tempo o Inter parece já começá-lo com a língua de fora. Claro, convém lembrar que só velocidade não resolve, se esta for convertida numa desenfreada correria, sem maior sentido. É preciso saber para onde correr e, até, como correr. Uma velocidade mal-empregada pode ser um veneno contra o próprio corredor. Mas a verdade – sintetizemos – é que a velocidade é, sim, uma arma no futebol atual, e neste quesito o Grêmio tem um preparador físico que tem acertado a mão. A mão e os pés.
Basta ver a tabela e a conversa quase é encerrada. O Grêmio está em 2o lugar no campeonato nacional enquanto o Inter lambe as bordas do funil onde jazem quatro potenciais candidatos ao rebaixamento. Mas tabela não ganha jogo, sabemos, embora psicologicamente pressione o pior colocado e desespere o torcedor deste. Na hora do Grenal, para terem uma idéia (sou candidato a hipertensão), estarei lendo Fantasma sai de cena, do Philip Roth. Afinal, tenho de disfarçar o medo com a aparência da coragem e em alto estilo.
Mas retomemos o mote deste post: as chances reais do Inter. A maior de todas, claro, é vergonhosa e acho que em clássico caseiro, sobretudo na sisuda cultura gaúcha, não cabe aventar essa possibilidade: o árbitro. Comprar o juiz seria uma boa; não, uma ótima. Mas deve custar quase o passe da repatriação do Rafael Sobis e resolveria só por uma partida. O Sobis resolve várias.
A segunda chance seria um possível salto-alto do Grêmio, um “já ganhei” compreensível nas atuais circunstâncias. O diabo é que o Grêmio não é brasileiro, é argentino, uruguaio, paraguaio, qualquer coisa que carregue sangue charrua, sangue mais quente para defender essas estranhas origens vindas do frio mais frio. Ou do úmido pantanoso paraguaio. E gente assim não bota salto-alto nem se fosse gay.
O Grêmio tem uma cultura daquele tipo: coloca espora sem colocar as botas. Joga de pé no chão e ri das travas das chuteiras do adversário, como se elas fossem, essas sim, o salto-alto do outro.
O Inter não tem razão alguma para salto-alto, mas tem andado em campo como quem usasse um. Corre pouco, e isso sem falar na zona aérea, onde perde de cabeça (na entrada da área!) quase todas as disputas – é só ver os dois gols bestas do Vitória, domingo passado. Lentidão até no ar. Voltei a pensar em velocidade. O Grêmio, de quem ninguém esperava nada antes de o brasileirão começar, é o Kubica, o polonês. O Inter é o Rubinho.
E sempre com aquele sorriso amarelo e o dedo levantado em sinal de positivo. Só se for pra próxima.
Mas... e as chances do Inter? O árbitro é que não é. Bem, pode ser. Tirando o Gaciba, o Simon, quem mais?, a verdade é que os árbitros são os maiores perebas do futebol atual. O nível da arbitragem tá mais ou menos como o do futebol praticado pelo Inter. Pode emparelhar o clássico. Os melhores, hoje, são os gandulas, que sabem conduzir um jogo e decidi-lo na hora certa.
Outra chance do Inter (por essa eu rezo): a chuva. Uma chuva torrencial, daquelas de inundar o campo, tornando-o impraticável. Adiar o jogo não resolveria: a surra somente seria adiada. Mas aí, vamos ser realistas. Falávamos agorinha mesmo dos péssimos árbitros. Mesmo com campo sem condições os homens de amarelo (antes eram de preto) costumam dar condições para que a partida se “realize”. O que acontece? Bola trancando na poça ali, bola travando na poça lá, bola parando na poça acolá, e os 90 minutos vão se arrastando com uma espécie de dança de bêbados, sem lógica alguma – nem mesmo a do acidente. Campo molhado de fato tira até o acidente porque a bola simplesmente não desliza.
Sim, tem a bola aérea, molhada, resvaladiça. Neste caso, não existe goleiro que se garanta na hora de tentar segurá-la. Quem sabe. Essa lei vale para todos. É puro acaso, e contra ele não há quem vença.
Nem o Grêmio. (28/06/2008)

sexta-feira, 27 de junho de 2008

CEM VELAS PARA GUIMARÃES ROSA

Haja fôlego! Soprar sobre cem velas só o diabo, no meio do redemoinho. Com a ajuda do redemoinho. Pois é o que acontece com “Grande sertão: Veredas” (1956), para uma multidão de gente boa (e alguma má), o romance mais ambicioso e bem-realizado de nossa literatura. E isso que ela, a literatura, tem, do velho Machado, outro aniversariante por estes dias, “Dom Casmurro”, tem “Memórias póstumas de Brás Cubas”, tem... Bom, aqui o tema, agora, é Guimarães Rosa, que nasceu a 27 de junho de 1908 e, portanto, hoje estaria comemorando um século de existência! Cem anos. E a literatura do homem está novinha em folha.
Outro dia um amigo, mais inteligente impossível, honesto ao ponto de não cair na firula do beletrismo mesmo metido a vanguarda, muito menos ir atrás da reputação como verdade crítica, reclamou de Joyce e de Rosa. Comentou que eles escrevem de fora para dentro e não o contrário. Esquecem o miolo e, como um Deus na criação (imagem joyceana, e nem por isso menos óbvia) sopram seu foguinho e espalham labaredas pra tudo que é lugar. É um auê, ê, ê, etc. Meu amigo quis dizer, óbvio, que os caras estão mais preocupados com a performance do que com a história. Ou com a personagem. Só lhes interessa a linguagem e desta fazem uma espécie de vestuário à base de plumas e paetês.
Não vou discutir meu amigo, que continua sendo inteligente e que declarou estar a cada dia que passa mais próximo daqueles homens que, à luz das fogueiras contra o frio e iluminando suas cavernas, queriam a narrativa pura, sem intermediários nem desvios nem devaneios estéticos. Uma arte sem arte, entendem? Aparentemente sem arte. Entendo o que diz. E sei que está certo no que gosta. Mas isso não anula (ele não disse que anulava) outro tipo de solução.
Eu, por exemplo, nunca dancei, exceto uma valsa com uma de minhas filhas, Maria, quando ela tinha nove anos. Formatura das séries iniciais na escola. E não fumo um baseado há décadas. E não bebo (e penso, claro, em bebida de qualidade, em vinho argentino no inverno, em um uísque daqueles) há no mínimo uns dez anos. É desumano!
Só bebo água tônica porque, dizem, uma das propriedades do quinino é de brochar, isto é, “acalmar” o cara. Sou naturalmente ansioso, e essa ansiedade, que me mata, me estimula também, me ergue e me leva até onde a narrativa pura leva meu amigo. Simples: nossas necessidades não são as mesmas. E nem a literatura precisa ser sem deixar de ser boa literatura.
Simenon confessou uma vez que escrevia um livro todo e na primeira revisão cortava toda frase bonita. Deixava só aqueles que de fato funcionassem em favor da trama, das personagens. O Erico Verissimo, quando o visitei, a primeira vez, aos meus dezesseis anos, me disse que a prosa do Simenon era a melhor prosa francesa desde Montaigne. (Anotem essa. Meu amigo, acho, vai anotar.) O mesmo Erico, chateado com alguns críticos que reclamavam que ele “apenas contava histórias”, numa época em que Clarice Lispector (com licença!) e Guimarães Rosa (ave, palavra!) desfilavam saltitantes como os mais exuberantes escritores brasileiros, declarou, entre ressentido e irônico, “não tenho talento verbal”. Cabe o ressentimento, sabe a ironia. Mas isso não destitui o talento verbal de quem escreve “aquela coisa” chamada “Água viva” ou o Rosa de “Meu tio o Iauaretê”, um conto cujo protagonista e narrador é um homem-onça, cada vez mais onça, perdendo a palavra e narrando, paulatinamente (desculpem a expressão, o advérbio, mas estou me homenageando, participando da festa, Paulo que sou), com palavras-ruídos, palavras-rosnados, palavras-gemidos, palavras criadas pelo Rosa não para se exibir, mas para não trair a personagem e não perder o fio da história.
Foi um criador de enredos, alguns incríveis – como “A terceira margem do rio” –, como qualquer grande contador de histórias. A literatura possui diversos elementos: trama, personagem, linguagem, para começar. Aí vem espaço (cenário), atmosfera (derivação deste), e, sim, tempo, tempo no qual o escritor, quanto mais brilhante for, deita e rola nessa “ambiência abstrata” (a temporal), indo e voltando. Coisas para uma Virgínia Woolf, por exemplo.
Mas sinto que me perco. É fácil se perder nessa seara. Guimarães Rosa tinha dezenas de cadernos nos quais anotava palavras de todas as procedências. Era um lexicógrafo também. Um erudito do vocábulo. Se fosse só isso, ia ser um chato de galochas diante do qual teríamos que engolir sua enorme cultura. Mas já no primeiro livro, “Sagarana”, de contos, num deles, “O duelo”, abre sua história com essa maravilha em ritmo e em jeito, novo e jamais podendo ser acusado de fabricação estilística só pela vaidade de dar um drible a mais (cito de memória, sem conferir): “Toríbio Todo era seleiro por profissão. Tinha pêlo nas narinas, chorava sem fazer careta. Palavra por palavra, era papudo, vagabundo, vingativo e mau. Mas no começo desta história ele estava com a razão.” E a história envolve traição, assassinato – e por engano! Guimarães Rosa canta escrevendo, pia como passarinho quase a cada frase, mas não é pela inocente presunção de achar que lhe basta a exaustiva e sempre constante pesquisa de vocabulário, do modo de vida do jagunço no sertão das Gerais (Minas-Goiás, oeste brasileiro, numa faixa onde há seca e onde também existe mata rasteira e, de árvore, pouco mais que buritis, aliás, a mais alta palmeira do País). Tratou de recriar isso tudo, esse quase nada (“nonada”) que ele manuseou como quem constrói uma catedral – sempre contando histórias, legitimamente arrancadas daquele mundo ermo, remoto, quase da idade da pedra, um pouco depois... –, em páginas até hoje impecáveis e imbatíveis (se se tratasse de uma competição; ainda bem, não é. Rosa admirava escritores com projeto estético bem diferente do dele, até o oposto: eis a questão).
Cem anos, hoje! E outros cem se passarão e ele nunca terá, pesando em seu estilo, esse incômodo pó das épocas, depositado em cima da linguagem de que se utilizam os escritores de seu próprio tempo.
Nesse sentido, Guimarães Rosa foi um extemporâneo. Daí chegar aos cem anos como se tivesse nascido ontem. Ou fosse irmão de Homero. (27/06/2008)

quinta-feira, 26 de junho de 2008

O SENTIDO E O DESEJO

Os amigos mais fiéis, que não deixam de freqüentar este blog, e os curiosos de plantão, cuja maior virtude (imbatível como virtude, a meu ver) é a inquietude sedenta em saber, não importa se para discordar depois, devem, imagino, debater-se – como tanta gente que me escreve e-mails (5.000 em um ano; ah se e-mail falasse, vendesse etc.) – acerca de temas recorrentes e básicos e, embora responsáveis por um certo rebaixamento no nível das discussões, vitais. São eles, os tais temas: a verdade e a mentira. E dessas duas raízes migram múltiplas vertentes, todas elas carregadas nas costas por dois personagens trágicos: o verdadeiro e o mentiroso.
Verdade: franqueza, coragem, sensatez.
Mentira: inconfiabilidade, covardia, cegueira.
Dei alguns exemplos, não necessariamente paralelos; não, se considerarmos o rigor como método, correspondentes em seu antagonismo.
Mas são dois temas ou, para simplificarmos, duas palavras que vão e voltam, insistem, incomodam – particularmente, me exasperam. Não sei quanto a vocês.
Com elas somos adulados – quando apontam a presença da verdade no que escrevemos, quando acham que a ficção que praticamos, por sua pretensa inventividade (como se trata da minha ficção, só posso usar o obrigatório "pretensa"), demonstra a) primeiro franqueza, no trato das situações cotidianas, b) depois coragem, no enfrentamento de circunstâncias mais espinhosas (a mediocridade, a solidão, a opção por um trabalho sem mercado, as perdas carregadas sem um grito de protesto, os amores precários e o sexo insuficiente ou desencontrado) e, por fim, c) a lucidez, típica do sensato, em reconhecer a impotência do real para nos empurrar para dentro dele mesmo, ou então o seu inverso, a truculência desse real fechado num sistema de correlações físicas onde nossa vocação ao abstrato só tende a quebrar a cara.
E se escrevo sobre isso, e se tento recriar tais instantes de engasgos de realidade boca adentro da mente retorcida tentando amparar-se nas pernas e nas mãos hesitantes, dizem-me: “não tens medo da verdade, e confio em ti.”
Já recebi essa manifestação generosa uma quantidade enorme de vezes. E concordei com ela. E discordei. Discordei porque o oposto, paradoxo, é verdadeiro.
Minto. Minto por instinto, por vocação, por necessidade (como um cão faminto fuçando a lata de lixo do coração humano, doente; vasculhando no cérebro humano, antigamente chamado de "alma", "espírito", e outras palavras das quais hoje é indigno. Ou menos ingênuo, talvez). Por isso minto, e o atalho da mentira serve-me para chegar, rápido, à verdade.
Mentira não como verdade negada, mas mentira como verdade em diagonal porque simplesmente a verdade não cabe numa caixinha, numa forma de linhas retas e previsíveis e de extensão modesta, numa linearidade a tornar qualquer um capaz de carregá-la no peito, com ou sem cachaça no bucho. “Afinal, o cara só fala as verdades, doa a quem doer.” Ora...
Não confundir sinceridade com verdade. Não conheço ninguém mais sincero que uma mula, que um mau escritor. Os maus escritores a-do-ram abrir o coração.
Sinceramente falando, acho o ser sincero um superficial, um apressado, um suicida, ou, o oposto, um homicida, um insensível, capaz de crueza digna de médico militarmente informando a um doente sem remédio – que até ontem ignorava sofrer de algo – que o sujeito tem os dias contados.
Sua franqueza é sua inconfiabilidade humana. Seu uso indiscriminado da verdade é cegueira. Sua inábil exigência de coragem por parte do paciente é covardia.
Tema amplo, como se vê. Desdobrável. Que se confunde e que troca, ironicamente, de lugar.
Quando escrevo poesia busco não o mundo como se o mundo fosse um ente constituído de forma exemplar. Exatamente por razão oposta, faço poesia para jogar contra um mundo que nega a transcendência, essa rotina miraculosa do poema quando ele acerta, quando ele fere a vida metida a apequenar o homem só porque ela, a existência no seu todo, sem um Deus para poder ser citado (eu, pelo menos, não o tenho), faz de um Nietzsche, por exemplo, quando ele era vivo, primeiro um professorzinho bizarro e depois um maluco complicado de se lidar.
Acima de qualquer verdade, o afeto. Que depende de mentiras para sobreviver e que dispensa coragens, caga pra sensatez quando ela ameaça torná-lo tão-somente um querer confortável e, por ela nos proporcionar tanta conveniência no trânsito do mundo, faz brotar a gratidão afetuosa que de nada vale como expressão afetiva.
Então o que resta? Muito. Muito o que discutir.
Tudo isso são sentidos, significados que se dá e se tira conforme o olhar, o enigma proposto – pequeno ou grande –, a urgência afetiva de encontrar uma resposta que nos salve do ressecamento. Para que encontremos, de fato, o afeto, efetivo.
Mas então esbarramos nesse auto-engano, o desejo. Na vontade irrefreável de desenhar o conceito, de contornar o traçado todo de lógicas que nos protejam, nos acomodem. Como desejamos arder na febre de ir além do já sabido porque sabemos que é quase nada, de tão pouco. E como desejamos um encontro doce com a paz de não precisar desse fogo demolidor que molda formas e idéias, e enquanto não se extingue (e não se extinguirá nunca, para o bem e para o mal), enquanto crepita, continuaremos à procura do sentido, quase sem sentir. Fazendo sentido ou não, construiremos sentidos absurdos e destruiremos sentidos brilhantes. Resvalando fácil nessas armadilhas arcaicas – feito as de pegar passarinho –, armadilhas que atendem por nomes como verdade ou mentira. E que dá pra dizer que são tudo a mesma coisa. Além delas é que a vida minimamente inteligente começa. (25/06/2008)

sábado, 21 de junho de 2008

ACESSOS E COMENTÁRIOS

Eu estava em Brasília, nesta semana recém-finda, quando o número de acessos ao meu site, sobretudo ao blog, atingiu a marca de 1.000. Criado há três meses e meio, é motivo para comemoração, claro. E eu nem vi. Estava envolvido com o Ministério da Cultura, com as dezenas de ações que estão planejadas neste 2008, decretado por Lei (número 11.522) como Ano Nacional Machado de Assis. O motivo do decreto é que estamos completando 100 anos da morte do escritor. Ele só não faz falta, cem anos depois de morto, porque seus livros estão aí, cada vez mais presentes, em edições caprichadas, anotadas, e além disso, à medida que o tempo passa, livros sobre seus livros também estão aí, e crescendo em quantidade e qualidade crítica. Gente como Roberto Schwarz, Alfredo Bosi, John Gledson (isso sem olhar para um passado recente e lembrar de um Raymundo Faoro) tornou Machado mais próximo de nós. Os enigmas (e não apenas o de Capitu) do Bruxo do Cosme Velho – a rua ainda está lá, embora a casa tenha sido demolida – vão se desfazendo, de um lado, e se potencializando, de outro. A boa interpretação derruba perguntas antigas e planta novas.
Teve, o nosso Machadinho, a epilepsia de um Dostoiévski, a gagueira de um Lewis Carroll, as brechas biográficas (vazios de informação ou informação equivocada acerca de sua vida) e a timidez de incontáveis gênios. Dele disse Harold Bloom, o pantagruélico mas lúcido crítico, shakesperiano até a exaustão – como, de certo modo, Machado era – “foi um milagre”. Dele Susan Sontag, a exigente e brilhante Sontag, demonstrou surpresa que não tenha a “visibilidade” (esta palavra fundamental hoje) como tem um Tchecov, um Poe (que, aliás, Machado traduziu). Para Salman Rushdie, assim como García Márquez não existiria sem um Borges (não entendi muito a relação, mas, enfim...), um Borges não existiria sem um Machado (ah, aí sim!).

Mas já me perdia na efeméride e no homenageado, esquecendo que o homenageado, afinal, podia ser eu. Mil acessos em três meses é bastante significativo. É preciso considerar que se trata de um site de escritor periférico, longe da consagração, não tendo vendido mais que três mil exemplares de um único título seu, infanto-juvenil, os demais (uma dúzia, para todas as idades) estando na casa dos mil exemplares, miserável média nacional.
Quando o trabalho em Brasília me permitiu uma pausa, já em plena noite, dei uma espiadela e o contador registrava 1.008! Nossa, eu tinha passado dos mil, e nem estava lembrando de coisas assim, marcas, símbolos, quantificações, níveis de convivência pela leitura etc.
Paralelo a isso, uma reflexão se faz. Somando-se todos os comentários postados durante os, neste momento, cerca de 1.100 acessos, a quantidade de comentários a marcar a presença estimulante dessas visitas não chega a cem. Menos de 10% das pessoas que me lêem me escrevem. O blogueiro, tonitroante em seu site com 15 links que mal tem tempo de atualizar com a periodicidade desejada, sempre imagina que vai receber acenos verbais e, sim, até mesmo críticas severas em razão de algum comentário mal-calculado. Isso faz sentido e não faz nenhum.
Faz sentido porque se sabe que há posts em blogs que geram trinta comentários. (Como nos mesmos blogs, outros posts não geram um comentário sequer.)
E não faz o menor sentido quando começa a haver no País um verdadeiro movimento feito de protestos em função de uma situação irônica. Parece que tem mais gente que escreve que gente que lê. Eu, por exemplo, conheço mais escritores vocacionados que leitores vocacionados. Meus amigos que lêem são os mesmos que escrevem – e publicam. Desta forma, cabe a conclusão de que ou o cara é escritor ou não é, mas ser apenas leitor (sem ser escritor ao mesmo tempo) é mais raro do que ser escritor (sendo este um evidente leitor, o que não conta).
Simplificando o que não precisa ser complicado: o pessoal parece querer ler, de fato, mas nem por isso obriga-se a deixar um comentário. Alguns, inclusive conhecidos (daí terem me confessado), explicaram por e-mail: “não vou redigir qualquer bobagem só pra dizer que deixei um comentário; o prazer ou a perturbação da leitura me bastaram.”
Parece que quem tem de aprender a lidar com tudo isso sou eu mesmo. Escrevo para ser lido, não tenho dúvida. Sem comentários como retorno da leitura alheia, poderia, meu texto, parecer destinado a tornar-se somente um monólogo. Mas não me fiz leitor lendo comentários em blogs.
E o contador, no dia 17 de junho, tendo chegado ao número 1.000, é uma prova infalível de que leitores existem e leitura se faz. Se os comentários vieram numa proporção ínfima, isso demonstra que, ao contrário do que muitos reclamam, temos leitores, sim. Mais do que escritores. E a leitura, já dizia o sempre citado Jorge Luis Borges, é um ato mais civilizado do que o da escritura. (21/06/2008)

UMA VELA PARA MACHADO

21 de junho de 1839. Há 169 anos nascia Machado de Assis, de nome Joaquim Maria (Portugal, sempre Portugal, menos em sua futura literatura, não pelo mal de Portugal, mas pelo bem do Brasil). Como está mais vivo do que nunca, como realizou uma obra de certa forma “inexplicável” devido às circunstâncias de seu nascimento e de sua formação, é mais do que justo – não representa nenhum excesso acendermos uma vela e comemoramos esse aniversário.
Filho mais velho do pintor (de paredes) Francisco José de Assis, um mulato filho de pai ex-escravo, já liberto antes da Abolição, e da lavadeira Maria Leopoldina Machado de Assis, branca, portuguesa, nascida na Ilha de São Miguel, no arquipélago dos Açores. Cenário do nascimento: o Morro do Livramento, à época zona portuária da cidade do Rio de Janeiro, ao norte. Muita coisa mudou, naturalmente, mas, algumas, para pior. Embora tenha sido declarado patrimônio histórico nacional, o Morro, hoje, é favela (apesar de ter mudado o nome para favela da Providência e outros detalhes que não cabe bem discutir numa nota de aniversário).
Joaquim Maria foi batizado a 13 de novembro daquele ano. O Rio de Janeiro, corte do Primeiro Império (em dois anos Dom Pedro II, então com 14, seria declarado maior de idade, subiria ao trono e iniciar-se-ia o II Império), contava com 200.000 habitantes enquanto São Paulo, para se ter uma idéia, tinha uma população de apenas 12.000 pessoas.
169 anos Machado de Assis completa hoje. Tem muito ainda pela frente. E, sobretudo, todos nós, os que lêem, diante da agudeza desafiante de sua literatura. (21/06/2008)

segunda-feira, 16 de junho de 2008

A UTILIDADE ÓBVIA DO COMPUTADOR

Blog é o seguinte: todo dia. Duas vezes por semana, como está sendo, às quartas-feiras e sábados, não dá. Fica como jogo de futebol, que a gente aceita porque, afinal, os caras têm de treinar, descansar, bolar a tática. Tudo isso o escritor, jornalista, blogueiro tem de fazer também. Mas como é um só, e não um grupo – e sem treinador! –, a torcida não espera. Quer novidade a toda manhã. Ou prosa. Quem não gosta de uma boa prosa? A prosa – aqui no extremo sul, vocábulo que substitui o sempre bem-vindo diálogo – aquece o frio de maio, junho, julho e agosto. E aplaca o inferno do calor dos outros meses.
Mas nem todo autor, nem todo responsável por um site com blog e ainda mais outras mumunhas chamadas seções, links (no meu tem 15!) consegue tempo para deixar tudo azeitadinho e renovado todo santo dia. Há dias de que o Diabo gosta, e nesses o escriba nem chega a sentar frente ao computador. Se sentasse, seria para arrumar algum software que pirou, algum arquivo que atravessou a fronteira rumo ao oculto, alguma possibilidade de conexão com a rede mundial de computadores que não quer saber de dar as caras. E, sem conexão, não há blog, site, links que possam ser atualizados.
Já passei por dias assim. E, desamparado, escrevi igual. Entretanto, foi estranho. Era como se eu estivesse falando sozinho, atuando num palco frente a uma platéia vazia. Estranho mesmo. Quem disse que quando tudo está nos conformes eu vejo, noutra dimensão, quem pode, a qualquer instante, acessar o meu site? Mas a verdade, fenômeno inexplicável, é que sabendo que há acesso (como uma porta que se deixou aberta e então existe, sim, a chance de uma invasão, uma visita, uma surpresa, e, mesmo, a confirmação de que a indiferença – aí sim – é legítima, comprovando-se no contador que não muda o número de acessos a cada vez que visitamos o próprio site), sabendo que o universo digital está em movimento “na nossa máquina”, é exatamente como se tomássemos consciência de que células novas alimentassem nosso corpo e ele, em razão desse fenômeno, pudesse produzir muito mais do que produziria se fosse confinado aos pré-históricos tempos da máquina de escrever, nos quais se escrevia (com fita metade preta, metade vermelha, e com corretivo líquido para pincelar de branco sobre a letra errada na folha de papel, úmida e com os relevos do corretivo – errorex, maxprint –, ou com os sulcos do choque violento das teclas a cada letra impulsionada pela ponta dos dedos).
Aliás, alguém aí já estudou o fenômeno da mudança radical de estilo e de produção (quantitativa) depois do advento dos editores de texto? Eu sou um que posso dar um testemunho de quem experimentou a maior evolução na história da arte depois (nem sei se depois; talvez junto) da invenção da perspectiva na pintura. Passei a escrever cinco vezes mais. A errar dez vezes menos. A corrigir (embora errasse menos porque o teclado diante do monitor é mais macio e nos dá mais segurança que o teclado diante dos nossos próprios olhos e mais nada), a corrigir, repito, dez vezes menos.
E dois detalhes importantes. O primeiro. Antes, a produção de um texto envolvia no mínimo duas pessoas: o escritor e uma datilógrafa, que passava a limpo a bagunça de seus originais. Hoje, o conforto dos inúmeros recursos que um editor de texto oferece fazem com que não exista bagunça. Pronto: um mal social, datilógrafas desempregadas e uma categoria de mão-de-obra especializada a menos. Ah, sim, ainda existem digitadoras, mas não para escritores e sim para grandes conglomerados, instituições.
O segundo detalhe importante: o espaço físico. Para guardar em casa dez originais, era preciso um bom espaço na estante. Hoje o espaço físico em disco rígido armazena no computador uma biblioteca inteira. Ou duas? E cada uma com 5.000 volumes, por aí. O cara pode ser o Simenon, escrever 300 livros e deixá-los todos na gaveta, isto é, num diretório. Ninguém vai notar (bem, essa parte não é tão gloriosa assim).
Conclusão: o estilo mudou. Não há como escrever da mesma maneira como se escrevia no tempo do manuscrito, à caneta, ou, mais tarde, à máquina de escrever. O desempenho do computador, espantoso se pensarmos no trabalho braçal que o escritor tinha para redigir seu livro há quinze anos, propiciou uma guinada violenta na forma como hoje escrevemos. Os poetas são os que menos sentiram o solavanco. Os cronistas, também, embora a número deles tenha quintuplicado. Mas os ficcionistas, sobretudo os de narrativa longa, cansados de usar tesoura e cola, e de, por causa de uma pequena alteração no começo de um romance já com duzentas páginas, verem-se obrigados a trabalhar duramente para atualizar a história toda até o fim apenas por causa da mudança de um nome, de uma idade, estes sabem que o computador eliminou todo e qualquer esforço e os deixou livres para pensar mais longe: poderem dedicar-se ao que mais interessa, as mudanças mais drásticas, as nuances, os ritmos, a voz geral da linguagem que desejam cada vez mais criativa ou convincente, e a reconstrução da estrutura ficcional, que querem, sim, sempre inusitada nem que para isso seja indispensável recomeçar o livro todo desde o começo. Tal mudança não representará um acúmulo demasiado de trabalho.
O autor está livre, enfim, para ter uma idéia original, nova, que oxigene sua obra já quase no término desta, mesmo que a idéia precise manifestar-se, digamos, a partir da página sete. As dificuldades materiais mataram muita obra-prima. Isso, por dignidade, nunca serviu de argumento aos prejudicados, que simplesmente se sentiram sem talento suficiente. Até pode ser. Mas que o computador os ajudaria a ir mais longe, ah, ajudaria. Não fosse ele, e este post estaria no terceiro parágrafo. Talvez daí nem passasse.
Sem contar que só seria lido pela família. E olhe lá. (17/06/2008)

sábado, 14 de junho de 2008

UM ESPAÇO PARA A CONVIVÊNCIA

Hoje discuti com minha filha mais velha, a de 23 anos, que faz Psicologia. Discussões são normais. São saudáveis. São bastante necessárias e até mesmo fundamentais, inadiáveis.
Falávamos de minha filha mais nova, a de oito anos, e de sua impulsividade. Ela não é uma criança agressiva, mas, naturalmente, não a tolhemos a tal ponto de calar nela a espontaneidade de mandar um coleguinha à merda. Quando ela acha que ele merece. E ela manda. E os professores, oh, horror dos horrores.
Fui chamado a uma reunião com a professora que dá as matérias do currículo básico mais uma orientadora pedagógica. Aconselharam-me um psicólogo para a menina. Confesso que fiquei calado, encolhido num canto, se estivesse num canto. Mas estava sentado à mesa de reuniões, mesa redonda, confortável, como as duas educadoras, que pontificavam acerca das demais vinte crianças que, segundo o parecer técnico, demonstravam um comportamento menos agressivo que o de minha filha.
No dia seguinte, sem que minha pequena soubesse, fui à hora do recreio e a assisti brincando. Fora deixada de lado. Corria na conhecida brincadeira de pega-pega enquanto oito, nove meninas (os meninos são outro departamento, mais duro mas mais organizado: já verão) a ignoravam completamente, e ela, inocente (alguém aí me ajudaria, afirmando que não?), corria como uma cabra-cega, ignorada por todas as... coleguinhas? Não fazia parte da brincadeira, mas – ah, dureza de assistir – simulava para as demais, num adiamento da derrota, da humilhação, ou simulava para si mesma, pelo mesmo motivo, e pela autopiedade, estar fazendo parte (em ocupar a mesma hora o mesmo espaço e os mesmos movimentos) de uma confraria que estava fechada. Fechada para ela.
Os meninos, num pátio contíguo, cantavam, em brados retumbantes, “filho-da-puta, / vai tomar na bunda! / Já te ensinei. / Ou queres uma tunda? /Filho-da-puta, /vai tomar no cu!..” E mais não ouvi. Perguntei de que série eram, e um deles, tranqüilo, confiante, me disse: 3ª. Aliás, da mesma turma de minha filha. Eu acabara de assistir a um trecho do filme de Stanley Kubrick, “Full Metal Jacket” (tradução literal, “Cartucho Forrado de Metal”, comercialmente, “Nascido Para Matar”). Mas sem arte alguma. Já estão treinando para o alistamento aos oito anos?!
E a agressiva era minha filha... Ah, sim, a de 23 argumentou que eles tinham a desculpa de estarem fazendo uma livre manifestação numa hora recreativa e sua irmãzinha, ah, demonstrava belicosidade em horas pontuais. (Não a estou criticando – embora pudesse, claro –, mas aos conceitos de seu curso de Psicologia. Dá pra levar a sério?) Um hino entoado oculta toda a violência contida em sua letra só porque é hino é “não atinge ninguém”? Sou testemunha. Pobres de meus ouvidos...
Lembrei de vários livros e artigos acerca do tema “crueldade da infância”. Só na internet encontram-se milhares de sites citando-o. A maioria vai mais ou menos por um caminho: “este trabalho faz com que ‘as crianças preocupem-se pouco com a importância da tarefa; sentem-se satisfeitas quando dão o máximo do que são capazes e não se vêem excluídas das possibilidades de exercitar-se, o que o ambiente lhes ofereceria. (Maria Montessori, 1965.)’
“Ao contrário do que testemunho na instituição pública, onde a criança se vê obrigada (e é o que o educador mantém) a permanecer, por quatro ou mais horas, em uma minúscula sala, sentada em uma cadeira desconfortável, e, como se não bastasse, sem poder nem sequer olhar para os lados.
“Isto, para mim, é uma crueldade, pois eu, que trabalho de uma forma em que procuro proporcionar à criança um desenvolvimento físico juntamente com o cognitivo, não imagino como uma criança possa se desenvolver amplamente em uma situação como esta.
“Não é necessário evocar um método assim para se pensar isso. Atualmente, estou tendo o prazer de assistir e participar da disciplina Teoria Pedagógica e Produção em Educação Física, em que fica claro tal necessidade de movimento, principalmente tratando-se de uma criança na Educação Infantil. A criança, na Educação Infantil, sente necessidade de se movimentar, e é impossível obrigá-la a ficar durante quatro ou cinco horas sentada em uma cadeira desconfortável e dentro de uma sala fechada, e continuarmos assim a reproduzir a ‘educação bancária’”, isto é – retoma aqui o blogueiro –, aprendizado via prisão num banco, ou seja, num assento frente a uma cadeira sem a menor liberdade. Regras. Regras! “Limite” é a palavra-chave. Ainda bem que a poesia, desde o Parnasianismo, livrou-se disso.
Limites, claro. Mas são precisos limites para a instauração de limites.
Walter Benjamin, ao contrário, diz: “é preciso repensar o processo educacional. É preciso preparar a pessoa para a vida e não para o mero acúmulo de informações.” Fala o pensador da Escola de Frankfurt da primeira infância, que vai do nascimento aos três anos? Da segunda, que vai dos três aos sete? Ou da terceira, que vai dos sete aos doze, quando então (perdição das perdições! Risos, e amargos) entrará a adolescência? Ora, fala da in-fân-ci-a. E não de estágios, mesmo que de estágios se trate e, claro, é fundamental estarmos atentos a tais ciclos.
Minha “velha” filha de oito anos, por ter entrado já (coitadinha) na terceira infância, parece, esperam dela a atenção permanente e inquebrantável dentro do ambiente asfixiante da sala de aula. Asfixiante porque assim o exigem. Porque ai de quem ria, olhe para o lado, se apaixone, se irrite com o colega que não pára de tirar meleca do nariz, deboche dela porque ela é branquinha como uma Branca de Neve, pequena como se tivesse menos idade (parece que aos oito anos as meninas já exigem de si o biótipo da Gisele Bündchen; claro, a Gisele aos oito) e os meninos o biótipo de um jogador que o Bernardinho aprovaria na Seleção Masculina de Vôlei.
Delicada já no desenho, no approach com que realiza sua ação – sempre discreta –, ela não impressiona senão aos adultos, que se encantam movidos pela nostalgia de um tempo em que ser puro não era ser demente. Tratada como demente, a pequena de oito anos, que tem, e muita, personalidade, não dá mole, e manda-os, aos colegas, para aquele lugar. Como não é cínica, é geralmente flagrada pela professora que, passada para trás com o estratagema dos mais astutos (alimentados pela atual cultura da agilidade na hora de se dar bem sempre e em tudo e com qualquer um), não percebe que algo houve antes e enxerga apenas a reação de minha filha, indignada, porém, descrente quanto à capacidade da letárgica educadora em entender suas razões e, pior ainda, em aliar-se a ela. Então nem faz questão de explicar-se. Sobra para mim. Mais uma reunião. E já são três escolas.
E isso eu discutia com minha filha mais velha, que mora sozinha, que não compartilha, infelizmente, esse dia-a-dia. Ou felizmente.
Como faz Psicologia, fica um tanto convencida de que a falha está aqui em casa. E digo-lhe que sim, que falhamos TAMBÉM, não participando do aplomb socializado, a desfilar uma aparente tranqüilidade que nestas quatro paredes onde escrevo este post, não, não conseguimos. Cultiva-se a decência (nem é porque se queira, mas porque não conseguimos ser diferentes) de nos mostrar inseguros, precários, menores que o gigantismo esmagador das situações repetidas, nas escolas, em tenras idades, e nas instituições e mesmo na vida privada, em idades mais capazes de escapar incólumes.
Gostaria de ajudar minha filha de oito anos. Peço-lhe – exijo até – que fique quieta, que cale ante qualquer provocação. Que seja rápida apenas no ato de buscar a professora com o olhar e denunciar o início da declaração da batalha. Mas que não entre na batalha. Isso leva tempo. Já a feriram o suficiente para ela pensar duas vezes quando é agredida, quando é provocada com deboches ou desafios a que não pode fazer frente. Aprender, a esta altura do campeonato (oito anos é tempo bastante, é experiência suficiente), a deixar para lá, impossível; a administrar até que a professora esteja a seu alcance e ela possa relatar o que houve sem que contra ela pese algum fato – mesmo de legítima defesa – ainda é um processo que vai demorar.
O que me consola é que ela tem tempo. Eu é que quase não tenho e o que me sobra é indignação, não prazos para conduzir da forma adequada isso tudo. A forma adequada? A pior possível! O sorriso amarelíssimo, a postura própria dos políticos, a convivência forçada com gente que se fosse criança, e eu também, faria como os colegas dela, e eu, como minha filha.
Este capítulo não se fecha. Continua outro dia. Mães (pais existem? Dizem que nas novas gerações os homens estão mais presentes, mas ainda tenho minhas dúvidas. Só consigo falar de filhos com mulheres), mães que tenham problemas graves assim: filhos rejeitados pelos colegas, estigmatizados pelos colegas, que não conseguem fazer amigos na escola, e que, pior, os professores os consideram culpados diretos pelas dificuldades de entrosamento, podem me escrever. Temos muito o que conversar.
Sobretudo porque conversar com as escolas tem sido inútil. (15/06/2008)

quarta-feira, 11 de junho de 2008

A NOBRE ARTE

Meu corpo se ausenta quando amo. Vai não sei aonde ainda que eu conheça o endereço: o teu nome, o lugar onde moras. Meu corpo se apresenta quando amo. Tomado, subitamente, pela presença de meu espírito – em geral ausente, disperso, perdido, sem paraíso para repousar, sem febre para o necessário delírio, sem outro corpo com outro espírito para somar-se e confundir-se e me deixar em paz, enfim, e alegre. Alegre como um menino. Disposto como um rapaz. Sabendo o que faz, como um homem.
Meu corpo se ausenta quando o amor se apresenta, cumprimenta-me, chama-o e ele, em chamas, se vai e me deixa, desolado, na fome do que é saudade, na sede do que é desejo, na vigília do que é a intimidade do reconhecimento. Depois, quando menos espero, meu corpo volta. Toma-me como se eu não pesasse, como se eu lhe pertencesse e fosse corpo dele, simples armação esvaziada para a qual ele agora retorna para preencher com seu miolo de poemas que eu nem saberia ler, que dirá escrever.
Retomo-o e junto dele minha mente a dizer à outra mente, também minha – e agora? Pasmos, eu e eu, nos abraçamos após esse meu corpo de volta, com um sentir que faz o meu viciado pensar um rabisco das minhas verdades humanas quando não há um amor a assaltá-lo. Porém, felizmente (ó, glória excelsa!), assaltado, retorna sem o frágil tesouro de sua defesa feita de tédio, de medo, e, pior, de indiferença. Assaltado, rouba-o, o amor, no que ele tem de mais forte: sua resistência em virar o cristal da água serena onde encontra alívio, espelho, mergulho que o toma inteiro e molda-lhe formas e idéias, enfim limpas da suja solidão.
Teu corpo, sangue feito espírito, fala ao meu espírito feito corpo, sangue feito palavra que te escuta e já não precisa do consolo de escutar a si mesmo porque meu ego, pedra polida, virou areia que o morno vento carrega e deposita sobre as ruas antes evitadas.
Agora, após o advento (amo!), ponho a rua no colo, o bairro no peito, a cidade como o único mapa no qual minhas pernas escrevem o texto mais urgente: a nobre arte de chegar até onde estás, amada. (12/06/2008)

terça-feira, 10 de junho de 2008

CÃO NO FRIO

Quem quer saber do menino que há 41 anos chegou a Porto Alegre? Quem quer saber do que lhe aconteceu? Escrevo para quem quer saber. Para mim, em primeiro lugar, não porque nosso natural, necessário egocentrismo (sem ele dificilmente eu produziria algo além de panfletos ou manuais) se satisfaça em acariciar o próprio ventre, imagem fácil e, por isso, enganadora, mas justamente por ser ego e autocentrado: exponho-o na nudez exata daquilo que ele especialmente desejaria esconder e/ou exibir. Não sou quem o lê. A tarefa, ingrata às vezes, é verdade, mas surpreendente, pertence ao leitor, e só a ele. E o leitor me flagra como eu desejaria me flagrar. Assim, só me resta pedir emprestados os olhos confiáveis do leitor. Que não os nega. E então posso ver.
Quem escreve está sempre cego sobre si mesmo e só pode enxergar a distância, o que, de alguma forma, não o habita, e por não habitá-lo desafia-o à compreensão. Caminha em direção à realidade estranha e cada passo é uma revelação, por menor que seja. Mas quando o mundo habitado – mundinho – representa o único espaço possível (o eu), dele não se saindo, nele se estando preso, ah, amigos e inimigos, sabeis o quanto o cativeiro nos aproxima desse enganador eterno: o narrador como narrativa, o autor como personagem, o eu como um “ele” (nunca como um “nós” porque aí cairíamos na generalização, inocente e criminosa). E não adianta nem mesmo a sua autopiedade, se ele não souber disfarça-la bem. Aliás, ela é perigosa. Em geral não aparece, e quando aparece não é de autopiedade necessariamente que se trata.
Dada a aproximação, visto de perto, cada vez mais de perto, mais de dentro, mais egocentrado, mais egocentrífugo, mais egolatrina (no mínimo mantendo o pudor de jamais cometer a egolatria), esse “eu” se espanta como ainda cresce, depois de tantos anos passados, e revisita o menino já morto e desenterrado e decomposto, a exigir que se parta do pó numa exumação rigorosa, científica, adivinhando ossos, carnes, aspecto (nem as fotos antigas são confiáveis), tentando lembrar a voz fina, o andar ligeiro, o pânico do desconhecido, o alumbramento com o desconhecido, a excessiva emoção sempre ao lado.
Esse menino começou tudo. Um menino assim. Parecido. Não tenho como apontá-lo com o dedo. Impossível achá-lo entre papéis, entre declarações de parentes vivos que o viram correr, soltando pandorgas em Livramento. Lembro, vagamente (e por isso, por ser vaga, a lembrança é livre, e, pela liberdade, intensa, disposta a aliar-se a outras emoções de agora, estranhas ao menino). Daí meu ego vaga, entre vivos e mortos, sobretudo eguns (que lembra “ego” na sonoridade mas quer dizer “mortos” no candomblé que minha mãe, sem saber direito, praticou). Eguns (e não “mortos”, expressão menos aplicável) devido à condição de espectros emparedados no tempo, dali saindo transfigurados, todos eles hoje vivos – mas outras pessoas, transformados que foram pela vida.
Eu, inclusive.
Por isso a necessidade de buscar o menino que já não há, que não posso alcançar. E remo, remo, contra a agitada e excessiva corrente verbal, numa prolixa navegação até achar um ponto (não sei se o acharei) onde possa parar e saltar e mergulhar até o fundo feito de areia quase imperceptivelmente sendo movida, eternamente, pelo céu compacto da água que nos afoga.
Volto à superfície para respirar. Sem o menino, não encontrado. Mas o evoquei como se pode evocar: de mil maneiras, todas elas inúteis. Todas elas urgentes.
O ego feito egum, destroçado nessa busca frustrada, retoma a cotidiana tarefa de refazer-se, cada vez enrodilhando-se mais ainda, como um cão no frio, querendo ficar aquecido enquanto não consegue compreender-se. (10/06/2008)

quarta-feira, 4 de junho de 2008

CIDADE A DISTÂNCIA

1967. Um menino de dez anos, vindo do interior do Rio Grande do Sul, a 500 quilômetros de distância, às cinco horas da manhã, sob um sol tímido e sua luz enganadora, avista a ponte móvel Getúlio Vargas, que sobrevoa compacta as águas a anunciarem, na outra margem, Porto Alegre. O menino vem de Santana do Livramento. Passou, entre outras cidades, por Rosário do Sul, São Gabriel, pela entrada de Cachoeira do Sul, por Pantano Grande, por Guaíba e, enfim, a visão da ponte, e com ela, edifícios que se acotovelam no horizonte já próximo para recebê-lo.
Livramento é uma cidade fronteiriça de, então, 30 mil habitantes. Sete horas de viagem (numa kombi) por estrada asfaltada e esse menino se depara, quase súbito, com uma metrópole: mais de 400 mil pessoas. E é isso, esse fenômeno, bem rápido, o que ele descobre.
Que uma metrópole é mais do que muitos prédios a mais, algo além de uma quantidade enorme de avenidas largas, um lugar que sinaliza não apenas com praças e monumentos inimagináveis para esse menino de biografia modesta nascido num lugar modesto, mas, isto sim, um cenário capaz de abrigar a vertigem do movimento brotado de tanto trânsito de construções, pessoas, trânsito mesmo, cenas. Ou seja, a diferença entre o mundo precário de onde essa criança vem e o mundo que agora tanto a maravilha quanto a ameaça é o número assombroso de gente (e o que essa gente construiu). As personagens. Suas vidas. É isso, mais que os milhões de metros quadrados de área construída, que dão à cidade grande a grandeza que a torna um marco na vida desse menino e de tantos outros.

A manhã vai brotando. Dissipa a névoa que rasteja pelas águas do Guaíba. O sol cresce. A manhã corre com os automóveis na direção do trabalho. As paradas de ônibus apinhadas de gente. O menino vai descobrindo Porto Alegre com olhos arregalados, mudo de admiração.
Esse impacto, porém, é previsível. É o natural susto da mudança brusca de alguém que veio de uma cidadezinha para um centro urbano de dimensões colossais.
Gulliver em Brobdingnag, onde todos são gigantes, inclusive flora, fauna e, naturalmente, as mulheres. Por isso, embora inevitável, previsível, o impacto do menino também é colossal. (04/06/2008)

segunda-feira, 2 de junho de 2008

A BIBLIOTECA INVISÍVEL

Chego em casa e me debruço sobre os livros de sempre. De sempre? Não da eleição previsível dos que se deixam guiar pela lista, nem digo dos mais vendidos (esta é grosseira demais), não da lista dos recomendados pelos jornalistas bem-tratados pelas editoras e bem-tratados pela vida metropolitana que os pôs num posto de destaque, no bojo de um periódico freqüentado por anunciantes caros. Bons anunciantes: pagam bem, segundo a tabela do departamento comercial, atendendo as leis severas do Publicidade e Marketing; maus anunciantes: exigem bom espaço, na mídia onde anunciam, para seus produtos (livros, no caso) de qualidade rasa.
O fato é que me debruço sobre os livros de sempre. Não os dos leitores de sempre, guiados pelos sinais evidentes. Não os títulos, nunca!, selecionados pelo boca a boca fashion. Não. Mas os de sempre. Os de sempre para mim.

Reinaldo Santos Neves e sua erudição destilada nos trópicos, às margens do Atlântico, em pleno Espírito Santo. O homem tem uma fluência narrativa de mãos dadas com uma capacidade de criar ambiências, tipos e conflitos de plena Idade Média. E mora aqui, a 2.000km de onde escrevo, Porto Alegre. Leiam A Longa História (Bertrand Brasil, 2007) e me desmintam se conseguirem. Dou-lhes vinte séculos de produção literária ocidental para que se informem, se formem, e provem que votei no livro errado e que minha estante cedeu seu espaço em vão.
W. J. Solha. Edita, como Reinaldo, há 30 anos, e ninguém, nem público (que tradicionalmente tá por fora) nem crítica (que tradicionalmente “sabe das coisas”) percebe que História Universal da Angústia (Bertrand Brasil, 2005) é um monumento engenhoso em meio a uma literatura minguada como a nossa. Nesse livrão, 500 páginas, Solha reúne sete novelas onde reconta, humanizando-os, os mitos, e recolhe do extravio a despercebida grandeza contida no cotidiano esmagado pelas catástrofes – da antiguidade clássica à bomba atômica. Transcende o “simples” livro e atinge, ao refazer um percurso de violência quase impossível de narrar, o que merece ser chamado de projeto.
Há um que está no forno, de Syllas Mendes David, um carioca, professor aposentado, que trabalhou durante décadas na Baixada Fluminense. Seu Caderno de Zoologia do Aluno Waldeney de Jesus da Primeira Série da Escola da Vida saiu em 1977, pela Civilização Brasileira, quando Enio Silveira dava as cartas. Soube agora que o autor, três décadas depois, reescreveu o livro e o prodígio voltará à tona, talvez nalgumas livrarias, apenas, aquelas, poucas, que não se sustentam apenas de besta-sellers.
Um já morreu, em 1998, Campos de Carvalho (no enterro “não tinha gente suficiente para carregar o caixão”), mas a reunião de suas quatro novelas – A Lua Vem da Ásia, Vaca de Nariz Sutil, A Chuva Imóvel e O Púcaro Búlgaro – fez desse volume, lançado em 1995 pela José Olympio, um fetiche cuja lombada namoro, de quando em quando, lançando olhares que misturam admiração e amargura. O non sense e a ironia, um humor ácido flertando eternamente com a lógica, marca da literatura de Carvalho, serviriam bem para resumir sua trajetória solitária. Livro de sempre.
Valêncio Xavier, autor de O Mez da Grippe e Outros Livros (1998), Minha Mãe Morrendo e Menino Mentido (2001) e Rremembranças da Menina de Rua Morta Nua e Outros Livros (2006), todos editados pela Companhia das Letras, faz colagem, monta ilustrações – desenho e foto – antigas com texto o menos literário possível, chegando a um resultado, sem exagero algum, inacreditável: reanima o passado das primeiras décadas do século XX e nos põe, leitores, dentro de um quarto escuro onde no fundo, trêmulas, vemos imagens antigas e lemos algo que vai além da legenda mas arrasta desta e seu gênero uma inocência pervertida – pelo que esconde.
Tem muito mais na minha biblioteca. Dezenas de autores, centenas de títulos. Só do Brasil. (Outros países também optam pela facilidade e escondem-esquecem-ignoram seus artistas de exceção, incômodos, inclassificáveis e, por isso, invendáveis.) Ninguém viu ou pouquíssimos viram. Ninguém leu ou pouquíssimos passaram os olhos. Posso adiantar alguns nomes: Ricardo Guilherme Dicke, o Guimarães Rosa do Mato Grosso; Vicente Franz Cecim, o Nietzsche poeta-filósofo, para além dos gêneros, do Pará; Tânia Jamardo Faillace, autora do maior romance do mundo, 7.000 páginas e 50 anos de vida política, repressão, guerrilha e miséria social no Brasil, do Rio Grande do Sul; Paulo Hecker Filho, o poeta desconcertante e o único crítico de verdade, enquanto opinião pessoal corajosa, para além da argumentação de restritiva elaboração teórica, do Rio Grande do Sul também; e Jamil Snege e sua estética da auto-demolição, inclusive moral, um anti-escritor sem pose de anti-nada, do Paraná.
Paro por aí. Envolvido com meus livros de sempre, capas já coladas com fita durex, miolo amarelado pelo tempo de manuseio, conjunto heterogêneo a compor... o quê? Um cânone é que não. Apenas uma biblioteca. Como citá-la (feita de tantos desconhecidos, miseráveis quanto a uma desejável fortuna de reputação crítica) se não reconhecem um só nome, um só?! Que dirá todos os demais que a fazem, ainda que uma biblioteca, invisível. (03/06/2008)

PARA QUEM NÃO QUER LER 2

Escritor, crítico, oficineiro (de criação literária, redação criativa e leitura para além da leitura mais elementar), palestrante, assessor editorial, consultor e, principalmente, leitor, dói-me ver o quanto a leitura não interessa a... ninguém!
Dói-me porque à medida que amadureço percebo o quanto tenho de dar descontos para aqueles com quem falo, o quanto tenho de tratá-los como se os subestimasse, o quanto praticamente não tenho interlocutores no mundo natural.
Pelo fato de ler torno-me uma pessoa diferenciada (portanto, “diferente”, isto é, estigmatizada) da maciça maioria dos meus vizinhos, parentes e, até, pasmem!, dos amigos. Naturalmente, amigo é eleição do afeto, mas não apenas do afeto, que um coração quer, sim, ser inteligente. E então acabo estabelecendo laços de amizade com gente que lê: minhas possibilidades de encontrar amigos, desta forma, são reduzidas. Tenho poucos amigos, bem poucos.
E dos poucos amigos que tenho, quais os que lêem tanto quanto seria desejável? Metade da meia dúzia de amigos que possuo. A outra metade continua amiga porque os vínculos são antigos e não se dissolvem facilmente. Mesmo assim, há ciclos em que fico um ano sem falar com um amigo. Com quem? Ora, óbvio que é com aquele que não lê. Os que lêem sempre estão escrevendo e-mails, telefonando, tendo assuntos importantes ou interessantes para comentar, para solidificar ainda mais a amizade – mesmo que ela tenha se estabelecido em nossas vidas há pouco tempo. Nossos hábitos e vícios de leitura nos fazem mais próximos e menos estranhos uns dos outros; com os amigos que não lêem, o tempo nos ameaça, a cada ano, em tornar-nos apenas memória do que poderia ter sido e não foi.

Essa reflexão inicial serve de ilustração particular para dois fatos, graves.
Primeiro, a recente pesquisa nacional que aponta o índice de leitura do brasileiro de 1,7 livros/ano (imaginemos, para simplificação de cálculo, um livro de 170 páginas, ou seja, um livro de porte médio: uma página a cada dois dias se o ano tivesse 340 dias. Como tem mais, é menos que meia página por dia. Mas vamos arredondar para meia página, bem “cheia”... Considerando que uma página lida com extremo vagar leva dez minutos (logo, meia página levaria cinco), assim o alfabetizado brasileiro estará – está! – dedicando 1/288 avos do seu tempo para instruir-se, dar combustível, ferramenta, remédio, estímulo a sua mente. O que, convenhamos, trata-se do mais completo abandono à indigência cultural. É questão, sim, de saúde mental. E urgente.
O segundo fato provém das constantes visitas que faço a escolas e feiras de livro pelo estado do Rio Grande do Sul. Ah, e não esquecer que a média do estado é a mais alta do Brasil. Mas, confesso, ignoro esse número e sei que não vale a pena buscá-lo aqui, porque na prática ele em nada muda o quadro desolador.
Após uma hora e meia de palestra – de um papo no qual invisto toda a descontração, franqueza sem severidade, em que realizo uma autêntica apologia ao ato de ler, em que brinco, em que faço rir, em média, metade da platéia –, o resultado é: 70% de silêncio, nenhuma pergunta; 20% de perguntas totalmente inócuas, tipo com quem moro, se tenho filhos, quantos livros publiquei, se estou rico, para que time torço; 9% perguntam se eu já não pensei em outra profissão, confessam que ler é chato, difícil, que escrever é trabalhoso demais e... é melhor parar por aí.
Pois tem mais: e o 1%? O 1% cabe aos professores, aos trabalhadores da rede educacional que, acompanhando as turmas e organizando as feiras, permanecem mudos quase todos e um que outro gato pingado apenas se manifesta para se queixar, geralmente pedindo socorro, coitado, ao escritor aqui, quem sabe um mago, um visionário, com a resposta para transformar a realidade amarga de um país sem lustro.
Os organizadores de tais eventos, assim que me despeço, derramam-se, gentis, em elogios e agradecimentos. E, imagino, quando vou embora voltam ao ritmo de sempre: dão esporro nos estudantes, que não demonstraram preparo para receber o escritor, e sacodem a cabeça como querendo dizer “esta geração não tem jeito mesmo!”, enquanto olham o relógio, preocupados de fato com a janta e a novela das oito. (02/06/2008)