sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

SEM GRANA E SEM GRAÇA

O cara tava devendo para quatro bancos, cinco financeiras. SPC, Serasa, Banco Central. Perdera a fome há dois meses.
O cara tava com quatro meses da escola da filha atrasados. Já havia começado o novo ano e nem a rematrícula fora paga. E era a primeira escola na qual ela se adaptara. O cara não tinha vontade de ver filmes, de escutar música, de parar à janela e olhar a rua lá fora como um ser qualquer.
Sentia-se perseguido, com a pressão – cada vez mais forte – de quem está sendo perseguido, será preso, surrado, algo assim.
Humilhado já estava sendo, há muitos meses. Uma humilhação que ele sentia sobretudo quando via, na escola da filha, a abissal diferença entre o que ela recebia na comparação ao que os colegas recebiam. Tirá-la de lá para pô-la numa pior só porque era mais barato? A obrigação de dar-lhe a melhor educação passava pela consciência em casa mas não evitava o desfecho de proporcionar-lhe que estudasse numa escola de ponta. Essa conta ele TINHA de pagar.
O cara não tinha emprego, e os empregos possíveis pagavam salários que nem chegavam a fazer frente aos juros da dívida que ele contraíra como um tipo de herpes genital. E herpes, como acúmulos de dívidas, não têm cura.
Havia amigos. Havia amigas. Havia admiradores e admiradoras.
Estes lhe diziam: “Pô, cara, vê se te ajeita!” Como se bastasse a consciência e a vontade e a decisão de ajeitar-se.
A cada vez que assaltavam um banco sem ferir ninguém, ele sorria. E pensava: “os verdadeiros assaltantes foram assaltados.”
O cara devia três meses de aluguel e a imobiliária entregara a situação a advogados que ameaçavam entrar com uma ação de despejo em uma semana se ele não conseguisse cumprir com um acordo que o oneraria, além do aluguel no mês seguinte, mais 50% do valor como um acerto durante oito meses pelos três atrasados.
Uma amiga disse-lhe: “entre amigos, dívidas não são nada. O pior são dúvidas.” Perfeito, filosoficamente – mas um conceito tão nobre só brota em quem não afundou no buraco que o cara estava.
Até o pescoço.
Mandavam-lhe fotinhos de um mundo perfeito, colorido, com fundo melodioso e açucarado. Ele assistia aquilo de olho no relógio do computador e sentindo a sudorese nas mãos, prontas a continuar, no teclado, o trabalho que entregue em tempo recorde pagaria uma das três contas da semana.
Mandavam-lhe a alegria estampada num universo de implacável desarmonia como se tudo estivesse bem – e estava, entre os que lhe mandavam isso –, e a intenção era boa, mas o diagnosticado perdera definitivamente o faro para flores e o que o esperava, mais tarde, eram os repetidos terrores noturnos.
Surpreendia, ironicamente, que ainda o notassem.
Na verdade, não o notavam.
Notavam o que ele fora, talvez, o que ele poderia talvez ser, a idéia fantasiosa que uma pessoa – mesmo destruída pela doença mortal da dívida – passa aos demais porque a distância protege o horror que a engole e a morte que a carrega para longe da vida dos que vivem e não notam o que a cada dia vai desaparecendo.
Era o que o consolava.
“Um dia eu desapareço definitivamente.”
Mas isso ia demorar. O diabo é que ia demorar, e como! Ele estava na meia-idade e sua expectativa de vida era de mais um quarto de século. Teria de aturar o discurso moralista dos exemplares homens que serviam de referência para seu círculo, e também da generosa (e inútil) esperança dos que ainda insistiam em incluí-lo no mesmo círculo quando ele já não dispunha nem mesmo das pegadas que sua trajetória nos últimos 30 anos deixaram em sua vida e que os mais recentes destroços apagaram a tal ponto que nem ele tinha como localizar os lugares certos, as ações adequadas, exemplares, de sua própria autoria, autoria que agora ele era o primeiro a negar – pela impossibilidade de repeti-la.
Corria o risco de ter de morar de favor. De levar a filha para uma escola pública. De completar três anos sem comprar um livro, um CD, de não gastar R$ 10,00 num presente para ninguém, independente da importância que tivesse.
Falido, tornara-se um pesteado que só se aproximaria de alguém para pedir socorro ou um empréstimo pessoal. Empréstimo que não pagaria tão cedo. Um grande contingente, percebendo isso, afastava-se como quem se afasta de alguém com hanseníase.
A sua biografia, diziam alguns, estava sendo rasgada por ele.
Enquanto isso, a cada dois, três meses, ele rasgava um carnê, enfim pago. Mas ainda havia muitos carnês para rasgar.
E também admiradoras que falavam em “saudade”, que o elogiavam (manifestações que, claro, lhe faziam bem), e que só aumentavam a dívida – afinal, isso não era um consolo, era quase um deboche.
Num ponto ele concordava. Também nele a saudade era grande. A de muitos anos atrás, quando ele não devia e não era objeto do julgamento moral dos que não sabem o que é uma grande queda nem o objeto deslocado da admiração dos que se encantam com o que um homem agonizante foi um dia.
Foi. (27/02/2009)

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

UM SITE QUE VAI ALÉM

Certos sites não basta citar. É preciso mencioná-los mais detidamente. Com nome, endereço, e algumas considerações para os mais apressadinhos que talvez só a indicação de um bom lugar para ser visitado não baste. É o caso do site da escritora – mais especificamente contista e poeta – Cida Sepulveda, campineira na geografia mas com um imaginário que transcende, não pela geografia, mas pela contundência de estilo e cenas que podemos comprovar nos livros de poemas Sangue de Romã (Scortecci, 2004) e Fronteiras (Pontes, 2008), e no de contos Coração marginal (Bertrand Brasil, 2007).


Vá direto, sem escalas, a este destino, onde os fracos não têm vez: www.cidasepulveda.com

Lá você vai encontrar nove entrevistas de arrepiar: com Marcelino Freire (esse boca-suja genial), Fabrício Carpinejar (na rotineira exuberância); Álvaro Alves de Faria (um dos nossos grandes poetas vivos, poeta que se demitiu do Brasil e, fiel à língua, aderiu a Portugal, num gesto desconcertante a deixar leitores e – devia – editores de sobreaviso); José Castello, um raríssimo exemplo de rigor e generosidade aliados à melhor crítica possível e constante no país (uma espécie de leitor ideal); Moacyr Scliar, que, depois de dezenas de entrevistas, dá nesse site um de seus mais completos depoimentos; Gonçalo M. Tavares, o português acima de qualquer classificação, provando que Portugal é prodigioso: além de Saramago e Lobo Antunes, tem Gonçalo; Maurício Melo Jr., o homem-livro do Brasil, um militante da divulgação desse produto bastardo e desses personagens definitivamente marginalizados não fosse a resistência e inventividade de Maurício, a dar visibilidade ao autor nacional até mesmo na televisão; Suzi Sperber, oxigênio na academia, visão crítica aguda e democrática para além dos muros universitários; e, claro, eu, numa entrevistas sem contemplações que Mario Goulart orquestrou e que Cida, com muita coragem e competência, editou. Autor exposto, sem pose ou abrandamentos. Como é do jeito de Cida. A generosidade da coragem e, a partir dela, o atalho até a verdade onde ela nasce com a forma e as idéias mais densas e mais incômodas. O leitor não deseja adormecer. O site de Cida Sepulveda, dando voz a outros autores, além da própria e intensa voz da autora, sacode-nos do disfarçado sono eterno. É ir correndo conferir. E depois retornar bem devagar, saindo desse site pensativos, transformados, transtornados, quase claudicantes.

http://www.cidasepulveda.com/ é Tarantino ou os Irmãos Coen a serviço da literatura, para quem gosta de referências cinematográficas. Para quem quer referências literárias mesmo, os nomes dos convidados dizem tudo, a começar pelo de Cida, a responsável pela saudável carnificina. "Carnificina"?! Acho que exagerei. Reflexo de tanta sensibilidade e talento revelados através de uma força que o ambiente do site propicia, sem espaço para a retórica beletrista. (23/02/2009)

sábado, 21 de fevereiro de 2009

O PREÇO DA AMBIÇÃO

O empresário (palavra que neste caso exigiria um adjetivo mortal, que por decoro declino aqui de utilizá-lo) e ex-deputado Sérgio Maya, 66 anos, responsabilizado pelo desabamento de um condomínio – o Palace II, na Barra da Tijuca, Rio, em 1998 –, com a morte de 8 pessoas e 150 famílias (quantas pessoas?) jogadas ao desabrigo (não é outra forma de morte, sem nenhum exagero retórico aqui?), acaba de falecer, causa: infarto agudo. Isso ocorreu na madrugada de sexta-feira, dia 20, antes que sol raiasse como ainda não raiou para muitas dessas vítimas que esperam há onze anos – data da tragédia do Palace – indenizações que em sua maioria não ocorreram por alegação do sentenciado de que não possuía mais bens – arrestados – para pagar os estragos.

Maya morreu e isso nada representa. De bom, talvez, só o caso de que em Ilhéus, BA, onde se encontrava, não prosseguirá com seus planos de novas construções. Nesse tempo que passou, andou preso apenas alguns meses, foi solto, pagou algumas indenizações, teve bens leiloados (processo que se arrasta até hoje) para fazer frente às reposições de 120 famílias com ganho de causa. O percentual que viu a cor do dinheiro até agora foi ínfimo. O sujeito continuou a agir, inocentado diversas vezes e julgado outras tantas das irregularidades da construção (material de categoria inferior ao anunciado, para começo de conversa).

A saúde acusou o baque, claro. Se a justiça funciona mais ou menos (menos que mais), a do corpo é mais incisiva, e não quer nem saber. Ele carregava na alma esse peso de toneladas que acabaram por fim em derrubá-lo. Se por acaso não foi a consciência culpando-o, foi a própria ambição buscando salvaguardá-lo do que não podia salvá-lo jamais: ele próprio, destinado, pela trajetória, a implodir-se.

O velório é grande. Não de Sérgio Maya, onde palavras como dor, perda, lágrimas etc. nem passam pela cabeça de quem se debruça sobre a notícia, mas o de provavelmente mil pessoas ou mais, atingidas pela construção de um prédio que a Sersan – também com bens leiloados –, empresa que ele dirigia, como uma entidade abstrata perpetrou um dos grandes genocídios do final do século XX no País. Aquele tipo de genocídio que os responsáveis podem chamar de acidente, acaso, tragédia imprevista ou que expressão quiserem. Os únicos que estarão velando o corpo de Sérgio Maya. E, claro, algum familiar, com o mesmo sangue mas, espero, com outra noção de justiça e com uma ambição que não se alimente de vítimas mas das iniciativas responsáveis, cada vez mais raras, quase um milagre.

As vítimas do Palace II nada ganham com essa morte. Mas desconfio que ganham, e muito, prováveis futuras vítimas, uma vez que recentemente foram apontadas irregularidades até mesmo num projeto que Maya havia, duas isquemias depois, apresentado em Ilhéus para um Centro de Convivência para idosos na Praia de Cururupe. Mesmo à sombra da morte (que talvez ele não pressentisse), a ambição suplantava o passado, comprometia o presente e impedia o futuro. Que se foi embora mesmo. (21/02/2009)

domingo, 15 de fevereiro de 2009

TURISMO LITERÁRIO: A CIDADE NA LITERATURA, A LITERATURA NA CIDADE

A ficção enfim chega ao mundo real. Não é verdade. Chegou há muito tempo, nós é que não nos dávamos conta. Assim como percebíamos que o mundo real chegava na ficção, mas, distraídos, acabávamos separando-os e, assim, empobrecendo o mundo real – porque o mundo imaginário, dele resultante, direta ou indiretamente, o recriava, o potencializava, o embelezava, o engrandecia, o enriquecia, o reconhecia.
Aceitando esse obstáculo (nosso olhar viciado) a impedir cidades e seus artistas de se misturarem nas ruas, nas praças, na geografia, enquanto de fato retratavam-se mutuamente, perdemos muito dos escritores, no caso específico da literatura, naquele aspecto de sua obra onde o cenário acaba fatalmente personagem.
Perdemos demais na cidade pela qual circulamos, cegos ao que a literatura dela já mereceu que a cidade mesma trouxesse para fora dos livros o que nos livros não podia ficar escondido, sugerido. E a cidade – em pedra, em bronze, em traços, em logradouros, em feições físicas – concretiza o que um imaginário edificou em palavras mas ali está ao alcance de nossos olhos, mais que miragem: presença táctil.
A literatura é uma via ampla demais para ser descartada na hora de conhecermos um lugar, uma cidade, um país. E na cidade, convém lembrar, a literatura não está apenas nas bibliotecas, nas livrarias, nas editoras, nas academias, nas casas dos escritores – ou nalguma sala onde um leitor concentrado mergulha fundo em um lugar, local, prédio, escada, janela de um último vandar vertiginoso, sítio, espaço, mato, lagoa, mar, vila, estrada.
Porto Alegre, de onde escrevo, não está apenas na Porto Alegre propriamente dita. Às vezes nem está nela mesma, mas em páginas da primeira fase de Erico Verissimo, como em Caminhos cruzados, em A Guerra no Bom Fim e Os Voluntários, de Moacyr Scliar, em Cães da Província, de Luiz Antonio de Assis Brasil. O Rio de Janeiro reside nuns cinqüenta textos de Machado de Assis, ou em O triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto. São Paulo nas Novelas paulistanas, de Antônio de Alcântara Machado, ou no romance-rio Balada da última cidade, de Renato Modernell. Alguns monumentos específicos, como a ponte Rio-Niterói, no conto "A maior ponte do mundo", de Domingos Pellegrini, autor que redesenha o interior do Paraná e suas sagas em Terra vermelha. Leia Miltom Hatoum e Manaus, esse milagre irônico, aparece como jamais se mostraria em Manaus mesmo.
Dá para fazer turismo sem sair de casa. E até mesmo atingir regiões fora do planeta (sem deixar de fazer parte dele), como a Macondo imaginária de Gabriel García Márquez. As sugestões são muitas. Só não cito aqui uma centena porque a dica foi dada e o resto é com vocês, leitores-turistas, capazes de encontrar com facilidade livros-lugares para visitar. (15/02/2009)

sábado, 14 de fevereiro de 2009

UM MILHÃO E MEIO DE LIVROS NA ESTACIÓN MAPOCHO

Há dois anos eu visitava uma feira e um país que me impressionaram. Nada escrevi na época. Faço-o agora, dois anos atrasados, mas o tempo para os textos é benéfico. Quase sempre. Espero que seja este o caso.


Outubro de 2007. Sou convidado para ir a 27ª Feira Internacional do Livro de Santiago, no Chile. Já estive em 50 feiras no interior do Rio Grande do Sul, desde a maior, a da capital, Porto Alegre, com 170 estantes, até uma em Cachoeira do Sul, com nove barracas que o sol tornava umas fornalhas. Já estive em feiras mais nobres, sim, no formato de bienais, como a de São Paulo e do Rio de Janeiro, onde Xuxa e Malu Mader (cujo marido, Toni Belotto, lançava um romance policial) arrastam multidões e só encontram rivais à altura num Pedro Bandeira ou num Paulo Coelho. Já um escritor sério, com rigor no projeto a que se propôs, autor de obra sólida, mexe com as atenções apenas por quinze minutos, meia hora se tanto.
Além do meio do caminho de minha vida, vejo-me então perdido em selva obscura. Chile! Um outro país. Feira internacional. Quem sabe, o papo será outro. Feira de livro é feira de livro. Já vi tantas. Já li sobre tantas. A de Guadalajara, concorrida. A “mais importante”, em Frankfurt, aonde fui em 2006, não vale. É um centro luxuoso de negócios. Desinteressante sobre todos os aspectos, exceto os econômicos.
A 8.000m de altura, com a velocidade média de 750km, o avião que me leva de Porto Alegre a Santiago parece parado no ar. Olho para baixo e vejo o Vale da Lua e, logo, o Deserto do Atacama. Legítimo tabuleiro, desenhado com as manchas regulares e tão liso como um mármore. Dessa distância, o céu sem nuvens, o ar limpo pela luz, o cenário é absolutamente irreal. Sinto piedade das centenas de fotos que vi até então. Estou entrando em outro planeta. O mundo é maior do que eu pensava e em cerca de 2.000km saio de uma paisagem afável para um quadro de Paul Klee pintado em tons de um cobre acinzentado.
Depois a Cordilheira dos Andes. Meia hora de cumes de montanhas que sobrevoamos transversalmente e que parecem desbastadas a canivete; a neve mais se assemelha a uma cal ressecada, pintalgando aqui e ali. Tudo é menos impressionante no sentido de menos majestoso; paradoxalmente, desconcerta – tem a face da geografia de um mundo tirado do computador ou de uma dimensão remota ou futura demais para o nosso presente inoculado por uma topografia modesta.
Descemos em Santiago e a cidade só aparece – suas construções, vias, pessoas ocasionais – no último minuto, como se, ultrapassada a cordilheira, visível de qualquer canto da capital, escondesse o território dos santiaguinos até o momento extremo, quando já perdi todas as referências, menos a da gravidade.
Um taxista, gordo e risonho, que por isso mesmo me distrai e então me assalta em U$ 35.00 até o hotel localizado a 20km do Aeroporto de Santiago, fala bem do Brasil e diz que no futebol a bronca deles é com a Argentina. Claro, é em outras áreas também. Primeiro habitante com quem travo alguma intimidade, percebo, apesar de seu esforço de atenção, o formalismo. (No século XVI, antes da conquista dos espanhóis, parte do Chile era governada pelos Incas, daí a herança dessa postura de uma nobreza quase arrogante.)
Chego no hotel. O cheiro de inseticida impregna tudo. Pergunto o que é. Tão acostumados ao cheiro, não sabem do que, afinal, reclamo. Outro problema: ligação interurbana internacional e a cobrar (preciso ligar para casa) nem pensar. Foi a Cordilheira que lhes deixou as telecomunicações comprometidas ou eles investem mal no setor? Ao contrário do Brasil, onde basta entrarmos em qualquer orelhão (no remoto universo andino a gente encontra um a cada 300 metros, e olhe lá) e ligar para Nova Yorque, Paris, Roma, Freiburg, no Chile no máximo você liga interurbano somente dentro do país. Passo alguns dias lá e vou embora sem saber se existe alguma forma de fazer a tal ligação. A cobrar (chamam de “cobro revertido”: fiquei com a expressão cravada como um trauma), a cobrar, meu caro, nem pensar. Pague (e o peso deles está bem pesado em comparação ao dólar: 2 U$ valem um peso chileno) e aí sim vencerá a Cordilheira e falará com a sua casa.
Da sacada do hotel olho o horizonte em torno. Poucas casas, muitos prédios, cada um com uma solução arquitetônica diferente. A rua tapada de árvores que parecem transplantadas de outra região e ali postas para impedir que eu enxergue qualquer coisa. Só mulheres, vizinhas, esfregando febrilmente os vidros das janelas. E o cheiro de um spray que me recorda as matas brasileiras onde a gente leva preparados para defender-se de mosquitos, borrachudos. E em Santiago não há mosquitos. Meu nariz, definitivamente, não se adaptou.

Santiago está distante 1.500km de Buenos Aires e 3.400km de São Paulo. Apresenta temperaturas máximas de 23º e mínimas de 0º. A luz acobreada do sol revela toda a condensação atmosférica, a poluição concentrada (contra a qual é preciso lutar com sprays que empestam qualquer ambiente e mesmo em lugares abertos, a levar o estrangeiro a espirrar como se sofresse de rinite). No 14o andar de um hotel de luxo, vejo incontáveis edifícios à minha volta. Sempre que observo com atenção um prédio das vizinhanças, há alguém limpando uma vidraça. É como se o vento, que sopra o tempo inteiro, deixasse sua marca nas janelas, não bastasse nas almas quase sisudas, graves, no mínimo formais dos santiaguinos.
As avenidas e ruas são largas, limpas, e desertas. O trânsito com poucos automóveis, ordenado. Raro ocorre uma batida, um atropelamento. Acidentes são mais comuns nas minas de cobre. O índice de desemprego é baixíssimo (3%). A economia é estável há mais de uma década. Pensemos em Brasília. Penaliza-me imaginar uma criança morando aqui. De dentro de um táxi vejo os parques vazios, dois ou três casais caminhando sem pressa. Meia dúzia de jovens conversando. Um cão ali, outra lá. Onde estão, afinal, os seis milhões de habitantes que constituem a população? Estarão quase todos empregados, trabalhando? Não há economia informal, a levá-los às ruas? E as crianças, e os velhos? A maioria dos lares é tão sólida que os habitam famílias capazes de dar o essencial para que seus moradores não necessitem passear?
Ou estarão todos na centenária estação de trens Mapocho – deixou de funcionar em 1987 e foi transformada no Centro Cultural Estación Mapocho –, onde de 23 de outubro a 4 de novembro ocorreu a 27ª Feira Internacional Do Livro de Santiago? (Mapocho é o riacho, mais estreito e menos poluído que o Tietê, que corta toda a cidade.)
A Câmara Chilena do Livro se esmera no evento, elegendo o Brasil como país homenageado (daí o slogan, um tanto previsível, de “O carnaval da cultura”), trazendo 15 escritores, dos mais consagrados e já com laços estreitos com a terra de Pablo Neruda, como Thiago de Mello, Augusto Boal, passando por autores conhecidíssimos como Moacyr Scliar e chegando à novíssima geração: Luiz Ruffatto e seu caleidoscópico registro social de meio século de imigrantes, Bernardo Carvalho e seu jogo infernalmente disfarçado de identidades e protagonismos, Cíntia Moscovich e sua ficção impiedosamente expiando as fendas doídas entre os afetos. Todos os gêneros são contemplados: da narrativa transgressora (André Sant’Anna, tímido no trato mas ousado na criação, com sua escolha por uma prosa coloquial num registro extremo onde o discurso parece engolir a si mesmo) aos infanto-juvenis (Marcelo Carneiro da Cunha, bem-falante, irônico sem ser ferino, um dos raros praticantes do diálogo entre nós, debatendo sua novela Ímpar, que tinha tudo para ser piegas, tratando de adolescentes com alguma deficiência, e que encara até com humor essa diferença).
No dia seguinte à chegada componho uma mesa-redonda junto com duas chilenas. Uma é a escritora e editora Carmen Lucía Benavides, especialista do Centro Lector Lo Barnechea, de uma simpatia equilibrada, sem exagerar no sorriso que lhe sai natural e sem jamais buscar controlar o que nela brota simples e acena fácil, ainda que na direção de pessoas com dificuldades capazes de as tornarem – ao menos aparentemente – hostis. A outra é Karen Plath, estudiosa do gênero de que trataremos. Nosso tema: o desafio de criar ficção para crianças.
Karen é filha de um ilustre da terra – Oreste Plath (1907-1996), folclorista, espécie de Luís da Câmara Cascudo chileno – e parece carregar isso com uma pompa que a mim me soa não só dispensável como prejudicial a ela. Esquecesse um pouco o orgulho que sente pelo pai e se tornaria mais visível.
Não resisto a dar uma sacudida num debate que corre o risco, como muitos “debates” promovidos para irmanar povos e idiomas, de acabar morno. Proponho a incorporação da filosofia à literatura destinada aos jovens leitores. Falo de minha coleção Brincando de Pensar, onde antecipo Platão e Aristóteles, por exemplo, para uma faixa etária entre os 9 e 12 anos. E provoco, lembrando a tese de Ernani Ssó: Os Irmãos Karamazov, de Dostoiévski, e João e Maria, que dupla marcante de livros onde irmãos protagonistas dão o que falar. É preciso deitar por terra a preguiça mental que subestima a grandeza simbolizada e o poder de sugestão da história, no caso, dos Irmãos Grimm.
O auditório onde falo, com 70 lugares, está praticamente cheio. Arrisco ir de espanhol mesmo, e o tradutor-intérprete intervém apenas três vezes em uma hora e meia. Estamos, idiomaticamente, mais próximos do que imaginamos. Ou, de forma isolada, o meu caso pessoal – o de ter possuído três avós uruguaios.

Feira, feirantes, autores

Passo as roletas mostrando meu crachá de convidado. A entrada, única, é um hall de 500m2 de largura e, dez metros à frente, uma escada de mármore desce para o que parece ser o único piso, três metros abaixo. Nas laterais, como sacadas interligadas, algumas entradas para bares, salas de reunião, auditórios, escadas que conduzem a antigos escritórios agora desativados. Aí, nesse solo de pedras esmaltadas sobre as quais o toc-toc dos calçados não se escuta, onde antes devia ser a plataforma de espera, a Feira – fria, sem o afeto impetuoso e às vezes desastrado dos brasileiros, nela tudo funciona direitinho. Na abertura há show de Elza Soares. Muito samba. O Brasil sendo homenageado, não foi à toa que Bernardo Carvalho confessou que quando está no estrangeiro o país é um rótulo que ele tenta arrancar para que entendam um mínimo da literatura que faz.
Muita venda. Os chilenos, que se vestem a rigor entretanto com gosto duvidoso (as roupas bem cortadas e passadas até com vinco mostram um excesso de cores em tom pastel e camisas xadrez), compram. Não vibram no fervor esperável do consumismo, mas compram. Devem ler, não sei, mas vi encherem sacolas e numa atitude decidida de quem sabe o que está levando para casa. Vi cerca de uma centena de estandes com sessões de autógrafos que se multiplicavam sem abrir mão, jamais!, da seriedade. E, óbvio, as indispensáveis atrações paralelas – aproximadamente 300.
Do que pude acompanhar, uma platéia comportada em demasia. Ou eu é que me acostumei aos brasileiros – que cochicham, cochilam, olham pros lados enquanto os conferencistas suam sangue para dar seu espetáculo nunca suficiente para paralisá-los nas poltronas.
Em Santiago, por pouco que se faça numa palestra, a platéia colabora. Faz perguntas pertinentes, pensadas, amplia o debate. E sorri, não para fazer graça, mas agradecer à resposta que o autor lhes dá.
Minhas parceiras vestem-se com floreadas saias e blusas de seda. Os cabelos não ousam mais que um penteado alto impondo o respeito devido a cortes que não arriscam nenhuma transgressão visual. Falam de forma controlada, macia, afável sem ser melosa mas nem inflexível. São mulheres comentando literatura para “niños”. Hay que tener ternura en la voz. Com um detalhe a dar elegância e evitar derramamentos nessa ternura: no estilo chileno, contido.
Não que sua literatura o seja. Repassemos seus clássicos mais e menos recentes, muitos deles traduzidos no Brasil. O primeiro nome que nos vem (favor não citar o inevitável e, por isso, óbvio Neruda), é Gabriela Mistral (1889-1957), primeira mulher latino-americana a ganhar um Nobel, em 1945. O primeiro desses pioneiros na transgressão foi Vicente Huidobro (1893-1947), com seu Criacionismo, depois aliando-se, em Paris, aos modernistas e, logo, na Espanha, aos futuristas de Marinetti. Grande parte da poesia de Huidobro foi originalmente escrita em francês. Há no Chile quem reclame o Nobel a ele ou ao poeta Nicanor Parra (1914-), que, vivo, tornou-se nonagenário e não perdeu a indignação. Os grandes criadores, com exceção de Donoso, de quem adianto falo, eram vocacionados à poesia. A partir da geração de 50, a prosa, imantada de luminescência pelos poetas, emerge. Em seguida há o apagão cultural. A literatura, claustrofóbica, vê durante cerca de uma década, do golpe com Pinochet em 1973 a 1983, minguarem ou se exilarem os talentos.
Logo surge Antonio Skármeta, um escritor de alguns méritos, sobretudo em O Carteiro e o Poeta, e Isabel Allende, único sucesso indiscutível de público mas diante da qual a crítica, em sua maioria, se cala. Exceção para a estréia da moça com A Casa dos Espíritos. E a razão talvez seja mais política que literária. Em seguida Isabel (que nasceu em Lima, criou-se no Chile e hoje mora nos EUA) deriva para duas tendências tão caras ao gosto popular: entretenimento ou temas indisfarçavelmente pessoais.
Skármeta tem sete livros traduzidos no Brasil e é, bem depois de Neruda e Isabel, o autor chileno mais lido entre nós.
O nome do momento no Brasil é Roberto Bolaño (Santiago, 1953-Barcelona, 2003), que morreu cedo, passou como um cometa, e, por isso, escreveu tão vertiginosamente no estilo e na quantidade sabendo, sim, que tinha os dias contados. Sofria de uma grave doença hepática. Esperou, em vão, por um transplante de fígado de 2000 a 2003. Antes desse duro desfecho, outras durezas o acompanharam. Nasceu filho de motorista e professora. Recém entrado na casa dos vinte anos, foi com a família para o México, onde encontrou sua vocação. Voltou ao Chile, ficou oito dias preso, foi libertado por detetives ex-colegas de escola, voltou ao México, depois andou por El Salvador, alguns países da Europa, onde trabalhou de cobrador de ônibus, lavador de pratos, camareiro, vigia noturno, na limpeza pública urbana, descarregando barcos, colhendo uvas em fazendas. Por fim, estabeleceu-se na Espanha. E embora ainda trabalhasse em serviços que não lhe davam o conforto material necessário, começou a inscrever-se em diversos e importantes concursos literários. E a ganhar muitos.
Em 1984, Bolaño publicou, em colaboração com Antoni García Porta, sua primeira novela (até então só havia escrito poemas), Consejos de un discípulo de Morrison a un fanático de Joyce, com que obteve o prêmio Ámbito Literario. Nesse mesmo ano lançou La senda de los elefantes, que abocanhou o prêmio Félix Urabayen. Em 1993, com 40 anos, os médicos diagnosticaram a doença que iria matá-lo. Bolaño fica obcecado: quer deixar um legado, uma obra que faça a diferença dentro de um contexto onde o passado grita e o presente tenta, timidamente, protestar. Nesse ano saem Los perros románticos, uma reunião de sua poesia, produzida entre 1977 e 1990, e a novela La pista de hielo (A Pista de Gelo, Cia. das Letras, que o publicou quase todo até agora no Brasil, saído em 2007). Em 1997 lança seus contos completos, Llamadas telefónicas, que mereceram o prêmio Municipal de Santiago de Chile, o mais importante no país.
1998 trata-se do ano da explosão internacional de Bolaño. Começa a publicar numa grande editora, Anagrama. Lança Os Detetives Selvagens (no Brasil sai em 2006, sempre pelo mesmo tradutor, Eduardo Brandão). Sua prosa caudalosa mas conduzida por uma corrente de força devastadora, seus protagonistas espocando diante do leitor uma polifonia alucinante, seu tema que consegue – sem deixar de ser o de sua geração – superá-la na ótica e, sobretudo, na estrutura sinfônica, de um cuidado estilístico, perdoem, doente (neste caso, saudável para a literatura). Sua narrativa vertiginosa, com um fôlego de assombrar, e, no entanto, táctil sem perder a sugestão, a poesia, e nem por isso resultar em obscuridades ou gorduras verbais, leva-o, com Os Detetives..., a receber duas importantes distinções: o prêmio Herralde de novela e o – pelos brasileiros, conhecidíssimo, por que tem em sua lista gente como Vargas Llosa, para começar – prêmio Internacional de Novela Rómulo Gallegos: “por la calidad de la obra y su novedosa apuesta narrativa”. O humor concentrado, ferino, irônico, não muito comum na literatura de língua espanhola (exceção de Borges, concentradíssimo), é um dos elementos a fazer de Os Detetives Selvagens um livro cuja edição original eu comprei em Santiago. Seu livro mais recente, Noturno do Chile (2004 no Brasil), foi escrito quanto ele havia visitado o país depois de duas décadas de ausência. Segundo o crítico Jorge Herralde, trata-se de uma “pequeña obra de arte escalofriante”. Deixou coisas póstumas. Em breve saberemos.
Em tom menor, mas disposto a derrubar o que surgisse pela frente, Alberto Fuguet (Baixo Astral, ed. Record, 2001), da novíssima geração, dispara contra a hipocrisia e o medo da sociedade chilena que em plebiscito manteve o poder de Pinochet. Em 2005 sai no Brasil seu segundo livro, Os Filmes de Minha Vida (Agir). Um sismólogo (a piada é quase óbvia, mas não perde a graça) estremece a cada terremoto pessoal – afetivo, financeiro, político etc. – enquanto repassa os filmes que marcaram sua vida, como uma espécie de caminho prometido e impossível. E as relações que ligam tais filmes a passagens da vida da personagem principal. Fuguet não tem a profundidade nem o virtuosismo de Bolaño, mas é, depois deste, um dos mais interessantes autores do Chile atual.

Mas e a Feira?

Se Bolaño ocupou tanto espaço neste texto, e, menos que ele, outros nomes, é porque afinal o “onde” se impõe e com ele o “quem”. E é preciso saber um tanto do Chile e do que andaram e andam produzindo por lá para entender o impacto que isso pode produzir e que tipo de dimensão tal literatura consegue levar à sua feira. Falando dos escritores chilenos, todos eles, mesmo os mortos, presentes nas prateleiras e no olhar e na boca (quando audível) dos chilenos e visitantes, configuram uma arte multifacetada, eternamente em crise e em desafio. E, por isso, capaz de dar respostas desconcertantes (como Bolaño, claro). A Feira não difere radicalmente de nada que eu já tenha visto, exceto das mal organizadas. O principal estava lá: todas as boas editoras, seus principais títulos, atendimento profissional (com um certo pudor, indisfarçável). Quinze países se fizeram presentes, com destaque para a Espanha e a Argentina, naturalmente.
Não é cansativa como as nossas bienais. Tem um tamanho que eu não saberia precisar, mas é adequado. Um único andar, o térreo, onde os mais de cem estandes se estendem, através dos quais em meia hora de caminhada a nossa vista e o nosso interesse alcançam. Mais, como costuma acontecer em feiras internacionais, seria cansativo e um desperdício. Menos, como em feiras locais, seria talvez frustrante.
Agradou-me um detalhe a permear tudo: uma espécie de neutralidade em que nem o Brasil era edulcorado nem o Chile infestava o espaço com algum tipo de nacionalismo tardio, nem mesmo a inevitável latino-americanização do conjunto dos catálogos. O mundo todo estava lá, afinal de contas. São grandes selos editando grandes nomes, de todos os continentes.
Numa das palestras (e em conversas paralelas, entre colegas escritores, jornalistas chilenos e educadores santiaguinos) fiquei sabendo que o grande feito deles é a Biblioteca Nacional, um novo conceito de biblioteca, autêntico ambiente a dessacralizar o livro e a oferecer a todo tipo de público quase todo tipo de ambiente num prédio adaptado para a biblioteca. Lá, o silêncio é quase proibido. Tem sala de jogos pela Internet. Tem sala para bandas de rock se apresentarem. Tem gibiteca. Tem uma multiplicidade de ambientes (cada um de alguma forma dialogando com o outro), de tal jeito que não nos sentimos nas seculares “igrejas das bibliotecas” mas num novo lugar, para o qual, por enquanto, o único nome conhecido é “biblioteca”. Mas nem parece, tão interessante e democrático e efervescente e LOTADO que é. É isso mesmo: lotado. Movimentado. Nem parece uma biblioteca. Ou todas as demais no mundo é que não parecem?
Mas e a Feira? Autores lançando livros: mais de cem. Vendas: os números são polêmicos, como costumam ser nesse tipo de evento. Mas não é exagero dizer que chegam a 200.000.

A volta

Não sou assaltado no retorno. Um motorista da Câmara Chilena do Livro vai ao hotel e me leva ao aeroporto. Não guardo boa impressão de Santiago. É um lugar ideal para adultos dispostos a não passar fome, não terem contas atrasadas, morarem com segurança... e só. Simplificação, claro, mas não distorção. Chego no aeroporto e penso nos editores com quem deixei meus cinco livros com mais potencial para o continente. Situação delicada essas negociações. E recordo as editoras entusiasmadas com a produção brasileira em geral, críticas com a sensatez necessária ao que se faz no Chile e orgulhosas dentro da dignidade de gabar-se sem ser ridículo.
Compreensivelmente, houve homenagens (merecidíssimas), à irada lira de Gabriela Mistral. Atenho-me à Feira e ela, compreensivelmente, expõe com energia as novidades mas dá destaque, quase estande por estande, aos protagonistas da história literária do país. Um deles, José Donoso (1924-1996), de quem publicaram no Brasil seu romance mais ambicioso e bem-realizado, O Obsceno Pássaro da Noite (Francisco Alves Editora, esgotado), tomado de um clima de loucura no qual o gótico lembra as moderníssimas graphics novels quadrinizadas (de um Neil Gaiman, por exemplo) e não o Realismo Mágico que dominava a Americana Latina quando o livro foi lançado, na virada nos anos 1970 para os 80.
A novidade mais impactante ficou por conta de um boliviano, Edmundo Paz Soldán, que autografou Palacio Quemado (Editorial Alfaguara) no dia do encerramento. Tinham mesmo que encerrar o evento de forma exemplar. Esses chilenos são muito sérios, e não arriscam. Não num evento desses
Não vejo a Cordilheira na volta, não testemunho o cenário de um outro mundo. Mal embarco, adormeço. Outra feira que ficou para trás. Acordo quando o avião dá o aviso: “tripulação: preparar para aterrissagem. O Aeroporto Salgado Filho...” Olho o relógio. A companhia aérea é a mesma porém estamos quase uma hora atrasados. Estou de volta ao Brasil. (14/02/2009)

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

DEPOIS DA LOIRINHA

Cabelos castanho-escuros, lisos e macios como a pele mais embaixo. Os olhos amendoados acompanhando o sorriso confiante sem afetação e simpático sem pedir a esmola do nosso olhar. (Nós é que pedimos esmola.) A pele – até Olavo Bilac ergueu-se do túmulo – de níveo palor. Os lábios carnudos até um certo limite, além do qual seriam obscenos. Rosto de mulher sem perder o intenso frescor da idade que não mente, nem para menos, nem para mais. Scarlett Johansson, 24 anos, aparece em quatro imagens divulgadas hoje pelos promotores da pre-estreia mundial da comédia He's Just Not That Into You, no Grauman's Chinese Theatre, em Hollywood, Califórnia. Olhei-a quatro vezes quatro. Depois virei pedra. Antes, tive tempo de me perguntar, como um personagem do meu conto “Depois da loirinha”, do livro A solidão do Diabo, de 2006: “O que faço agora da minha vida?” Infelizmente, já tinha virado estátua, cujo futuro é virar ruína. Este post é dedicado a um amigo que sofre da mesma gravíssima doença, Jorge Ritter. (03/02/2009)

domingo, 1 de fevereiro de 2009

AS LÁGRIMAS DE FEDERER

Sou fã de Roger Federer, ex-número 1 do tênis mundial durante quatro anos (2004-2008), quando perdeu o posto para o espanhol Rafael Nadal, uma máquina de bater. Federer joga um tênis mais refinado. Nadal, não à toa apelidado de "Touro Miúra", tem um bíceps de dar invehja a muito peso pesado e, além disso, é quatro anos mais moço que Federer, o que num esporte que tira o fôlego e o sangue (perde-se em média uns 4 quilos por partida), pode ser decisivo. Depende de o cara também ter técnica. E Nadal tem. Sua bola é funda, bate na linha, ou quase na linha, e é pesada, tal a força. Não gosto de seu estilo. Nem Federer gosta. Em 19 partidas que disputaram, Nadal ganhou 13 com a decisão de hoje no Aberto da Austrália, primeiro Grande Slam do ano, contra 6 vitórias do meu ídolo. 68% contra 32%: muita diferença para um nível de tênis que não deveria ser assim, tratando-se dos dois melhores ranqueados da ATP. E já é a quinta vitória consecutiva do espanhol sobre seu maior adversário. Não há hoje maior rivalidade no tênis mundial do que esta: o atual número 1 contra o número 2, ex-número 1. O resultado foi digno do "equilíbrio", 3 x 2, com parciais de 7-5; 3-6; 7-6; 3-6; e 6-2. Federer dominou a maior parte do jogo exceto no set decisivo quando, provavelmente, o elemento psicológico – este grande fator no tênis, ignorado por muitos – resolveu o embate a favor de Nadal. Na cerimônia, o suíço não conseguiu concluir seu discurso, chorando copiosamente. Para alguém que estás prestes a se tornar (pela quantidade de Grandes Slams conquistados) um dos maiores jogadores da história, senão o maior, reagir assim parecerá um despropósito. Não foi. Tanto não foi que Nadal, que finalmente ganhou minha simpatia, perdeu a graça e nem conseguiu sorrir para as câmeras na hora de receber a taça. Estava constrangido, talvez até se sentisse mal em derrotar (e configurando uma série alarmante de vitórias contra um rival que, tênis por tênis, não deve nada a ele e, se deve, pauta a ser muito discutida, deve pouco) um jogador que certamente já causou admiração em Nadal e quem sabe até mesmo a boa inveja. Suíço não chora? Bem, nunca vi Federer reagir assim, como um novato ou um sujeito com a suto-estima abaixo do fufu do cachorro. Fácil: antes ele não tinha motivos para tanto. Até surgir Nadal, essa força atormentadora contra o gênio Federer (continua a ser um gênio, sim – exigiu de Nadal, o demolidor, 4h22min de batalha), o ganhador de 13 Grandes Slams, de 27 anos, era um êxito atrás do outro. Mas em 2008 tudo começou a mudar. Para pior. No entanto, ele tinha conquistado quase tudo, de tal forma que sua vantagem sobre os demais parecia impossível de ser ameaçada. No final do ano passado foi mais que ameaça: depois de repetidas derrotas para Nadal, perdeu o posto de número 1 e começou 2009 sob desconfiança dos críticos. Mas começou bem. Fez uma ótima campanha na Austrália. Parecia recuperado. E talvez esteja. Mas não contra Nadal. É bem provável que o efeito psicológico, mais que o estilo (embora haja estilos de jogos que não encaixam bem com certos estilos opostos, e este deve ser o caso Federer-Nadal, com vantagem para o segundo), deve estar fazendo um estrago violento. Não aconselho Federer a treinar mais, mas sim a frequentar um analista, urgente. Suas lágrimas não foram as de um mero lamento pela derrota (está maduro demais para isso), mas as da impotência frente a alguém que parece incólume, indestrutível, a prova viva – e jovem! – de que o grande tênis de Federer possui um limite. E intransponível. Como torcedor, emocionei-me também. E espero que o paredão um dia desses seja vencido pela autoconfiança recuperada, já que talento Roger Federer tem de sobra. O diabo é que talento só não é tudo. Não é mesmo. (01/02/2009)