domingo, 29 de março de 2009

RECRIAR-SE

O ser é tão-somente tema da filosofia. Poucos são, raros mesmo. E, no entanto, quem é não basta sê-lo. É fundamental – para sobreviver e, assim, ser – a representação do ser. E é aí que o Carnaval começa. Carnaval com quarta-feira de cinzas. Festa terminada em tragédia.

Sendo, seria o auge se o mundo fosse apenas espaço para a manifestação e expansão desse ser: eu (você). Mas o mundo é um espaço caro, um outdoor valendo os olhos da cara (e quem enxerga, isto é, tem o mergulho quase suicida de reconhecer as estremeções da vida, a tensa comoção diária da vida, as traições repetidas à vida que produzem a única “vida” admitida por quase todos, quem enxerga a esse ponto não chega a outdoor nenhum). Sem outdoor – e, claro, isto é só uma metáfora, mas uma metáfora próxima demais da realidade –, vamos sumindo, sumindo, até desaparecer por completo.

Cuidado. A máxima do futebol nunca foi tão válida. “Futebol é momento.” Pois arte – minha frágil moeda de troca – é momento. E passado o momento, a obra-de-arte realizada, o projeto conquistado, a ação cultural efetiva e efetivada, tudo isso tendo chegado a seu termo, sua conclusão, pipocam os reflexos, a visibilidade temporária semeia e acena com frutos logo ali. É regra que eles demorem. Não espere. Se esperar, terá perdido o momento. E a não ser que você tire da manga outra obra-de-arte, outro projeto, sua imagem se dispersará, “polvo de estrellas”.

Então só vejo saída – todas elas, a emergencial e a saudável saída para um passeio no mundo que pode vê-lo – se apenas você o ver primeiro: o mundo adora fingir-se de distraído, de não vê-lo até mesmo sem fingir, viciado em cobrar – repito – os olhos da cara para que você realize uma trajetória “livremente” em seu ágora claustrofóbico pela pressão do preço que lhe cobra. O mundo é um estúdio de televisão, é uma equipe de produção, é um marchand, um empresário, um agente literário, um produtor cultural. Sempre às voltas com a inacreditável demora em lhe dar uma resposta.

Você é quem tem de ter as respostas. Até as resposta de que precisa, além das que precisam. E o mundo carimba ou não, endossa ou não. E se carimba e se endossa e se diz “sim”, não vibre demais. É só um momento, quem sabe isolado e que nada garante para o próximo lance. Se você demorar, ele nem vai lembrar do que veio antes, não saberá dizer um único item da sua biografia. Você, enquanto está vivo, nunca tem biografia. Precisa morrer para darem por concluído o retrato.

E seu retrato (morto já, sem expectativa alguma mais), e nem ele, seu retrato, pode ficar esperando. Alguém da família, um amigo, um fã, um editor (se você foi escritor), precisam carregá-lo para cima e para baixo. O mundo cobra um aluguel exorbitante até dos mortos.
Vivo, então, nem adianta reclamar. É inútil e até injusto que tantos mortos ainda peçam passagem para viverem a vida atrasada que ficou por ser reconhecida, no que realizaram enquanto o mundo gastava os dias com simplesmente ser, sem precisar provar coisa alguma. Ele tem o espaço e o tempo, ele é o dono do que é mais caro. Ou você paga o preço, tornando o que você é num veículo que sirva como moeda de troca constante, ou você pode ser acusado de um estranho assassinato: o do artista que você passou a vida anunciando e que, segundo as leis do mundo – que é impossível chamar de critérios – nunca deu as caras.

Não deu mesmo. Deu obras. Mas quem é que está interessado nelas sem uma lendazinha pessoal a tiracolo?

Você é tímido? Transforme isso em mercadoria, urgente. Ou então esqueça. Recrie-se, refunda-se, refaça-se. Ou simplesmente adormeça e, quando acordar, aceite a suprema resignação de, depois de ter feito tanto, tornar-se espectador dos que além de produzir, produzem-se. (29/03/2009)

10 comentários:

Anônimo disse...

Ben-tan-cur!

Puxa, cara, nos dedos, hem... Você anda jogando um futebol (uma literatura) de pegada. Forte mesmo. Nunca perca essa consciência e essa indignação civilizada.


Luiz Carlos Marcondes, Juiz de Fora, MG.

Anônimo disse...

Ei, Paulo, você anda batendo demais... Demais nos dois sentidos: demasiadamente e muito bem. Destaco este trecho: "Não deu mesmo. Deu obras. Mas quem é que está interessado nelas sem uma lendazinha pessoal a tiracolo?" Não tenho nada a crescentar a não ser lamentar esse cenário sobre o qual teus textos se justificam. Infelizmente.

Grande abraço da leitora,

Maria Elza Latorre – Rio Pardo (RS)

Pedro Stiehl disse...

Tchê, que bela amargura.
Um coice de realidade.
Sem deixar de ser lírico.
O parágrafo sobre o tempo então...
Aos céticos o paraíso.
Um grande abraço

Pedro Stiehl

Lua em Libra disse...

Paulo,

O mundo como um imenso e caro out-door de representação de liberdades foi um achado. Que imagem! Ainda bem que as mídias alternativas já são uma realidade - vide este espaço virtual - e antes, bem antes delas, o pensamento como exercício de ser-sem-pagar-royalties. Abraço da aluna e leitora.

Paulo Bentancur disse...

Querida, gentil e lúcida Cecilia:

tua síntese demonstra a gudeza de espírito, o pensar bem e o escrever bem. Tens inteira razão. Mas, claro, quando falamos de um tema – sendo impossível esgotá-lo, sequer abarcá-lo em todas as suas nuances –, buscamos dar ênfase num aspecto apenas, o que mais nos interessa. Para mim, é a viabilização do ser (com voz e sabendo expressá-la) num mercado que se pressupõe capaz de – uma vez identificada qualidade estética – pô-lo na roda. Não é o que acontece. Muita gente (vide meus posts "Cavalos Afogados no Mampituba" ou "A Bilbioteca Invisível") chegou lá, mas só diante de seu computador e, no entanto, na hora de tentar sair dele com o produto de seu talento e, sobretudo, esforço, não chegou lá. Não porque lhe faltassem méritos. Mas porque as regras são quase lotéricas ou, se há alguma lógica nessa conquista de visibilidade, é a que enfoquei: uma capacidade assombrosa de, mesmo sensível, vendo-se obrigado a agir como um cara-de-pau, virar um, batendo em 15 portas para que duas ou três dêem uma espiada. Ou batendo em 30, e com uma desfaçatez de causar constrangimento. Aí, o que é legítimo (a qualidade) recebe o reconhecimento por vias não-legítimas, isto é, apelativas. Não basta ser Shakespeare, é preciso ser big brother também. Um Shakespeare invasivo consigo mesmo e se expondo cruamente, como diria Drummond.

Uma honra e uma alegria ser lido e comentado por uma escritora do teu naipe, que não apela.

Grande abraço.

Anônimo disse...

Paulo,
recriar-se, eis a questão de todo dia. dura, duríssima, para quem cria e para quem não cria, para ser.
e para ser representado então, se necessário for, só mesmo se mostrando, mostrando que existe. é o nosso mundo hoje.
grande abraço,

Sandra Ling

Anônimo disse...

Deus e o mundo sabem o quanto você tem razão, Bentancur. Eu já deveria estar acostumado com isso, porque já beiro os setenta, trinta e tantos de literatura, muito raramente lembrado, sempre esquecido. Ainda ontem o amigo Henrique Morais, da Ilha do Governador, me disse que fora chefe do Victor Giudice no Banco do Brasil e lhe mandei um recorte do "JB", de 1975, em que seu grande camarada diz que meu romance "Israel Rêmora", então recém-lançado, era "obra de surpreendente renovação na literatura brasileira". Não sei de Giudice, mas meu livro foi pras cucuias. No mesmo dia, recebo e-mail do Ivo Barroso dizendo que estava fascinado pela descoberta da história de João Pessoa, cujo assassinato no Recife deflagrou a Revolução de 30, e que estranhava o fato de que, vivendo na Paraíba, eu ainda não tivesse explorado ficcionalmente o tema. "Oh, Ivo - respondi-lhe - e não publiquei 'Zé Américo Foi Princeso no Trono da Monarquia' pela Codecri, em 1984? Não publiquei 'Shake-up' pela UFPB, em 97? Os dois giram em torno disso!" O problema é que, grande elogios à parte, foram também esquecidos. Agora me preparo para lançar pela Girafa meu "Relato de Prócula". Que é que posso esperar? Oh!, Oh!. E aquela palavra: olvido. C'est la vie. O jeito é ir fazendo. Você sabe disso melhor do que eu. Ah, e como sabe. Quero deixar público, aqui, que se não fosse você, eu teria abandonado esse meu novo trabalho sem finalização. Foi tão grande sua participação em sugestões, reparos, questionamentos, que meu narrador passou a ser gaúcho e a ter sobrenome Bentancur. Grande abraço, companheiro.

W. J. Solha (João Pessoa, PB)

Paulo Bentancur disse...

Meu caro Solha,

que que eu vou dizer? Teu comentário foi postado há 24 horas e ainda não me ocorreu alguma resposta à altura. Existe? Sou todo silêncio e gratidão. E nem precisa dizer (precisa sim, seu Paulo, olha os outros leitores!) que o comentário saiu de um dos mais fundamentais escritores contemporâneos do Brasil. No mínimo. Estou mudo.

Anônimo disse...

Caro escritor,

Felizmente, o mundo não é só literatura. Nem só injustiça. Além do mais, se o mundo é tão nojento, nós o fazemos assim.
Parece que há mais fome de publicar do que de escrever, visto que a maioria dos textos contemporâneos, editados ou não, são medíocres.

um abraço do Zé N.

Paulo Bentancur disse...

Prezado Zé N.:

imagino que você se utilize de um pseudônimo até mesmo para se preservar. Não é uma medida ruim. Vou pensar... Risos. Falando sério, você tem inteira razão quando diz que "ainda bem que a vida não é só literatura". Mas, veja bem, há pessoas como kafka, para quem "tudo que não é literatura me aborrece". Essas estão lascadas. Eu sou uma delas. E, ironicamente, como não estou sozinho, tendo filhos etc. (e nem posso me queixar disso), a vida bate na porta e eu fiz da literatura a minha profissão (como algumas pessoas, sim, nem tão raras). E num país que não lê, com editores que deixam o autor nacional para terceiro plano, a escolha acaba desastrosa. Só que é tarde demais para retroceder. Então o mais sensato é brigar, não pelo espaço (que quase não há), mas pela criação de um espaço no qual os escritores possamos respirar. Mas sem a obrigação de fazer papel duplo, escritor/showman. Só escritor é mais que o bastante para quem escreve. Porém, para o mercado, é quase nada... Não se trata de achar "nojento", adjetivo que, com todo o respeito, eu não usaria. Mas de achar mesmo quase um obstáculo intransponível. E aí, fazer o quê, quando é tarde demais para recomeçar? Por outro lado, "literatura contemporânea medíocre"? De novo lhe dou inteira razão. E o motivo disso são as escolhas dos editores, que deixam a literatura de arte, de qualidade, em terceiro plano, e privilegiam os livros de carregação, de apelo imediato e, portanto, transitórios. Pagam as suas contas e nada ou pouco têm a ver com literatura. A não medíocre fica condenada ao ineditismo ou sai em edições alternativas ou por selos sem muita imposição, o que é quase continuar inédito. Equação dura, cruel. Mas não exatamente "nojenta". De qualquer forma, se escrevo tudo isso, é porque seu post é forte, lúcido, honesto, corajoso, e acirra os debates. Obrigado.