terça-feira, 14 de outubro de 2008

CONSELHOS PARA UM JOVEM LEITOR

A leitura é uma ação delicada, difícil – só na aparência simples. Pega-se um livro que se elegeu, com certa incerteza (como ter certeza acerca do que vamos encontrar no miolo do volume?), e abre-se, como abrimos uma porta para entrar numa casa, num auditório, em algum espaço no qual coisas acontecerão. Não sabemos o que vai acontecer. E isso nos deixa curiosos, às vezes ansiosos, às vezes pressionados pela atenção que é preciso colocar durante o ato da leitura, essa visita a esse espaço onde muita ação e muitas personagens surgirão diante de nossos olhos.

A ação pode ser pouca lenta, complicada (mais psicológica que movimento externo) – e nos aborrecer.
Pode ser vertiginosa, cheia de detalhes, e nos deixar sem fôlego, emocionados pelos acontecimentos.
Pode ser uma ação delicada, uma única trama sem grandes lances acrobáticos ou perigosos, mas no entanto repletos de riqueza humana no que os protagonistas realizam. E isso pode nos tocar fundo. Fixar raiz em nossa memória.

Quando se fala em ação, pensa-se logo em diversão, distração. Isso faz parte, sem dúvida, porém (e que ótimo “porém” esse) uma obra literária sonha geralmente com algo maior: comover o leitor, deixar-lhe sinais de que a vida é mais rica ainda do que aparenta. E é fundamental estarmos alertas para captar esses sinais.

As personagens. Pode-se dizer “os” personagens ou “as” personagens. É substantivo comum de dois gêneros. Alguns estranharão: por que “a” personagem? Porque uma de suas fontes vem da palavra latina “persona”, que quer dizer máscara. E ser uma personagem é vestir uma máscara, cumprir à risca um papel. O autor não perdoa. Mas a personagem também não. Muitas vezes, enquanto estou escrevendo, a personagem resolve fazer coisas que eu nem imaginaria ela fazendo. A personagem tem, sim, a sua independência. Controlada por mim, mas ainda independência. Sob esse aspecto, a personagem nunca é um “túmulo”, expressão que utilizamos para definir pessoas tímidas, discretas, que não dizem nada sobre si e sobre os outros ou dizem quase nada. Num livro, as personagens são expostas cruamente, impiedosamente pelo escritor. E o leitor tem a afortunada oportunidade de (como um espião) descobrir tudo, os segredos mais invioláveis, na vida jamais mostrados, na literatura sempre, de um jeito ou de outro, exibidos. Sem, claro, que a personagem saiba.
Você, leitor, fica a par de tudo. E a personagem não irá persegui-lo, fique tranqüilo. Ela ignora o quanto você sabe.
Basta ler como se espiasse por uma fresta que o levasse a um mundo paralelo.

Sim, a literatura é um mundo paralelo. E um mundo – uau! – com a ambição saudável de examinar quase microscopicamente tudo o que neste mundo, o real, de onde escrevo, não se examina, exceto os cientistas (descobertas que só ficam entre eles no momento em que ocorrem, e que só são divulgadas tempos depois, já de uma forma um tanto simplificada). A literatura não, a literatura é um mundo secreto mas o mais democrático dos mundos secretos. O mais popular.

Por isso peço-lhe, jovem amigo que ainda está treinando olhar a página impressa pelo menos uma vez a cada dois dias: aguce os ouvidos. Ouça as palavras que o autor utiliza, o seu vocabulário. Socorra-se no dicionário se alguma delas lhe soar estranha. Escute a harmonia das frases, o ritmo dos parágrafos. A música do texto todo. A linguagem de que se utiliza um autor é como o modo de falar de uma pessoa. E uma pessoa mostra muito quem é pelo jeito como se expressa, mesmo que minta.

Ler com todas as antenas ligadas ajuda-nos a flagrar a mentira, a achar a verdade até em lugares que ela parecia nem existir, de tão singelos que são (uma estrela cabe num grão de areia, é uma idéia e uma imagem a se pensar). E, mais que tudo, a beleza. A beleza é a verdadeira verdade, a verdadeira bondade, a arte expressa com toda sua musculatura à mostra.

E, por fim, leia procurando, não só ao autor, à história que ele conta, aos personagens que ele pinta, aos cenários que descreve, à linguagem com a qual ele conversa com você. Leia procurando a si mesmo. Em algum trecho, no meio do caminho, ou até no fim, quando menos esperar, você poderá se deparar com algum fragmento do livro que diz tudo aquilo que você sempre desejou dizer ou precisou dizer e não sabia como. Agora sabe. Agora pode.

Porque leu, e, lendo, pode escrever-dizer a voz que se somou à sua e, desta forma, ajudou a sua voz a então poder, a partir da leitura, começar a desenhar o rosto que você de fato tem (até então ilegível para você), a história que é sua (e que você nem sabia que havia uma história possível de ser contada). O jovem leitor em geral não descobriu ainda que somente com a leitura ele conquista não apenas o conhecimento “externo” do que muitos escritores quiseram dizer e incontáveis histórias e as figuraças que vivem essas histórias, conquista não apenas uma “cultura”, a permitir-lhe ser, inclusive, um bom falante e um bom ouvinte. Mais que isso, conquista a si e começa enfim a infinita aventura de desvendar os mistérios que ele próprio carrega, há anos. (14/10/2008)

sábado, 11 de outubro de 2008

O DELICADO EXERCÍCIO DA FORÇA

Você deseja, como todos, se dar bem.
Mas “se dar bem” não pega bem, sobretudo dito assim, a seco.
Na verdade, você quer mais. Você deseja ter alegrias com algumas constância e paz ao máximo. A paz acariciada pelo prazer de, inundado de oxigênio por todos os lados, não ser uma ilha, não, e sim alguém que habita sensorialmente e – sempre se quer mais – intelectualmente uma região imensa, inesgotável.

Você quer demais essa experiência. Não, você não quer “uma” experiência, mas várias, sem-conta, você almeja a soma e o predomínio do que faz seu corpo, sua mente, você de forma inteira.
É preciso persistência. Por incrível que pareça (e a idéia até nos faz rir), ser você mesmo necessita de cuidados, de diários reconhecimentos. Como se existisse um espelho especial feito exclusivamente para você. E a passagem frente a ele (e o postar-se diante dele) é obrigatória. Salvadora.
O melhor de tudo é que esse espelho é só uma idéia que humildemente se coloca diante de você. Uma idéia que enxerga você.
Sim, você é visto por ela, a idéia, por ele, o espelho, que, pensando bem, só existe multiplicado: são muitos espelhos, em todo lugar, em casa, na rua, na hora da diversão, na hora do trabalho – até na hora do repouso.

Delicado exercício de ser (porque “ser” significa “ser alguém”, o que é muito mais que “ser algo”), como é fundamental esse permanente estado de alerta mesmo no alheamento. Um alheamento que, segundo Drummond, é “porosidade”. Isto é, nunca se ausentar tão plenamente para não se perder a música do mundo e, junto com ela, a voz que se herdou alimentada pela voz que se construiu.

Cave, fuce, procure, afaste as cortinas, observe, leia, ouça, fale, toque, seja tocado – encare o desafio e a provocação (deliciosa e grave) de identificar o que é força em você e o convoca a construir mas também a fruir, a fazer – e sua recompensa –, a receber o que se move na mesma discreta ação que é gêmea da sua.

Todos nos procuramos. Nós, você, a humanidade, o mundo, as coisas.
E se se repelem, muitas vezes, é porque não compreendem o choque inevitável causado pela paralisação da procura. Alguma força sempre esbarra conosco no caminho. E nos derruba, se não estivermos fortes.
Interessante: pode nos levantar, essa força outra, se estivermos fortes – mesmo frágeis – para ser erguidos. Ajuda externa que nunca é isolada. Nós, decisivamente, a ajudamos. (11/10/2008)

sábado, 4 de outubro de 2008

UM POUCO MAIS SOBRE "WHISKY"

Terminou agora na tevê a cabo a exibição do filme que recomendei. São 22h15min quando escrevo este post sobre Whisky, recomendado a mim por Roberto Silva, que tenta, inutilmente, esconder-se em João Pessoa. Pobre Jacobo, o dono da fabriqueta de meias (de discutível qualidade e gosto) e de um carro que sempre custa a pegar. Filhos da puta esses dois diretores, um deles, Juan Pablo Rebella, de apenas 32 anos, morto dois anos depois de lançado o filme. Como o Uruguai é um país triste...

Na vidinha precária da fábrica de meias de Jacobo não cabe um único discurso. Nem meio. Com a chegada do irmão, Herman, vindo do Brasil (eta país de falastrões), o sujeito, contaminado e bem-sucedido, é a única promessa de vínculo, mesmo que provisório. Aliás, nem se trata de vínculo (o irmão vem para os dez anos de morte da mãe, a cujo enterro nem compareceu), mas do ato do sorriso como um evento isolado. Fazer cara (puro mecanismo) de quem diz "uísque" e, assim, mostrar os dentes para o fotógrafo. É o que passam a fazer Jacobo e sua principal funcionária, Marta, que combina com ele, durante a estadia do irmão, cumprir o papel de esposa do desencantado patrão. Nota: não há confissão de desencanto. É desencanto puro, em estado bruto, para além das autocomiserações.

A alegria advinda das discretas demonstrações à visita familiar é no máximo uma declaração de boas-vindas e, depois, com o passar dos dias e da convivência, sob o peso das diferenças entre o anfitrião sem ilusões nem bens e o visitante com charme e dinheiro, o que é drama vira comédia e o que poderia ser comédia vira incômodo, insuportável silêncio. Detalhe: como o silêncio é enfático nessa história! As imagens são quase singelas e, no entanto, impossível resumir a trama, que aponta em tantas direções. Uma das razões é a solidão atroz das duas personagens principais, Jacobo e Marta, e a carência nunca assumida de um e sempre assumida – embora calada – da outra.

O roteiro é uma obra-prima, ainda que a palavra o desmereça, por ser uma expressão gasta e absolutista. Os atores são daquela rara espécie que prova que interpretar não é nem um pouco menos que criar. A sensação, nítida, que me ficou, é que Whisky é um fragmento poderoso das minhas memórias, e que estarei sempre lembrando-o misturado à minha vida, acerca da qual sempre surgem novas dúvidas que poderiam transformá-la, não estivesse ela fechada para a transformação, e iluminadoras certezas sombrias. (04/10/2008)

WHISKY


Hoje, às 20h15min (jante cedo ou – é sábado – jante tarde), na tevê por assinatura, canal 65 da operadora NET, Telecine Cult, um filme uruguaio, Whisky. Nós, que somos vizinhos de Uruguai e Argentina, estamos com o faro mais atento ao bom nível de sua cinematografia, sobetudo a argentina. Bem, quem me lê aqui, sobretudo os não-gaúchos, fiquem ligados. Whisky é uma comédia comovente, aquela espécie de história que reúne o auge das potencialidades narrativas, onde o que é drama humano converte-se em lágrima seca, engolida em favor de sorrisos a costurar um humor raro. Humor alimentado na base de uma melancolia difusa. Solidão e orgulho se unem, uma para dar a profundidade da condição do protagonista, o outro para resgatar sua dignidade e mostrar o quanto o irmão representa para ele. A trama? Morta a esposa há anos (fato que o viúvo encobre), o personagem encarnado por Andrés Pazos, Jacobo, possui uma mulher que trabalha para ele em sua fábrica de meias e que, além de funcionária, é sua única amiga. Recebe a notícia da iminente visita do irmão, Herman, a quem deseja causar boa impressão. Combina com a amiga, Marta, que represente a atual esposa. Os afetos sublimados e as perdas caladas dão um show de contida e, por isso mesmo, tensa e densa emoção a nos arrancar reações que poucos filmes merecem de nós. Whisky é desses poucos filmes, a ser visto e revisto. Ainda bem que tevê por assinatura, em geral, costuma repetir diversas vezes, durante um ano inteiro, praticamente toda a sua programação. Tenho esperanças de ver e rever o filme. dirigido pelos uruguaios Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll em 2004, umas três vezes no mínimo, até meados do ano que vem. Mas não facilitem. Programem-se para hoje. Se não acharem o máximo, me cobrem. Prometo me retratar. E, francamente, duvido que o faça. Não por orgulho. (04/10/2008)

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

HÁ CEM ANOS MORRIA MACHADO DE ASSIS

“A vida é boa” ele disse, em alto e bom som, para quem o pudesse ouvir no sobrado da Rua Cosme Velho, 18, enquanto suas forças iam se extinguindo.


Cronologia comentada

21/06/1839 – Nasce no Morro do Livramento, no Rio de Janeiro, filho de agregados, o pai era filho de escravos recém libertos. Pintor de paredes. A mãe, branca, era lavadeira. No mesmo ano, seis meses antes, nascera Casimiro de Abreu, futuro autor de As Primaveras, e nelas, o poema “Meus Oito Anos”: “Oh! que saudades que eu tenho/ Da aurora da minha vida,/ Da minha infância querida/ Que os anos não trazem mais !”, publicado quando Machado faria 20 anos e trabalhava para Paula Brito.

1845 – Perde a irmã, Maria, de quatro anos. E, talvez perda maior: a madrinha e protetora, Maria José de Mendonça Barroso. Aqui há controvérsias. Morta tão cedo, como se pode inferir que o papel da madrinha teria sido decisivo na salvação material e intelectual do menino. Não foi à toa que ele vendeu balas fabricadas pela madrasta e aprendeu francês numa padaria.

1849 – Morre-lhe a mãe. As raízes se soltam. Com ela, o pai morre um pouco, ou se desvia, o que dá no mesmo.

1854 – Primeira produção que pode ver impressa. O poema “Soneto”, no Periódico dos Pobres, a 3 de outubro. Quase nunca citado. Três meses depois, a 15 de janeiro de 55, num periódico de reputação, Marmota Fluminense, sai o poema “Ela”, tido como sua real estréia. Não foi.

1856 – Ingressa na Imprensa Nacional, como aprendiz de tipógrafo. Lá conhecerá Manuel Antônio de Almeida, que o ajudará muito. Almeida é autor de um livro que não faz grande sucesso num ambiente de românticos sem humor, mas sem dúvida é, daquele período, das poucas coisas que sobreviveram. Certamente isso terá causado algum impacto positivo em Machado.

1860 – Entra em cena o jornalista. E o comediógrafo. Que não pararão, com idas e vindas, entre a imposição do contista – a produzir até o apagar das luzes – e a cada vez maior consistência na carreira do romancista. Mas deve ao jornalista a prática e um público e ao comediógrafo a reputação de vôos mais altos no início. Promessa que cumpriu.

1861 – Morre Manuel Antônio de Almeida. Sai de cena o segundo protetor. Mas logo não precisará mais deles. Machado de Assis, escrevendo sem parar e, paradoxalmente, rigoroso no projeto e na execução, com uma obra que é, mais que sólida, renovadora porque não se ancora no já feito, arrojada nas proposições temáticas e formais, terá apenas na esposa outros braços estendidos.

1860-63 – O comediógrafo mostra as unhas. Aparadas. Sua primeira peça: Hoje Avental, Amanhã Luva. E logo: Desencantos, O Caminho da Porta e O Protocolo (saem num volume, O Teatro de Machado de Assis, no mesmo ano). Quase Ministro, também de 63, sai em separado.

1864 – Inicia colaboração que marcará época. No Jornal das Famílias, muitos de seus contos saírão durante mais de uma década. O que lembra a fase do argentino Jorge Luis Borges em El Hogar, nos anos 1930.

1864 – Sai seu primeiro livro. Crisálidas, poemas. A crítica vasculhou em vão, nesses poemas derramados (mesmo com versos regulares), alguma pista do Machado que sobreviveu à própria morte. Ficasse só nos poemas, e não o teríamos lembrado. Não deixa, no entanto, de configurar, essa observação, uma injustiça. O processo do artista é longo e irregular, como o de maciça maioria dos artistas, mesmo os grandes. Aos 25 anos era praticamente impossível estabelecer autonomia estética num meio onde criadores fadados a serem esquecidos antes de morrer ditavam as regras. Ele não as seguiria em breve. Mas era preciso esperar

1866 – Desembarca do navio, que a trouxe de Portugal, Carolina Augusta Xavier de Novais, quatro anos mais velha que ele e amiga de Camilo castelo Branco e de outros escritores portugueses.

1869 – Casamento com Carolina. Residem, primeiramente, na Rua dos Andradas. Cinco anos depois, muda-se para a Rua da Lapa. Em 1875, para a Rua das Laranjeiras. O casal busca o abrigo que os fortaleça.

1870 – Edição de Contos Fluminenses e Falenas (poemas). Nos contos, uma evolução na prosa que se fazia então. Na poesia, nada de novo.

1872 – Realiza seu romance inicial, Ressurreição. Já traindo a tradição romântica, coloca o casal, dois protagonistas, num jogo contido onde há mais embate que a exaltação das certezas do desejo mútuo.

1873 – Entra para o funcionalismo público, no Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, e lança Histórias da Meia-Noite, segunda incursão no conto.

1874 – Segundo romance, A Mão e a Luva. Estréia como folhetinista. Depois, no mesmo ano, o romance sai em livro. Guiomar, moça segura de si, de origem humilde, vê a chance de ascensão social pelo casamento. Três são os pretendentes. O fiel Estevão, tratado no entanto com certo desdém pelo narrador. O óbvio, oco e desimportante Jorge, o mais parecido com Guiomar, mas sem charme, naturalmente. E o ambicioso Luis Alves, determinado, com planos políticos e sociais. Apesar desse cenário que a escola romântica não aprovaria, fica evidente a escolha de Guiomar por Luis Alves. A união dos dois é tão certa como a mão e a luva. O cético Machado já dá as cartas em sua fase “romântica”.

1875 – O poeta dá mais um passo. Sai Americanas, seu terceiro livro no gênero. Antecipando uma pausa lírica que durará 26 anos.

1876 – Helena, terceiro romance da primeira fase do autor, vem a público. Talvez o mais frágil porque Machado nele não se detém – como, ao contrário, sempre foi sua marca – no detalhamento psicológico das personagens. É a menos machadiana de suas ficções: o enredo domina tudo. Desde o forte início, com a morte de um homem poderoso, o surgimento de uma suposta filha, Helena, que ele tivera com uma amante, a paixão – recíproca – entre Helena e Estácio, o irmão da moça, até o desfecho surpreendente. O que parece uma ameaça de incesto terá uma reviravolta. Amores paralelos (por Helena, da parte de Mendonça, e por Eugênio, suposto irmão da moça, da parte de Eugênia, prometida desde a infância ao filho do homem poderoso, rico) e interesses de ascensão social, esses sim marca recorrente no universo ficcional de Machado fazem de Helena um roteiro que se insere no corpus de sua obra, mas o tom com que tal roteiro se mostra abre mão das nuances características do escritor, sempre a criar armadilhas e dissolver qualquer possibilidade de evidência. O enigma de Capitu não é um capítulo isolado em sua criação.

1878 – Encerra o ciclo romântico com Iaiá Garcia. Não à toa nesse mesmo ano publica seu célebre ensaio contra o naturalismo de Eça de Queirós em O Primo Basílio. Talvez o mais bem acabado romance da primeira fase. Como se fosse a fronteira entre os jogos afetivos infindáveis e as questões morais e suas derivações a apontar outra concepção de literatura, que se dará dali a dois anos. Em Iaiá Garcia temos a sombra constante do amor entre Jorge, moço rico, e Estela, de origem pobre. A mãe do rapaz, viúva rica amiga do também viúvo Luís Garcia, pai de Iaiá – na verdade Lina –, sabe do interesse do amigo maduro pela moça. Trata de afastar o filho, convencendo-o a alistar-se na Guerra do Paraguai. Depois dá um dote à Estela e a convence que Luís Garcia, um bom partido, pacato e caseiro, é o melhor rumo para a vida da moça. Jorge também era amigo do pai de Iaiá, e confidencia-lhe, quando Luís Garcia já está casado com Estela, dos verdadeiros motivos de sua ida ao Paraguai. Omitindo, por respeito, a identidade da moça que a mãe não queria que ele desposasse. Antes do retorno do rapaz, morre-lhe a mãe. Jorge retorna. Passa freqüentar a casa de Luís Garcia e naturalmente cruzam-se ele e Estela, sempre havendo tensão no encontro entre ambos. Iaiá, muito próxima do pai, conhece-lhe a fundo e percebe a perturbação de Estela nessas horas. Sobretudo quando o pai mostra à esposa as cartas do amigo confessando seus amores proibidos pela mãe, sem citar o nome da pretendida. Na volta Jorge trouxe um amigo, Procópio, que logo se interessa por Iaiá. Faz de Jorge seu confidente, na busca de alguma chance com a filha de Luís Garcia. No entanto, querendo resguardar o pai de uma grande decepção, Iaiá decide-se casar-se com Jorge e, para isto, tenta conquistá-lo, apesar do sentimento de repulsa que o rapaz lhe causava até então. Contando com seus dotes, acaba por noivar com o moço. Entretanto, antes do casamento, morre o velho Luís Garcia. O plano da heroína perde o significado, e Iaiá desmancha o noivado. Mas os dias mostram que, de fato, ela agora está apaixonada por Jorge. Procópio Dias, o pretendente rejeitado, fortalece as suspeitas da moça, insinuando relações amorosas entre Jorge e Estela. Esta, descobrindo o que levou Iaiá a romper o noivado, convence-a de que suas suspeitas não têm fundamento: tudo há muito se resumia às lembranças do passado. Reaproximam-se os noivos e Estela serve-lhes de madrinha no casamento. Após isso, muda-se para São Paulo, onde vai trabalhar na escola de uma amiga. Ainda o Romantismo exige de Machado de Assis respostas, mas a resposta, cada vez mais, é tipicamente machadiana.

1878/79 – Séria enfermidade nos olhos. Passa longa temporada em Nova Friburgo, RJ, em busca de recuperação. Tempo de renovar-se. Muitos biógrafos apontam esse episódio de sua vida como a fronteira entre a primeira fase e a segunda, que vem logo em seguida.

1880 – Tu, só tu, puro amor, peça em homenagem ao terceiro centenário da morte de Camões (1525?-1580). Resume-se ao papel de homenagem. O excessivo psicologismo, no caso, não se adéqua à cena e menos ainda à odisséia relacionada ao episódio camoniano. O teatro é o gênero onde Machado menos acertou. Não à toa só voltará a publicar duas peças, as derradeiras, 26 anos mais tarde.

1881 – Ano-marco na vida do autor. Sai Memórias póstumas de Brás Cubas, seu romance mais original, difícil de definir. Espécie de rapsódia, à qual o autor não voltará nos livros seguintes, mesmo atingindo em alguns nível semelhante de excelência. Algo impossível de se extrair do livro, para começar: uma sinopse. Basta dizer que quem narra é um defunto, que começa o livro no dia de sua morte e a narra, num resumo simplificado, de trás para diante. A literatura brasileira nunca mais seria a mesma.

1882 – Sai mais uma coletânea de contos, já com marcas inconfundíveis da maturidade: Papéis avulsos. O volume abre com "O Alienista", uma novela de 90 páginas que muitos chamam de conto, e que está entre as criações máximas do autor. Para coroar o livro, destacam-se ainda "Teoria do medalhão", "A sereníssima república" e "O espelho", um dos contos mais estudados de Machado.

1884 – Machado e Carolina mudam-se para a casa definitiva, o sobrado na rua Cosme Velho, 18. Nesse mesmo ano sai Histórias sem data. O contista consagra em definitivo o escritor: só neste volume encontram-se "A igreja do Diabo", "Cantiga de esponsais", "Singular ocorrência", "Galeria póstuma", "Capítulo dos chapéus", "Noite de almirante" e "As academias de Sião".

1888 – É nomeado Oficial da Ordem da Rosa por Dom Pedro II. Uma semana após a proclamação da Leia Áurea, libertando os escravos, Machado, avesso a “excessos” públicos, desfila em carro aberto.

1891 – Sai Quincas Borba, segundo romance do seu trio maior (completado com Dom Casmurro) de narrativas longas do autor. O livro dialoga com o Memórias póstumas... A começar pelo personagem homônimo, amigo de Brás Cubas e a quem este seguia como um exemplo de saber, sobretudo por sua filosofia, no Quincas Borba explicada: o Humanitismo. Além disso, o “pensador” – a ironia machadiana nos leva a desconfiar de que sua filosofia seja mero pretexto para nos passar a perna ou, mesmo, que ele seja um alucinado – tem um cão a quem deu seu próprio nome. Quando morre, deixa uma herança em dinheiro para o amigo Rubião, desde que este cuide do cão. O título alude ao filósofo “louco” ou ao animal de estimação? É do pensamento de Quincas Borba, o homem, a frase famosa: “Ao vencedor, as batatas.”

1896 – Sai um de seus mais importantes livros de contos, Várias histórias. Basta que se diga que nesse volume reúnem-se "A cartomante", "Uns braços", "Um homem célebre", "A causa secreta", "Conto de escola" e "Um apólogo". Funda a ABL – Academia Brasileira de Letras e é eleito seu primeiro presidente a 15 de dezembro.

1897 – Sílvio Romero publica o mais notável – pela infelicidade – estudo sobre um grande autor na história da crítica brasileira. Chama-se Machado de Assis, simplesmente, e é a primeira e, ao mesmo tempo, mais enfática resistência à obra machadiana. Acusa aos demais críticos de superestimarem o autor, em quem vê apenas “O estilo de Machado de Assis, sem ser notado por um forte cunho pessoal, é a fotografia exata do seu espírito, de sua índole psicológica indecisa. (...) Vê-se que ele apalpa e tropeça, que sofre de uma perturbação qualquer nos órgãos da linguagem. Machado de Assis repisa, repete, torce e retorce tanto suas idéias e as palavras que as vestem, que deixa-nos a impressão dum tal tartamudear. Esse vezo, esse sestro, tomado por uma cousa conscienciosamente praticada, elevado a uma manifestação de graça e humour, era o resultado de uma lacuna do romancista nos órgãos da palavra”. Diversos trechos revelam o tom preconceituoso de Romero, levando em conta a origem pobre do autor, a gagueira, a timidez, e o fato de ser mulato, como determinantes de uma impossibilidade.

1899 – Outro ano que marca a vida de Machado. Sai Dom Casmurro, romance que, na forma, retoma a narrativa até certo ponto linear de antes de Memórias póstumas... Trata-se de um dos três livros mais estudados das letras nacionais. Só sobre Dom Casmurro, ambígua história de uma aparentemente evidenciada traição, pode-se formar uma biblioteca média de produção crítica nos quase 110 anos de seu surgimento. Também publicado nesse ano, Páginas recolhidas confirma que o contista chegou ao auge há duas décadas. No volume, não bastassem "O caso da vara", "Idéias de canário" e "Filosofia de um par de botas", integra o conjunto "Missa do Galo", seu conto mais discutido.

1901 – Talvez sob o impacto do novo século, Machado faz um balanço de sua poética. Publica seu quarto e último volume de poemas, Ocidentais, e igualmente reúne toda sua produção no gênero, em Poesias completas.

1904 – Sai seu penúltimo romance, Esaú e Jacó, considerado, junto com o próximo, obra crepuscular, uma espécie de queda no projeto estético machadiano. Inevitável. Já tinha feito mais do que todos os que o tinham antecedido – e talvez do que os pósteros. E era um ano que se adivinhava amargo. Em outubro, morria Carolina, que durante 35 anos o acompanhara em tudo, sendo até mesmo sua secretária e revisora. Fortes dores no estômago, agravadas por uma receita equivocada de um farmacêutico, precipitaram o fim por causas que, então, não eram diagnosticadas.

1906 – Publica seu último livro de contos, Relíquias de casa velha, sendo que ali promove uma miscelânea, abrindo o volume com seu melhor poema, “A Carolina”, e logo em seguida com uma narrativa breve que também se inclui entre suas melhores: "Pai contra mãe". Os outros 41 textos, alguns pendendo à crônica, a maioria contos mesmo, recolhem o que ficou pelo caminho, textos esparsos na imprensa, saídos entre 1874 a 1894, reunidos em ordem cronológica.

1908 – Vem à luz seu derradeiro romance, Memorial de Aires. Em 29 de setembro, uma grave infecção intestinal e uma úlcera na língua debilitam seu estado de saúde a ponto de fazê-lo fechar os olhos pela última vez, já madrugada. Muita gente o acompanhava em casa. Não aceitou quando lhe ofereceram um padre para a extrema-unção. “Seria muita hipocrisia.” (29/09/2008)

sábado, 27 de setembro de 2008

PITACOS

O título geral desta seleção de breves textos foi surrupiado de meu primo Alexandre Ribeiro, que escreve bem pra caralho (como mais um primo meu, aliás, e que, como ele, faz questão de esconder o próprio talento). Mal de família, vocês entendem.


Faltam 2 dias!

Na segunda-feira, 29/09, completa-se um século inteirinho que o Sr. Machado de Assis abandonou o próprio corpo à sorte dos vermes que logo, logo roeriam as frias carnes de seu cadáver. Enquanto seus contemporâneos sobreviventes e as gerações futuras teriam para sempre uma literatura pra lá de viva, à disposição deles, leitores, aferrados a uma arte verbal capaz de roer – como quem não quer nada – também a nossa moral e os nossos péssimos costumes.


Dica de leitura urgente

As confissões do homem invisível, de Alexandre Plosk, é um caudaloso romance recém-lançado pela Bertrand Brasil (391 páginas, R$ 49,00). Nem parece literatura brasileira. Está tudo lá: Maupassant, H. G. Wells, alguns cientificismo que lembram a vigília dos obsessivos protagonistas de Edgar Allan Poe, e, principalmente, o estilo Plosk, único, sem antecessores e – duvido! – continuadores na tímida literatura nacional. Escrevemos bem, sim; mas pensamos com muito medo, indo pouco além da sobrevivência dos nossos umbigos. Não sabemos contar histórias e, muito menos, pesadelos intermináveis nos quais o real suplanta o quase naturalismo da má-consciência burguesa. Plosk nos livra de tudo isso: oferece diversão, angústia, assombro, novidade, viagem no tempo, no espaço, sem psicologismos previsíveis, e com narradores decididos e atormentados num nível acima da média, o que daria ótimos filmes. Não pelo (muito bom, sim) Fernando Meirelles, mas por gente de Hollywood, como os Irmãos Cohen ou até o Woody Allen. Brasileiros sofrem de cegueira para tamanha imaginação.


Dica de filme

Como a última vez em que fui ao cinema o chato do Glauber Rocha ainda estava na onda (é... só vejo tevê a cabo. Não é preferência, é falta de tempo mesmo para enfrentar uma saída, o tempo de espera no cinema, e o retorno: escrevo a Odisséia nesse intervalo todo), indico no canal 81, MGM (Metro-Goldwyn-Mayer), o longa de 1994 Romance entre amigos (“What Happened Was”, literalmente O que aconteceu foi...), dirigido e estrelado pelo Tom Noonan, que contracena com Karen Sillas, e que entre quinta-feira e sexta, ontem, passou três vezes. Passará outras, é só ficar de olho.
O filme são os dois atores, e só. O mais impactante (aliás, uma peça de teatro filmada) é o ritmo marcadamente arrastado, truncado, em que palavras, emoções e ações parecem travar na hora H. Se é que existe alguma hora H nos 91 minutos de duração da história. Que história? Jackie (Karen Sillas, que está ótima, como o parceiro e diretor), solteira além de “uma certa idade” – mas ainda atraente –, é uma secretária em um escritório de advocacia. Vive uma profissão e uma vida medíocres. Convida Michael (Noonan), colega de trabalho, numa sexta-feira, para jantar no apartamento dela. Quem sabe role algum clima… Pois a absoluta ausência de clima (estampada na atuação impecavelmente inexpressiva dos dois) revela, paradoxalmente (a desesperança é o avesso do desespero pela esperança), que tudo pode acontecer. Quase ao final de um jantar monótono, tenso diante das supostas possibilidades que jamais decolam, Jackie revela que fará aniversário dali a dois dias, e que resolveu antecipar a festinha. Só para os dois. Ele se sente pressionado. Mas, no fundo, é um homem pressionado – independente daquela situação. Trata de se mandar. Quando ela começa a recolher o bolo que nem comeram, as bebidas que nem chegaram a abrir, Michael, já na porta, começa a falar (enfim!) e o que fala nada revela além de seu cotidiano tão precário quanto o dela, esvaziado de qualquer chance. Nessas horas em que a fala de um cala a do outro (jamais ocorre a interação do estilo pingue-pongue), emerge da vastidão deserta e (nunca gélida) morna de um mar onde jazem afogados, à espera, sempre à espera, a solidão mais crua que já presenciei encenada.
Por fim, o desabafo do parceiro é apenas o monólogo elíptico de um estranho. Jackie ousou ainda revelar: “gosto de você”. É pouco para tanto isolamento, instaurado em cada um. Michael, tendo revelado sua existência sem-graça, vai embora. Jackie começa a apagar as luzes. Eu aplaudi. Na frente da tevê, comovido, inquieto, aplaudi. (27/09/2008)

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

ENQUANTO O TEMPO TENTA PASSAR INCÓLUME



E já que ninguém gava...

Zeca gava. Domingo, 28/09, sai na revista Época, na seção "Mente aberta", um artigo-relâmpago meu sobre dois livros do meu autor de cabeceira, o argentino Julio Cortázar: A volta ao dia em 80 mundos e Último round, ambos editados pela Civilização Brasileira (que no Brasil edita toda a obra de Cortázar), cada um deles em dois voluminhos de se levar apertados contra o peito, feito uma colegial apaixonada. São contos, artigos, ensaios, poemas, e centenas de imagens. O que o autor chamava de "livro-almanaque". Não seria uma forma antecipada de blog? Originalmente saíram em 1967 e 69, respectivamente. Cortázar, que amava Júlio Verne, era um visionário mesmo, a exemplo de seu mestre.


Faltam 4 dias!

Contagem regressiva para se marcar (relendo os livros, claro, e não com fogos de artifício) os cem anos, não da morte do cidadão Joaquim Maria Machado de Assis (21/06/1839–29/09/1908), mas um centenário que uma obra de qualidade quase inexplicável foi sua herança, deixada a quem estiver disposto a conferir – e bem tratada, diga-se de passagem.


Legítima efeméride

"Efeméride" é uma palavra pra lá de anacrônica. Bem... A Academia Paulista de Letras andou homenageando Paulo Bonfim, lembram (os mais velhos, digo) de Praia de sonetos e outros ós e ôs que um distraído como o Guilherme de Almeida andou incensando? Pois Bonfim é o atual Príncipe dos Poetas Brasileiros (apelo de novo à vossa memória: lembram do Olavo Bilac, o primeiro de todos a receber nobiliárquico título?), ocupa a cadeira 35 da dita academia, completará 82 anos um dia depois do Machadão completar 100 anos de morto, e, sim, está vivo, o homem, vivo! E eu achando que Paulo Bonfim, Paulo Setúbal e outros Paulos cujo sobrenome agora me foge à memória estivessem mortos. É possível que estejam. Na literatura, obviamente. Mas não era disso que falávamos?


Personagem não chora, não gargalha

Semana estranha. De repente me vejo, em oficinas de redação criativa, debatendo até a exaustão o fato de que há um excesso de personagens se desfazendo em lágrimas, gargalhando até não poder mais. Alertei aos autores de semelhantes excessos: na vida, que não tem o menor senso estético, chorar pode ser fundamental (além de inevitável), livrando, sobretudo aos homens, de possíveis ataques cardíacos; gargalhar é uma das coisas mais contagiantes – supondo-se que a piada seja boa mesmo. Porém, na literatura, o diabo sempre se apresentando nos detalhes, chorar tem 83,6% de chances de esvaziar o efeito dramático de uma situação que, sim, levaria qualquer um ou a maioria às lágrimas, mas, uma vez omitidas no texto, criam a tensão emocional decisiva para que o leitor, este liberado para tais excessos, reaja como reagir. Imagine-se um personagem às gargalhadas. O motivo de tal reação, ficcionalmente falando, tem de ser muito bem justificado, criado de forma irretocável. Sem uma atmofesra extremamente propícia, tais gargalhadas nos deixarão, frente às páginas, sem-graça, achando aquilo tudo, senão gratuito, exagerado, constrangidos talvez. Em suma: os personagens que pintem e bordem, e aos leitores que sobre toda a histeria do mundo. Observação: claro, personagens choram e riem, está mais do que óbvio. Mas em situações ante as quais o leitor nem discute, fica inclusive pensando: "puta que o pariu..." Última observação: o tema é amplo, naturalmente, e não é numa nota que irei esgotá-lo. (25/09/2008)

sábado, 20 de setembro de 2008

A MULHER QUE NOS DEU AS COSTAS

Flagrada na intimidade mais doce, aquela que parece anteceder uma posse (a sonhada posse masculina), a fêmea figura freqüenta a mente e a paleta de muita gente – Rafael, Goya, Renoir, e esses três são apenas alguns nomes centrais de uma prática de séculos e de centenas de artistas. O ítalo-brasileiro Eliseu Visconti (Villa di Santa Caterina, Giffoni Valle Piana/Itália, 1866 – Rio de Janeiro/RJ, 1944), em Dorso de mulher (68cmx41cm, sem data), trai sua predileção pelo esteticismo de Degas, diluindo aí a antiga poesia vaporosa de Renoir, poesia ausente nesta tela, mas marca fundamental do impressionismo em cujas luzes muito da pintura de Visconti se banha.

Estávamos na passagem do século XIX para o XX (não sabemos em que ano a tela foi pintada), entre o umbral do novo (agora velho) século e a década de 20, os ares da art nouveau lavando a pesada, densa luz do impressionismo que ficara para trás. O pontilhismo acenava de perto. O divisionismo dos neo-impressionistas, típico daquele tempo, fazia com que a cor estivesse sendo definitivamente perturbada, perdendo para sempre a rígida placidez dos tons clássicos.
Mas Visconti não trai a altiva intimidade dessa mulher que nos dá as costas. Ou melhor, que não nos nota, imersa na sua serena nudez, sem o langor renoireano, sem o movimento elegante de quem pede um espelho, tocada por uma luz que morre nela.

Acostumamo-nos a ser levados por essa displicente apresentação do corpo feminino: a lassidão de quem se estende, levemente erguida, levemente deitada. Convite e impedimento. A diferença, claro, não está nas mulheres, nem mesmo nas épocas (cuja nudez sempre antecipa o futuro), mas no estilo dos pintores, isto é, nos pintores, e seu olhar de macho, num primeiro momento amestrado, e num segundo, vitorioso pela mão civilizadora da arte. Todos – e não é preciso ser Fragonar ou Rubens – estacam ante a visão e ali ficam, mortificados, incapazes de dar um passo à frente sem antes gravar para sempre a imagem que os feriu.

O impressionismo briga com o fotográfico, afasta-se levemente do figurativo e, de certa forma, antecipa o abstrato, mergulhando na sede de luz, no susto ante o fulgor do mundo, ante a auréola nem santa nem demoníaca, mas pretensamente natural, num exagero que banha as formas e nos fecha um pouco os olhos como se um sol acendesse tudo. Num corpo não seria de se esperar esse facho, esse clarão, essa cor móvel, cheia de cintilações, que corusca com um calor úmido e ameaça falsear o que se vê. A luz então conhece a sombra e mais tarde busca um equilíbrio onde ela não é o elemento principal, ou melhor, ainda é, mas discretamente utilizado.

Visconti recupera em seu tempo a cena doméstica, a verdade sem o excesso lírico, a pele iluminada até onde somos capazes de ver, sem as ilusões pictóricas, visualmente retóricas. Como se uma toalha tivesse enxugado aquelas costas. Toalha que a própria mulher usou, sem a nossa miserável ajuda. (20/09/2008)

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

ARESTAS, APARAS, ARTE 3

O homem condenado

A inteligência cria tantas armadilhas quanto a mediocridade.
A mediocridade leva o homem ao deserto espiritual. A inteligência, ao inferno espiritual.
A mediocridade causa dependência, mas compensa com o fácil convívio social. A inteligência vive da surpresa, cria todo o tempo, mas torna-se impotente num mundo que se transforma só por fora. O medíocre corre todo o tempo, alimenta o mundo que o aceita sem queixas, mas ele, medíocre, mergulhado nesse êxito sem sobressaltos, acorda de um sono limpo para uma vigília onde uma sombra que nunca se deixa entrever vai aumentando cada vez mais, até mostrar sua verdadeira cara apenas no dia de sua morte. Mas aí é tarde para acordar.
A inteligência, ao contrário, é derrotada diariamente (pelo conformismo e pela preguiça e pelo obscurantismo), que não atrapalham a administração do progresso e os jogos de poder, e quando desiste de lutar, e cala-se dentro de um corpo murcho e doente, fatalmente condenado, ouve enfim – mas tarde demais – o reconhecimento hipócrita de que estava certa antes, o tempo todo. Mas já não lhe resta nem oportunidade para o alívio, que dirá para o sorriso.
A inteligência que fica é uma inteligência estuprada. Olha para o lado: vê então uma nova inteligência, inteligência porque nova. Que monta armadilhas. A maior delas: retira uma pedra do castelo, depois outra, e através do buraco espia o outro lado. Os condenados a não chegar até o lugar onde a consciência vigia são os primeiros a denunciá-la. A inteligência constrói seus próprios obstáculos: cada pedra que retira cai sobre sua cabeça.


Prazos

O tempo nunca chega na hora.



O cavador de poços

Fui eu quem cavou o poço do qual alguns tiraram água boa, outros água benta, e no qual ainda outros se afogaram.
Será minha obra benfazeja ou maléfica? Será minha essa obra?
Se o poço restasse só, sem nenhuma boca ávida, sem nenhum olho curioso, só poço sem testemunha, de que adiantaria tê-lo cavado?
Meus protegidos e meus exploradores completam o que fiz e o que deixei de fazer. Cavo poços, não sei fazer outra coisa. Nem eles, a não ser esperarem.
E há também os que me ignoram. Esses, cavam seus próprios poços.
Ainda bem: precisamos de poços.


Verdade sobre a colheita

A melhor flor do Paraíso, é preciso ir ao Inferno para buscá-la. (17/09/2008)

domingo, 14 de setembro de 2008

ARESTAS, APARAS, ARTE 2


Autocrítica

Shakespeare sabia tudo de Ben Johnson e nada de William Shakespeare.


Os cachorros

A obra, como um carro, corta a estrada, vêm os cachorros – o público –, e latem, como se fossem morder o metal blindado contra sua curiosidade de gengivas escuras.
A obra, como um carro, corta a estrada, estaciona nas livrarias, há latidos nos jornais, há rosnares, babas de fome por outra coisa, e logo desistência, a comprida língua de fora pelo fôlego curto, o rabo entre as pernas, o carro longe, esquecido.


Não perguntem ao autor

O homem termina mais uma de suas peças. Lê novamente o que acabou de escrever, francamente incomodado. Mais que as dúvidas habituais que assaltam os que pensam e produzem, em regra pressionados por prazos, o espírito do homem é tomado de um tormento já rotineiro: novamente vê no que criou a marca do excesso, do imperfeito.
Relê tudo com uma atenção desconsolada. Lá estão, bem claros, o enredo improvável, cheio de episódios de exceção, os personagens descontrolados, neuróticos a um passo do inverossímil, e suas falas então, literárias em demasia, de uma profundidade só cabível a um artista, não a um homem ao qual a arte não elegeu.
Sente-se incoerente esse homem que escreve. E, mais que incoerente, falho. Aceita a incoerência (não é ela moeda corrente em suas obras?), assim como aceita o descontrole emocional, o ridículo nos atos das criaturas que põe em cena, o despropósito de suas decisões, a natureza quase bestial de algumas, quase divina de outras. Aceita isso, sim, mas aceita como aceitamos um ritmo cego que nos toma e nos carrega e logo que ele acaba saímos em outra direção.
E tudo isso que o homem escreve é feito numa linguagem que pinga, ressuma, reverbera. Muita música, muita imagem, muita ação, muita legenda. O homem sente-se francamente cansado. Cansado de tudo. Sabe que errou miseravelmente em seu projeto estético. Perdeu desde a primeira linha a possibilidade do equilíbrio. Qual seu destino?
Evidente: cair. Cair do mais alto sonho até a mais baixa realidade. O mundo é impiedoso, disso ele sabe. Que glória poderá esperar? Nenhuma. Claro que nenhuma. O consolo é o relativo sucesso mais imediato – por enquanto ele está vivo e é isso o que mais importa – que seu trabalho faz junto ao público, vulgar, como se sabe.
Quando acaba o espetáculo, ele volta para casa, e logo já bola outra peça descabelada, outro exagero, outro conjunto de vilanias, ridículos, incongruências, únicos sinais que lhe acenam e depois dos quais ele duvida que tenha chegado ao ponto certo.
Um dia morrerá, não se ilude, tudo terá acabado, mas as dívidas não se acumularão, alguma herança material restará, e se seu nome – William Shakespeare – tiver sido varrido da face da Terra, ele não estará presente para lamentar esse resto de silêncio. Até porque concordaria com ele.


O grande consolo

Shakespeare, como a maioria de nós, não sabia o que estava fazendo.


O necessário

É preciso fazer para saber o quanto falta.


O prêmio

Se a coragem é insensata, se o risco é suicida, levam consigo a vida (este prêmio) e a entregam à morte, esta sim sem sentido.
Se o medo é seguro, se o recuo nos mantém na sobrevida, quando a morte chegar – mesmo que demore –, só aí trará um sentido para o que antes não tinha nenhum.


Pensar, esta indelicadeza

Filosofar nada mais é do que enfim esticar os pés da inteligência herdada no berço, herdada mas que não pode ser exercitada em convívio.


Trabalho

O trabalho nos trabalha.


Rotina

Há um enigma enorme na obstinação da rotina.


Tempo mínimo

Leitura é tarefa mais infinita que o amor. Um dia o amor esgota. Um dia o amor aplaca. Um dia o amor desama. E custa a se renovar. E quem amou duas vezes na vida, ou três, já amou muito e pode dar-se por satisfeito. Mas ler...
Imagino três coleções apenas, três súmulas do conhecimento humano e da arte: a enciclopédia espanhola Espasa-Calpe (em mais de cem volumes), a Biblioteca universal de obras célebres (em cerca de 50 volumes) e Vidas ilustres, de Plutarco, que chega a uns 30 tomos. Só esses três monumentos (após cuja leitura poderíamos nos dar por satisfeitos e prontos para olhar o mundo com um mínimo de consciência) levariam mais de trinta anos para serem lidos. Só três coleções! Imagine-se os 200 autores inevitáveis, obrigatórios, os dicionários a serem consultados com vagar, os idiomas necessários para que não acabemos tristemente monoglotas, ilhados numa só língua. Eis o cálculo para um homem passar por esta vida sem ter sido cego diante do supremo prazer, o saber: 300 anos para ler o básico. (14/09/2008)

ARESTAS, APARAS, ARTE

Cuidado com certas modéstias

Modéstia, em alguns casos, é talento modesto.


Advertência

Obra que é obra não tem espelho. 1) Não pode ser imitada; 2) O próprio autor, ao buscar repeti-la, fracassa. E só lhe resta então partir para algo inteiramente novo. Aliás, por fazer exatamente isto é que ele destrói qualquer possibilidade de espelho e constrói a obra. Abandona-se a cada livro, órfão de si mesmo; e diante do espelho desejado (fácil e resumidor) nada o reflete, condenado como um vampiro que deve beber o sangue de todos, mas jamais o seu.


Legado

Anos e anos tentando, e fracassando como um miserável sem sol. A obra não lhe vinha, não de forma aceitável. Aliás, vinha-lhe a obra, sim, mas em forma de condenação: sua derrota cotidiana, o peso terrível de acumular fracassos. Faltava-lhe, talvez menos que engenho, paciência. Sua vida tinha sido até então aquela marca inapagável do insuficiente. E perto dele só ficavam os que não desejam obra alguma, os que aceitavam o silêncio vazio.
Até o dia em que de repente ele achou a direção certa, e fez o que sempre sonhou, e acertou, ah, acertou, sem nenhuma dúvida acertou. E quis ficar quieto, quando terminou de criar, abraçado a um resto de rancor feliz por enfim ter acertado. Imaginou finalmente pertencer-se.
Porém, o primeiro homem que passou por perto teve a atenção despertada pela obra, e interessou-se, e logo outro, e outro, e outro. E em pouco tempo muitos estavam querendo aquilo para eles. E pegaram o que ele achava que lhe pertencia. E, antes mesmo de transformarem a obra em outra coisa (ele já o pressentia), levaram-na para bem longe. E só lhe restou começar tudo de novo, órfão do que criara, reiniciando o doloroso ritual para que nascesse outro filho ou obra, que também lhe seria arrancado, se se fizesse atraente, e deformado bem longe dos seus braços.


Consagrados tentam (em vão) ler os novos

Os jovens escritores, inseguros, carentes, afoitos, não desejam ler os mais velhos, experientes e consagrados escritores. Não desejam mas deveriam. Ao contrário, querem que os maduros empreguem seu pouco tempo em ler suas experiências, suas tentativas, suas promessas. Os escritores maduros, por sua vez, esforçam-se para achar tempo para ler os que estão começando. Os jovens deveriam poupar-lhes tempo, ao invés de roubar-lhes a preciosa e rara disponibilidade. E deveriam, eles sim, jovens, passar a maior parte do seu tempo lendo aqueles que deixaram de ser jovens há muito. Mas quem está começando quer mesmo é mostrar-se, ao invés de ver. E quem é visto não precisa mostrar-se.


Problemas de geografia

Melhor ser um escritor brasileiro mais ou menos do que um maravilhoso escritor sul-rio-grandense. (10/09/2008)

sábado, 6 de setembro de 2008

ATÉ OS LOBOS SE ABATEM

Fausto Wolff, nascido em Santo Ângelo, em 8 de julho de 1940, morreu nesta sexta-feira, 5 de setembro (seria ridículo, por sua trajetória, cair numa data cívica: safou-se por dois dias), no Hospital São Lucas, em Copacabana. Dizem algumas agências que às 20h05min, outras, que às 21h (fica mais redondinho, né?). Falando em versões, atenção, internautas, alguns sites dão a data de nascimento como 17 de outubro, vá lá se saber por quê. Está no site do próprio Fausto, 8 de julho! Fora internado no último domingo – setembro tinha chegado, nada prometedor –, com hemorragia intestinal. O resultado é que entrou em estado comatoso e daí não saiu. Em cinco dias o grave quadro de insuficiência respiratória minou-lhe todas as resistências, se é que alguma havia. Os obituários falam da companheira, a psicanalista Monica Tolipan e de duas filhas, que deixa. A crítica, que nunca lhe deu muita bola, uma hora vai ter de se deparar com três maçudos referenciais não só de nossa época, a de Fausto, mas de várias épocas, uma vez que ele fez uma costura da história do mundo em A 1002ª noite (Bertrand Brasil, 2005). Os outros dois, são, primeiro, À mão esquerda (lançado em 1996, pela Ed. Civilização Brasileira, foi saudado à época como legítimo “romance de geração”, a geração que atravessou os anos 60-70). O terceiro volume a cutucar a fingida (duvido: a ignorância do establismenth, seja ele de que ordem for, inclusive cultural, pela natureza cínica, o faz cego e, assim, amplia-lhe o grau de desconhecimento, sem precisar fingir) é Olympia (Ed. Leitura, 2007), onde ele repete a estrutura cronística-aforística-fabular-colcha de retalhos de A 1002ª noite. Não é fácil acompanhar tais livros tanto pela erudição destilada sem alarde (vire-se, leitor!) quanto pela linguagem sem modos e, ao mesmo tempo, sem forçar a barra para impressionar. Fausto nunca cometeu literatices e nunca fez apenas jornalismo em sua ficção. Soube elevar o jornalismo à categoria de gênero de reflexão e a literatura que praticou sempre fez questão de esfregar sua cara na lama da história da civilização. Passou 40 anos escrevendo loucamente, publicando loucamente, mas como isso se deu a léguas do mundo acadêmico, e, além disso, produzindo ficção um tanto híbrida, tornou-se um lobo uivante (imagem, aliás, de seu blog), cujo saudável perigo – o de expor-nos e às nossas pusilanimidades e preguiças – parecia residir longe de nosso confortável condomínio, de onde saem as páginas que vão compondo a história da literatura que ficará para os futuros estudantes do curso de Letras. Fausto Wolff ainda não está nestas páginas por razões óbvias, extra-literárias. Mas às vezes a morte tem esse paradoxal poder de, mais que ressuscitar, fazer nascer (como a Lima Barreto, entre tantos exemplos) artistas que atingiram a plenitude estética em vida e o reconhecimento, só após a última pá de cimento úmido na catacumba de um cemitério. (06/09/2008)

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

AFAGOS NUM TEMA BONITO E GRAVE

Uma outra ciência

Todavia, o amor – essa verdade que dispensa verdades –, dobra a inteligência, torna-a novamente criança, constrói-se pela paciência, pelo perdão, pela espera, por uma aparente inocência que na verdade é a coragem de avançar pela oferta sem a garantia de receber. Quem ama admite, deserdado, deixar uma herança.


Cuidados

Te conhecer foi o primeiro segundo; te perder foi o segundo segundo; e no terceiro a história começou. Riso fácil, lágrima fácil, perguntas fáceis, respostas fáceis – viver, a teu lado, ficou fácil. Mas viver é difícil – amar num mundo sem amor mais ainda –, e aos poucos uma dúvida, duas dúvidas, dúvidas dúvidas dúvidas: pousaram corvos no nosso colo. Como espantá-los? O amor luta e se perturba, perturbação maior porque amorosa.


Um assunto pra lá de batido

O amor não é assunto que se contente em receber legendas, em ser apenas fruto de comentário. O amor quer realizar-se, e cada ser humano clama por amor como clama de fome e sede.
O amor, como toda grande paixão, convive em si o pecado e o perdão. E possui muitas faces, todas elas intensas e capazes de vestir a máscara da deformação. Portanto, cuidado com o amor! Quando parece amor, muitas vezes não é; quando não parece, é. E estes são apenas dois de seus momentos paradoxais. O amor adora imitar a si mesmo também, posando de ser amor por sê-lo, porém sendo sempre um pouco (e este pouco é muito) diferente.
Às vezes monstro imperturbável, a exigir do amante toda espécie de fogo para alimentá-lo. Às vezes ternura infinita, espécie de comoção dadivosa diante do filho gerado. Às vezes olhar fraterno a ver um espelho frente ao amigo. Às vezes saudade que arranca lágrimas e com elas molha a planta amarga que cresce na distância. Amor... Nos torna corajosos, ridículos, heróis, condenados.
Um perigoso limite separa as várias formas de amar. E é lenta a arte de aprender a ultrapassar esses limites. Como lento é o caminhar por essa vereda tortuosa, cheia de sinais e enganos. O amor ao próximo multiplica-se em tantas variações, que chamar de desejo é certo; chamar de irmandade é certo; chamar de piedade é certo; chamar de elevação do ser, embora pareça uma demasia, também é certo. Incertos são somente os acenos amorosos, que em regra falam uma linguagem que só o amor em sua plenitude sabe decifrar, e o homem sob a força do amor observa perplexo, sem saber se existe uma resposta.


Continuando...

Amor é quando enfim os homens se comunicam plenamente, e as palavras e os gestos agitam-se entre eles mais como espectadores do que tradutores.


Pergunta

Você não passar por aqui? É como se o caminhão do gás, o lixeiro, o carteiro não passassem. É como se essa dor não passasse.


Perseverar

Perseverar é, em última instância, crer. Espécie de fé posta em ação, perseverar é somar a espera de quem acredita com a obra de quem insiste porque sabe que um só dia nem a Deus bastou.


Ascensão

O corpo de Matilde, estendido, rompe com a vazia planura do lençol. Surpreende-me, e a tudo, e o vento soca a vidraça, querendo entrar. Mas sou só eu quem está ali e pode ver. E vejo. Meu pau reage de imediato, feliz. E digo para ele, para mim mesmo, atônito, deslumbrado, e orgulhoso: “Levanta-te, glória minha, levanta-te, saltério e cítara” (Salmos, 56, 9).


Fanatismo

Há uma grave seriedade, uma concentração de fanáticos na hora do sexo. Mesmo não acreditando no parceiro.


Condenação do belo

Livre de toda rejeição, perdeu-se em definitivo.
Escolhido, não pôde escolher-se. E só lhe restava então, paciente – sem nem a desculpa do grito da revolta por ter sido esquecido (ó suprema oportunidade) –, engolir calado o beijo de todos, surdos para as palavras que ele parecia não possuir. (06/09/2008)

VAMOS LER QUINTANA?

Mario Quintana é daqueles nomes que, uma vez transformados em símbolo de uma cultura, dificilmente recuperam para o trânsito habitual das discussões o registro inaugural que gerou tal símbolo. Traduzindo: obra produzida, o artista consagra-se pela via mais fácil da caricatura, e a obra mesma fica à espera de uma leitura que nunca vem.
Quintana virou poema de Manuel Bandeira, de Drummond, de dezenas de outros poetas menos importantes. Virou personagem de si mesmo (todos somos, mas ele mais do que todos), Anjo Malaquias, tríade de poeta-humorista-filósofo, vivendo sempre na remota região das nuvens, parente daquela espécie definida por Julio Cortázar como el gran comedor de mosca, modesta imagem a descrever a distração a serviço da genialidade.
Mas, e a obra? Foi dela que isso tudo veio, e pouco se vai a ela, contentando-se o público a relações amistosas e tímidas tipo “que simpático e divertido velhinho língua-de-trapo!” Lá longe, no tempo, vão se distanciando de nós A rua dos cataventos, Canções, Sapato florido, Espelho mágico e O aprendiz de feiticeiro, seus cinco primeiros livros, pedra inaugural e última de um conjunto lírico que mais tarde ainda daria irretocáveis momentos como Apontamentos de história sobrenatural (1976), porém já totalmente solidificado e auto-suficiente desde 1951 (data da publicação de Espelho mágico).
Prova desse “esquecimento” de leitura efetiva é a afirmação, já em 1978, de Ivan Junqueira, em seu livro À sombra de Orfeu: “A crítica literária brasileira – às vezes estranha ao próprio conceito de crítica – jamais se ocupou como devia desse imenso poeta que é Mario Quintana”. A frase, aliás, é citada logo na abertura de um importante ensaio, Mario Quintana: As faces do feiticeiro, de Paulo Becker, numa co-edição PUC/Editora da UFRGS (1996, comemorando os 90 anos do poeta, se vivo fosse, morto dois anos antes). O volume mapeia propositadamente apenas os cinco livros iniciais do poeta. A tese de Becker, poeta também, é que nesse quinteto original residem essência, forma, gênese, evolução e cristalização da obra de Quintana.
O ensaio, por sua consistência, por suas qualidades tanto de percuciência crítica quanto de método, não só deve ser recomendado, mas sobretudo torna-se inadiável exatamente pelo panorama hoje desenhado – o de um leviano comodismo diante das possibilidades de discussão que os livros do poeta propõem.
Exigido pela pressão de uma lírica apressadamente modernista, cujo valor dos versos pagava tributo (e caro) aos ventos provocadores da época (década de 30), Quintana estreou noutro tom: com A rua dos cataventos, por exemplo, escolheu o soneto, praticamente aposentado desde a virada do século; enveredou para um tipo de simbolismo tardio, só que nada tardio, já que a ele (ritmos lânguidos, intimismo, imagens de uma rica espiritualidade) somou conquistas estéticas posteriores, num claro sincretismo lírico, costurando duas ou mais escolas.
A vida toda tentaram dar-lhe um rótulo, em vão. Não era possível. Extemporâneo, jamais prestou-se ao papel de epígono ou de clone de uma literatura acostumada a ecos e pouco mais que eles. Este o motivo, talvez, do silêncio crítico, da preguiça de análise, da paupérrima bibliografia sobre sua obra. Como classificar Quintana sem lê-lo com a atenção devida, suficiente para se saber que a partir dele uma nova – e única – trilha na poesia brasileira começa?
Num registro clássico, de aparente passadismo, ele incorporou cores, temas, ritmos novos, logrando versos únicos, pessoais (não no plano do restrito, e sim do estilo único). Somou humor, filosofia (sua poesia é basicamente epigramática) e uma melancolia piedosa com o mundo todo e consigo mesmo. Mas, poeta maior, convida a cada linha a desconfiarmos, a reinaugurarmos o mundo, a viajarmos incessantemente ainda que sem armas e bagagens.
Poeta ao desabrigo, se dispõe, naturalmente vestido de ironia. A maior de todas seria ser lembrado, mas não por seus poemas. Evitemos esse crime lendo-o de fato. (03/09/2008)

A REPÚBLICA DE OMBROS LARGOS

Você conhece Arístocles, famoso atleta? Não? Então o apelido dele – que significa “ombros largos” – lhe deve ser bem familiar: Platão (428-348 a.C.). Pois é do autor dos Diálogos (26 capítulos, suma de sua obra) que se fala aqui, no caso de um dos mais célebres deles, A República.

O livro, dividido em dez partes, é uma pequena utopia, escrita entre 384 e 377 a. C. Na construção de um sistema ideal, Platão traça um paralelo político-moral. Para a classe à qual ele destina o poder supremo (magistrados e filósofos), a razão é a palavra-chave; para os que garantirão a segurança dessa república (os guerreiros), a coragem é a marca moral; para aqueles cujas atividades envolvem a produção e o comércio (artesãos, homens de negócios) são destinados os instintos básicos: a sensualidade, os apetites.

Essa utopia é severa. Sisuda, bem-comportada e exige que a educação encaminhe-nos para a bravura antes de tudo. Cuidado com os poetas, como Homero e Hesíodo. Poesia e música devem ser fiscalizadas. É um regime pesado, que oprime os ombros dos cidadãos que acaso sonharem com alguma liberdade (a utopia platônica é no mínimo polêmica, abolindo propriedade, casamento, os filhos sendo afastados das mães e educados pela comunidade; o Estado é o pai e todos os cidadãos formam uma única família).

No quesito educação, o que seria ensinado aos jovens, até os vinte anos, são a agilidade e o brio de um soldado e, por exemplo, em música, marchas militares estimulando a emoção patriótica.

Há contradições nessa utopia. Se os poetas dela foram banidos, Platão escreve como um poeta, e sua filosofia constrói antes por imagens do que por argumentos (sem falar da forma adotada, o diálogo, deliciosamente eficaz num gênero em regra sem sabor). Um dos momentos altos de A República é o livro VII, "A alegoria da caverna", onde prisioneiros numa gruta ignoram o mundo lá fora, confundindo as sombras projetadas no fundo com fatos e coisas reais.

Mas o tema central da obra é a justiça, como chegar a ela, sem a qual todo julgamento é falho e toda realidade fica sob suspeição. (30/08/2008)

A FILOSOFIA DEPOIS DA FILOSOFIA

A obra de Luc Ferry, em seu conjunto, aponta para uma nova filosofia
porque para uma nova função filosófica: não apenas descrever o sentido da vida,
mas achar na existência a sabedoria de melhor aproveitá-la, livre de dogmas.

Luc Ferry não matou Deus. (Quantos já o haviam matado antes!) Menos, ainda, o ressuscitou. Ressuscitou, sim, ao homem, que sempre aspirou ao sagrado. Sempre. Mesmo aqueles, numeroso contingente, que resistiam à idéia de qualquer religião. Religião envolve culto, imagem externa à consciência. O sagrado é um estado pleno no qual mesmo o ateu mais convicto deseja experimentar. O Budismo mostra isso. Luc Ferry recupera tais momentos no pensamento através dos séculos, e, levando questões vitais da filosofia, transfere-as para a vida cotidiana.
Se não se aplicam à vida, são questões meramente retóricas. Evidente: a vida de que fala Ferry é uma vida acima do que tem recebido tal nome, sem merecê-lo. O presente merece – e precisa – da transcendência sem para isso jogar fora conceitos que, aparentemente inoculados de um moralismo vicioso, mereciam apenas uma nova oportunidade. Um novo olhar. Luc Ferry examina, sem nenhuma espécie de a priori, isto é, sem pagar pedágio (o mais caro: o da nossa liberdade) aos que o antecederam pensando as mesmas questões.

Em A sabedoria dos Modernos, que escreveu em conjunto com André Comte-Sponville, em 1997, num sistema ágil de perguntas e respostas que povoam capítulos onde estão setorizadas dez questões para o nosso tempo, Luc Ferry e seu interlocutor exploram a fundo, sem hesitação – e, muito menos, sem retórica desviante –, questões decisivas, diagnosticando nessas questões dois caminhos para a filosofia contemporânea: como ser materialista e como ser humanista, simultaneamente. Óbvio: de tal indagação nascem e se multiplicam, sem cessar (filosofar é a permanência dessa transformação que avança à medida que cada ilusão se esboroa), aspectos elementares que envolvem ética, moral, a liberdade como um mistério, um bem, uma libertação para se chegar aonde a ausência dela não chega: o território multifacetado da vontade, as duas racionalidades, os paradoxos de uma humanização que inclui, inclusive, a crueldade.

Esse livro é o mais amplo e aprofundado estudo (independente da decisiva, quase antagônica – embora convergente –, mediação de Comte-Sponville. Mediação não. Nem Luc nem André se prestam para fazer eco um ao outro. Antes, ao buscar completar o pensamento do co-autor, ampliando-no, provocam-no, tornam o que foi resposta em uma nova pergunta. A sabedoria dos modernos é trabalhar, enfim, com a presença invisível do Absoluto até mesmo no homem precário, e, claro, no nada precário.
Ferry alerta: a filosofia está na moda. Cuidado. Pensar por si mesmo é uma condição que não existe; ou que só vem depois de muita prática e exercício (como em qualquer área) através dos principais pensadores dos últimos 2.000 anos. Não se trata de erudição. 90% pode ser deixado de lado. Mas a amplitude desses 10% constitui uma bibliografia sem a qual nossa voz não domina o idioma que poderia nos traduzir.


Sucesso para mais de 15 minutos

O que é uma vida bem-sucedida? – Ensaio, publicado cinco anos depois, ainda mostra um Luc Ferry que, embora se aproxime aos poucos do diálogo com uma maioria, não dispensa os referenciais filosóficos que tornam o pensar como gênero obra para poucos. Os temas não são áridos. Dizem respeito a qualquer um, intelectual ou vendedor de sapatos. A diferença entre “vida boa” e “vida bem-sucedida”. Um passeio, em linguagem condutora, isto é, sem o peso excessivo de uma redação que parece mais de compêndio (e que Ferry tanto critica) do que de um homem falando a outro. Naturalmente, de forma profunda, com exigências de um texto bem-escrito e alguma leitura anterior, a fortalecer a recepção.

Mas isso é o mínimo. E desse mínimo o autor parte para, não o máximo (quantitativo), mas o melhor possível. A confusão entre a performance (exigência social permanente, já instituída no coração da família) e a sabedoria em viver bem. Muito além do êxito, reflexo externo de ações, e provisório, o homem deseja, no fundo inconfessável “tão-somente” o bem-estar – difícil de definir, uma vez que é composto de inúmeros condicionantes, internos e externos. Luc Ferry o define, como filósofo do presente: uma frágil felicidade, que vem e vai, a confirmar, em frações separadas no tempo (nos diversos ciclos que ao homem é dado enfrentar), uma trajetória pessoal que não tem razão alguma para afundar.


Deus à nossa imagem e semelhança

Talvez o livro mais radical de Ferry seja O Homem-Deus ou O sentido da vida, lançado há um ano. A religião não perdeu por esperar. Se houve, através da história da Igreja, a humanização do divino, através de um Cristo misturado à multidão, morto entre ladrões, como um qualquer, há agora a imperiosa necessidade de divinizar o humano. O homem vive, desta forma, a confusão do novo estágio, onde o amor é sua experiência concreta de transcendência. Onde a morte é a presença do não-sentido. O sagrado até então conhecido se esvai. A vida tem prazo curto, e pede, então, mais do homem. E o confuso território dessas duas imagens – um Deus já cansado e um Homem que se instaura, enfim, como entidade suprema de si mesmo – é o espaço aberto onde uma nova humanização pode florescer e um sentido para a vida pode ser revelado: um sentido onde o principal incluído seja o próprio homem. Talvez o único.

Sucesso de vendas na França (terra dos filósofos, principalmente após a II Grande Guerra), Aprender a viver – Filosofia para os novos tempos (best-seller no Brasil por seis meses em 2007) é uma pequena e grande história do pensamento. Pequena por eleger apenas cinco momentos culminantes na história das idéias; grande porque Ferry traduz o que parecia intraduzível. Aos apressados é bom avisar: não se trata de um O mundo de Sofia (Jostein Garder) para adultos. A começar, pelo texto-síntese de Ferry, ao contrário do de Garder, que é arrastado. Depois, o dinamarquês fez ficção; Ferry faz ensaio.

E por quê, perguntarão muitos, ensaio de fundo filosófico terá tido tal êxito comercial? Porque 1) a filosofia hoje é uma resposta eficaz a apelos lamentáveis de fundo místico ou de auto-ajuda; 2) Luc Ferry mostra que filosofar não necessita de ferramentas inacessíveis ao dia-a-dia. Pelo contrário: o francês convence público em geral e críticos mais exigentes de que o pensamento acerca das questões mais cruciais e milenares, sobretudo se acompanhadas da parceria de gênios que em vinte séculos se debruçaram com método e paciência sobre elas, nos ajudam a compreender os temas mais comezinhos e os mais espinhosos de nossa vida. Tanto um caso (o do apelo místico) como outro (o da linguagem inacessível) serão desmentidos. Para melhoria – pela iluminação sem dogmas nem rigores insustentáveis – da existência do homem. (27/08/2008)

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Obras de Luc Ferry lançadas no Brasil

A nova ordem ecológica: a árvore, o animal e o homem. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Editora Ensaio, 1994.

A sabedoria dos modernos, em parceria com André Comte-Sponville. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Livraria e Editora Martins Fontes, 1999.

O que é uma vida bem-sucedida? – Ensaios. Tradução de Karina Jannini. Difel, 2004.

Aprender a viver – Filosofia para os novos tempos. Tradução de Vera Lúcia dos Reis. Editora objetiva, 2007.

O Homem-Deus ou O sentido da vida. Tradução de Jorge Bastos. Difel, 2007.

sábado, 23 de agosto de 2008

A MORTE QUE SALVA

Morre fisicamente o escritor, célebre pela qualidade de sua obra. Imagina-se que a posteridade lhe será grata, reconhecendo seus méritos e povoando as décadas vindouras de ecos do aplauso que ele conheceu em vida. Entretanto, um professor de literatura mais afoito burla a vigilância precária da viúva e arranca das mãos hesitantes da mulher páginas que o autor desejaria enterrar consigo. Está feito o crime.

Um mês depois de morto, sai em edição de luxo a primeira besteira no conjunto da obra do autor, até então cuidadíssima. Quer o tal professor, a exemplo do mau-exemplo Max Brod, impedir que caia no esquecimento o que o autor quis assim. Max Brod teve sorte, o Kafka inédito de fato valia a pena, mas foi uma exceção, a regra é o defunto ter razão, e o que deixou sem a luz do público de fato merecer tal escuridão. Fizeram isso com Fernando Pessoa depois de morto, cujo “baú inesgotável” de obras-primas efetivamente deu obras-primas, mas também muita bobagem, como O Livro do desassossego, que nunca deveria receber a atenção que a maioria do material escondido mereceu. Com Pessoa tinha um atenuante, como com Kafka: o autor foi exigente além da sensatez, e realmente escondeu o ouro. Mas o normal é o autor esconder aquilo que não desejaria mesmo que lessem.

Feito este prólogo, um pedido: respeitem a memória do morto – ele pede silêncio além do que disse em vida. Toda palavra nova, trazida ao palco postumamente, é som distorcido, é sentido extraviado, é um homem empalhado forçado a pular o carnaval. Cinco anos depois do funeral, um leitor menos informado acerca do ocorrido com nosso impotente e infeliz defunto, depois de ler cinco livros póstumos (a média com o coitado foi de uma exumação por ano), exclamará, desconsolado: “mas esse cara não é grande coisa! Engraçado, quando vivo festejavam-no com tanto empenho...”

O morto quer que o lembrem de quando era vivo, e escrevia. E, ao escrever, escolhia o que era melhor, o que funcionava, e isso ele tornava público; o resto, ele deletava o arquivo, queimava os
papéis, rasgava (e até aí salvava-se, quase sem saber), ou simplesmente (ó imprudência!) deixa adormecido numa gaveta. Este último procedimento – delicadeza do autor com a imperfeição de seu trabalho – revelava um método simples, cômodo, e, enquanto vivo, eficaz. Alguma parcela daquele equívoco talvez servisse para ser aproveitada adiante. Só que adiante estava também a morte, e, morto, ele não poderia arbitrar sobre o percentual aproveitável. Ficava 100% do insuficiente, quando não do fiasco, para cair nas mãos das carpideiras de plantão. Chorando sua morte, insistem em revivê-lo pelo que não pretendeu dizer, pelo que, em última instância, não disse, esfregando ante nossos olhos o texto arrependido.

Agora o desfecho deste reconhecimento e deste restabelecimento da justiça: evitemos de imputar ao autor, hoje sem chance de interferir sobre os desígnios de sua obra, a responsabilidade por um crime cujo impulso ele reconheceu porém cuja realização ele não autorizou. Paremos de acrescentar aos seus títulos – momentos que ele julgou raros, extraordinários, e, por isso, exemplares – quaisquer pedaços de experiências que o próprio ato de experimentar esgotou, trechos ordinários que o todo da obra selecionada dispensa, momentos menos felizes cuja derrota de execução já basta, quanto mais estender essa derrota aos pósteros.

Morte feliz a daquele escritor cujo último livro publicado em vida é, sim, o último livro de sua bibliografia. E os seguintes não passem de homenagens de terceiros, clubes de leitores, associação de críticos, enfim, essa outra espécie de desdobramento – cá pra nós, na maioria lamentável –, mas pelo menos com a honestidade de ostentar a assinatura de gente viva que pode ser responsabilizada pelos próprios erros. Morto o autor, leva para o túmulo a paz de enfim ter descansado. Isso quer dizer simplesmente que agora não escreverá mais. Nunca mais. E não publicará mais. Nunca mais. O que já estava, ficou. O que não aconteceu com ele, não pode mais
acontecer. A obra precisa ser dele para depois ser nossa. (23/08/2008)

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

ONZE PASSOS PARA PAIS INCENTIVAREM SEUS FILHOS A LER

Tudo começa, naturalmente, na infância. É preciso ler, ler muito, para poder escrever.
A seguir, alguns passos para o incentivo à leitura, quando o leitor ainda está verde
e recém dá seus primeiros passos.


1. A faixa etária adequada para o contato inicial com livros se dá entre os dois e os cinco anos.

2. É importante que o professor indique o livro correspondente à idade e à capacidade de concentração da criança ou que os pais avaliem a adequação desse material.

3. A leitura deve transcorrer em um ambiente calmo, sem interferências ou ruídos (rádio, televisão etc.). O adulto deve assumir o papel do narrador da história, familiarizando assim o pequeno “leitor” com o autor que apresenta a narrativa.

4. É fundamental que o adulto que está apresentando o livro à criança faça comentários sobre a aparência do volume, sobre as figuras, o formato, talvez até contando algum fato da vida do autor. Enfim, é decisivo mostrar à criança interesse em folhear o livro, demonstrando que ali, naquelas páginas, muita coisa se pode descobrir e se quer descobrir. E na hora de ler, faça-o dramatizando, com emoção escancarada. Tudo para que jamais o ato da leitura pareça algo chato ou desinteressante.

5. Se a criança quiser tomar o livro de suas mãos e folheá-lo devagar, de qualquer jeito, “erradamente”, nenhum problema. Deixe. Não se deve ter pressa, e esse processo de convivência com o livro, no início, vai ser assim mesmo.

6. Cada ilustração e cada palavra devem ser mostradas. Uma dúvida, uma hesitação? Pare, explique, volte atrás. É decisivo não perder o fio da meada. Compreender direitinho a história para gostar dela.

7. A criatividade da criança deve ser encorajada. Antes de cada cena seria interessante perguntar o que ela acha que vai acontecer.

8. O ato da leitura – nessa fase inicial – deve ser em conjunto. É uma ótima oportunidade para pais e filhos se sentirem juntos, unidos. Manifestando carinho, calor, o adulto envolve afetivamente a criança e a faz lembrar desse momento – a leitura – como um instante prazeroso.

9. Se a criança reagir negativamente ou não quiser terminar o livro, é importante deixar que isso aconteça. O livro não pode ser uma obrigação, uma sentença, um castigo.

10. Terminado o livro, deve-se conversar com a criança sobre a história lida. Pede-se que a criança conte o que acabou de ser lido. Pode-se ir escrevendo a história, agora contada pela criança, observando o nexo entre as partes, a correta ligação entre as diversas cenas do enredo. Com isso, a criança vai aprendendo que o pensamento tem uma estrutura com começo, meio e fim.

11. Não é raro a criança solicitar que se leia mais de uma vez a mesma história. Satisfaça-a, sem maiores preocupações quanto ao retorno, repetidas vezes, ao mesmo livro. Isso serve para fixar uma identificação com determinada trama, determinado estilo, determinado assunto. Não esquecer, entretanto, de oferecer livros bem diferentes, comparando-os, indicando assim a diversidade de opções de leitura. (20/08/2008)

domingo, 17 de agosto de 2008

ANIVERSARIANTES

Hoje, 17 de agosto, é uma data e tanto. Ao menos para mim. Nascidos neste dia. Para começar, um herói bem ao estilo épico, David Crokett (1786), a leste do Tennessee, EUA, soldado, caçador e político do Velho Oeste. O poeta Fagundes Varela (1841), na Fazenda Santa Rita, Rio Claro, Rio de Janeiro. Simplesmente escreveu um dos poemas da língua, “Cântico do calvário”. Do trágico ao cômico (a demonstrar que os signos nada sabem): May West (1893), em Nova York. Atriz e cantora, supra-sumo da irreverência, uma das mulheres com mais humor que a história registrou (junto com outra norte-americana, Dorothy Parker). Pensando em cinema, que tal um dos maiores atores de todos os tempos (para o meu gosto, Taxi driver, Touro indomável, Cabo do medo e Tempo de despertar, cá pra nós!), Robert de Niro, em 1943, em Nova York, o primeiro vivo da lista. Tem um monte aí que eu poderia pôr só para constar. Mas o derradeiro nome não merece: é gente que só é citável pela vi-si-bi-li-da-de, os conhecidos bergamota-de-amostra, e não exatamente por algum talento que lhes conceda a imposição gerada por alguma importância que possam ter (Hélio Costa, Elba Ramalho, Zezé de Camargo... socorro!). Mas tem mais, gente que é gente além da conta, pelo que contam e cantam: Ed Motta (1971), das mais inacreditáveis vozes surgidas nos últimos 25 anos no País (desde os 19 anos dele). E uma voz mais jovem ainda que, sem precisar emitir notas em concentrada busca por uma melodia, hoje completa 24 anos. Voz que me embala num simples telefonema: a de minha filha Maria. Tá na história, pra quem me lê, e que sabe que a história é muito descuidada. Será comigo também. Mas eu não serei. E coloco o nome de Maria Bentancur ao lado de todos esses nomes citados, sem nenhuma pieguice, e com todo o compromisso do mundo. Os melhores. O acaso, de alguma forma, os reúne. E a mim bastaria May West contando piadas sacanas na festa de Maria, e De Niro fazendo uma performance para ela. Não vai dar, tá certo. Então vou eu lá, com aquela precariedade de todo pai, querendo ser desbravador, ator, cantor, poeta, para tentar dizer do seu amor. Mas o pai não é tudo isso. Não é nada disso. E, nessa hora, somente, e essencialmente, é pai. Mas o afeto – essa forma imprevisível de expressão –, ainda bem, acaba sempre dando o seu recado. (17/08/2008)

PS.: Na quarta-feira, dia 13, tivemos o aniversário de um dos grande escritores infanto-juvenis do Brasil (embora pratique outros gêneros), Ernani Ssó. Não saiu nenhuma nota na imprensa, claro. O cara é pra lá de bom e não faz média, principalmente com a arte que pratica e com os críticos que poderiam lê-lo com muito proveito. No dia seguinte, 14, guria ainda, pouco mais crescida que minha filha, aniversariou uma das jornalistas mais inquietas e criativas que conheço, um tanto extraviada pelo mercado acomodado, isto é, sem informação alguma de onde de fato está o ouro. Seu nome: Bela Figueiredo. Bom nome, ótimo texto, péssimo mercado. Abração com o carinho nascido de tanto admirá-los, gente! Já quanto às editorias (de editoras de livro, imprensa etc.), que reaprendam a ler, inclusive currículos.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

O BRASIL CORRE PARA TRÁS

Vicente Lenilson, nosso maior atleta nos 100m rasos, a mais nobre das modalidades olímpicas, neste 15 de agosto, numa das eliminatórias – que o derrubou– para classificação à prova final (que assistirá de algum lugar longe da pista), levou 10 segundos e 26 décimos para percorrer a distância que já baixou dos 10 segundos para os 9 há exatos 40 anos. O atual recorde mundial pertence ao jamaicano Usain Bolt, com 9seg e 72 décimos, marca atingida no começo de junho último. Nesta prova em que Lenilson correu como um Gordini ou voou como um 14-Bis, 7o colocado ao final, o mesmo Bolt, mais lento desta vez (9segundos e 92 décimos), fez o melhor tempo.

Lenilson, natural de Currais Novos, RN, 31 anos, 1,66m (baixinho o moço), com a velocidade conquistada hoje – o melhor dos brasileiros na modalidade, nestes jogos olímpicos –, superaria com folgados 14 décimos de segundo ao alemão Armin Hary e seu modesto tempo de10”30 na Olimpíada de Roma, em 1960, há 48 anos. Faltavam ainda 17 anos para o futuro atleta potiguar nascer. Nascimento demorado esse. (16/08/2008)

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

"CATATAU" EM CATUÍPE

Qual era a liberdade criadora com que nos deparávamos naqueles idos de 1975, quando não havia liberdade política e a arte não podia dialogar à vontade? Quase nenhuma, embora ao artista a liberdade seja um bem comum inalienável e ele a use de todas as formas, sobretudo as imperceptíveis pelo vigia da hora. Assim, a vanguarda, mais que um experimento, era uma obrigação. E nesse ambiente vigiado as mentes experenciavam viagens mais longas, bem mais longas, que nossos rotos sapatos de Carlitos.
A estrada empoeirada por bombas de gás lacrimogênio quando muito jovem com cara de protesto se reunia precisava ser asfaltada por uma civilidade construída sobre cultura e liberdade. Gente com longas barbas de pose de hippie trilhava esse caminho, mas era necessário mais que uma performática pose de Walt Whitman; era fundamental dar munição verbal a si mesmo, saltando sobre os muros de um discurso vigiado. Paulo Leminski foi um sujeito que teve essa cara e essa coragem alimentadas por dois milênios de poética, desde a de Aristóteles.
Daí que o rebelde não se fez de fúria pura e juvenil e sim transgrediu autorizado pela própria tradição que, enciclopédica, vence o que usa seu nome mas é apenas cânone constituinte da hora política severa.
Não faz muito tempo perdemos esse transgressor, o Leminski, 45 aninhos ainda, na flor da idade, mas com uma produção de quem passou dos 60. Foi em 1989 e muita birita derrubou o poeta-contista-ensaísta multimídia paranaense. Uns 15 volumes desaforados foram seu testamento, sobretudo sua obra-prima, Catatau, uma prosa experimental com cara de romance, mas corpo de poema em prosa. Leminski se foi mas ficou uma legião de leitores formada às margens de seu texto coleante, humorado, inventivo.
Falar em invenção parece obviedade quando se trata de arte, mas em Leminski isso era o ponto de partida e de chegada. Homem da publicidade, vivia de antena ligada no que o mercado pedia sem trair o que ele próprio, Leminski, pedia a si mesmo, e afora o Catatau, nenhum texto seu ia fechar a cara para o público. Assim, promoveu a convergência entre o complexo das idéias e o simples da forma, em textos que iam da piada à crônica, transitando em meio à região afável de uma espécie de circo das letras (“A palmeira estremece / palmas pra ela, / que ela merece”).


O começo

Mas isso foi o fim. Carreira interrompida pela doença (tinha tantos planos, conforme me contou ao telefone 15 dias antes de morrer: “vou partir pro conto, mas com calma, que tu estás na terra do Scliar”; “ainda estou me devendo um romance”), cada vez mais ia aproximando uma curiosidade insaciável que o fazia flertar com meia dúzia de línguas – consta que até egípcio ele andava estudando – com um registro verbal dessa curiosidade capaz de traduzir o mais remoto e o mais transcendental para a fala mais cotidiana possível.
Leminski queria o difícil tornado em fácil. Queria o mais profundo boiando na superfície, a nossa espera, leitores de sorte, alfabetizados no idioma desse paranaense.
Embora seu começo tenha pegado o monstro a unha. Catatau (1975) “refaz” o percurso dos holandeses no Brasil, que trazem René Descartes na bagagem e o filósofo do mais supremo racionalismo mergulha na febre da selva tropical (uma hipótese, claro), na selvageria de um povoamento que não se fez com a liberdade essencial que se respirava na Holanda de então (país mais livre da Europa no século XVII, e para onde Descartes e Spinoza, por exemplo, tinham se mudado).
Catatau é – hoje cabe chamá-lo assim, devido à fluidez dos gêneros literários – um romance, um monólogo, num ritmo alucinante de fluxo de consciência, de um Descartes perdido e achando um país que poderia ter ido por outro caminho. Mas é também o “espírito” do texto se manifestando, evocado pelas inúmeras entidades que o proclamam e por uma força suprema em ressurgir, ou melhor, permanecer enquanto sente que vai – sua chama, sua alma, sua força, sua luz, sua palavra – apagando-se ou confundindo-se já sem nenhuma identidade.
Foram duas décadas e meia em que a parte mais desenvolvida do Brasil esteve nas mãos da Companhia das Índias Ocidentais, capitaneadas por Maurício de Nassau, que para cá trouxe (desta vez, historicamente falando, de verdade) sábios, pintores, matemáticos, cientistas, gente capaz de conviver com alemães, polacos, índios, negros e brancos em paz e em liberdade de credo, não importando que houvesse entre eles católicos, protestantes, judeus etc.
Recife/Olinda foi a primeira experiência (exitosa) cosmopolita do País. Isso é História. Depois os holandeses, que viam no Brasil não apenas um paraíso físico a se explorar com fins econômicos, mas um mundo de fato novo, com fauna e flora exóticas, uma terra adequadamente chamada por eles de Vrijburg (pronúncia: “fraiberg”, cidade livre), foram derrotados pelos senhores de engenho luso-brasileiros que preferiram o feudo ao capitalismo e à liberdade. “Em Guararapes, o Brasil selou seu destino de ser nação periférica, dependente, lusitanamente condenada a viver o passado dos outros” escreveu Leminski num artigo póstumo, publicado no já extinto Nicolau.
No livro, um “catatau” de coisas (idiomas e dialetos, civilização e barbárie, conceitos, imagens, fatos da história, da ciência, das artes, plantas, reais e imaginárias, bichos, reais e imaginários, pessoas, reais e imaginárias, palavras, reais e imaginárias, muitas se entredevorando, num recurso usado por Guimarães Rosa entre nós e por James Joyce na Irlanda) é apresentado num esforço entre lírico e épico de tomar um território, habitá-lo e, por fim, compreendê-lo.
A última intenção é a que não fica.
Descartes/Nassau/a Voz que Fala (e que falha) com os ouvidos livres a todos os sons que se encontram numa pororoca lingüística naufraga no próprio discurso que monta. Monta? O discurso é que monta nele e em nós, leitores, atordoados da primeira à última página, levados pela correnteza, talvez em pleno mar já, longe do Brasil que não achamos.
Do Brasil que não se achou.
Leminski soube achá-lo. Precisou de um Catatau, esforço hercúleo.


PS.: Catuípe é uma cidadezinha do interior do RS onde, durante uma semana, revisei as últimas provas da edição até agora definitiva do livro, que saiu pela Sulina dois meses após a morte do autor. Leminski já tinha feito duas revisões e me pediu: “lê mais uma vez, sempre aparece uma besteira, ainda mais nesse aí.” Peguei o livro e fui me esconder numa cidade de 20.000 mil habitantes a 300 quilômetros da sede da editora. Voltei sete dias depois sem nada anotado. Queria logo que os fotolitos ficassem prontos. Ficaram em três dias. Que fossem pra gráfica. Foram no dia seguinte. E que o livro ficasse pronto. Ficou mas o autor foi embora antes. (13/08/2008)

sábado, 9 de agosto de 2008

MISTÉRIOS DA CRIAÇÃO LITERÁRIA 10


Quem não gosta de descobrir? Quem pode descobrir se não vê? Quem pode ver se não escuta? Quem pode escutar se não fala? Quem pode falar se não lê?
Na leitura está o caminho de uma série de mistérios. Continuamos aqui uma série sobre os mistérios da escrita criativa, da criação literária. Criação que nos ajuda a criarmo-nos enquanto seres cheios de mistérios.

X

A seguir uma pequena morfologia do artista. O que o constitui. O que o nega. O que o insinua. O que o anuncia. O que o ameaça. O que o salva.

O que é um artista? Alguém que tenta ser uma espécie de espelho do mundo, espelho no qual se refletem a vida e os seres que a vivem ou tentam vivê-la.
O que é um artista? Alguém que busca, por meio de tintas e telas (se é pintor), instrumentos musicais (se é compositor), palavras (se é escritor) recompor a existência humana e seus significados.
O que é um artista, afinal de contas? Para explicar isso direito milhares de livros foram escritos, milhares de artistas deram seu depoimento, e no entanto a resposta não é fácil nem é uma só.
É necessário, em primeiro lugar, saber que tipo de artista estamos falando. Por exemplo, um pintor: deve ter olhos. Um músico: deve ter ouvidos. E um escritor: um ator. Isso mesmo, um ator.
Um escritor é um homem que deseja “pintar” com palavras o que vê. Um homem que “canta” (se é um poeta) com palavras o que escuta. Um homem que procura, como se fosse um ator, vestir a pele da humanidade inteira (de um macho adulto, de uma mulher, de uma criança, de um velho) e com essa multidão de papéis que interpreta, atingir a voz e as verdades que servem para ele e para os que o lêem.
Um escritor sabe que uma boa história necessita de bons personagens. Bons personagens são marcantes, têm personalidade, falam de uma forma especial, como se o que dizem formasse um desenho único, irrepetível: o desenho de sua alma. Bons personagens possuem um modo original e próprio de falar. Suas frases, suas expressões, seu vocabulário, e também seus gestos, seu comportamento, suas roupas, suas manias, muitas de suas características, enfim, somam-se para compor um perfil que deixa fundas marcas no leitor, que impressiona, que vale como uma espécie de modelo humano exemplar.
Mesmo que esse modelo não seja exemplar, mesmo que se trate de um ser comum, de uma pessoa vulgar, sem qualidades, sem beleza, sem importância. A miséria – o drama – de sua desimportância constituem ótimo material literário.
Grande é o escritor que saiba “repetir” de forma convincente alguém que o leitor identifique (como a um vizinho, um parente, ou mesmo um desconhecido), alguém que o leitor reconheça como plausível, ou seja, verossímil. “Esse tipo de pessoa eu conheço” diria o leitor diante da personagem criada. Êxito do autor.Ou então, “que tipo mais extraordinário!” Isso nos casos de exceção, que combina mais com aqueles escritores capazes de criar gente que sintetiza o drama do homem diante dos mistérios da existência. Figuras cujo modelo não faz parte da nossa família (se fizesse, já tinha sido expulso). Figuras que julgamos únicas porque não lhes conhecemos a síntese senão ali mesmo, na obra.

Criar um indivíduo, tomando todos os cuidados, observando cada mínimo detalhe na descrição, nos diálogos, fixar um tipo de pessoa a partir de seus hábitos, do tom de sua voz, do jeito neurótico como passa a mão repetidas vezes pelo cabelo, ou como grita desnecessariamente, ou como pensa, sim, principalmente como pensa.
Um homem são suas idéias.
E, antes de que as examinemos, um homem é a coragem de pensar ou o medo de pensar. Um homem que tema tanto viver, um fraco, e que por isso não ouse elevar seu espírito tão alto, ainda assim é um homem – uma vítima de si mesmo –, e interpretá-lo é um trabalho rigoroso, complexo, e tanto o ator quanto o escritor são chamados a fazê-lo.
O escritor apresenta-se, muitas vezes – a maioria delas, inclusive –, sem ter sido chamado. Um viciado cometendo excesso, mas excessos que revelam nossa verdade humana (portanto, nossa humanidade), e um vício que se apóia em duas dependências: a beleza e a verdade.
O escritor denuncia. Transforma (sempre em algo maior). Cria, onde antes havia, se não o vazio, ao menos o insuficiente.
Ele é o fruto dourado de uma terra (quando sem arte) estéril. E brota. Ou faz brotar.
Sem ele, sem sua obra, é o mundo cego, surdo, mudo.
É o mundo uma dimensão plana, exígua, sem fundo.
É mundo, sim, mas não habitável.
O artista, qualquer que seja sua ferramenta (neste caso estamos falando do escritor), torna o mundo real mais legível. É como se, sem ele, a realidade fosse intraduzível, e, de alguma forma, invisível a si mesma.
Nesse sentido, o escritor, é sem dúvida, um deus. Só depois dele o mundo, enfim totalmente criado, está pronto para a confissão.
Como um deus, porém, solitário, essa confissão só pode vir dele. Os homens que ele tenta salvar estão calados. Ou perderam-se na babel de palavras. Por isso mesmo ele fala por eles. (09/08/2008)

MISTÉRIOS DA CRIAÇÃO LITERÁRIA 9


Quem não gosta de descobrir? Quem pode descobrir se não vê? Quem pode ver se não escuta? Quem pode escutar se não fala? Quem pode falar se não lê?
Na leitura está o caminho de uma série de mistérios. Continuamos aqui uma série sobre os mistérios da escrita criativa, da criação literária. Criação que nos ajuda a criarmo-nos enquanto seres cheios de mistérios.

IX


A arte é uma das tantas respostas para a dúvida. E não só para a dúvida. Mas todo artista é, antes de tudo, ou simultaneamente, um filósofo. O que é um filósofo?

Uma brevíssima história do espírito

Entre as milhares de formas de vida animal no planeta, o homem é a única com inteligência capaz de prodígios. Um desses prodígios é pensar o universo à sua volta. O homem é o único animal que pensa.
Os demais animais aceitam o mundo como ele é, sem procurar alterar nada. A sua atividade, mesmo intelectual (a formiga, a abelha ou o castor são hábeis artesões, engenheiros e matemáticos) é essencialmente prática. O homem não restringe seu raciocínio somente à função utilitária deste. Vai além: constrói mentalmente obras cujo destino é apenas mental, ou seja, com utilidade teórica e não, prática.
Se o reino da matéria é o único reino que as demais formas vivas reconhecem, o do espírito oferece uma porta que só o homem pode abrir.
Há homens que, infelizmente, raramente abrem essa porta. Por medo. Por insegurança. Por hipocrisia. Por ignorância. Por falta de liberdade. Por pobreza.
Outros a abrem, mas só um pouquinho, deixando ver através da fresta uma pálida noção do espetáculo que há lá dentro.
A inteligência humana não tem limites, e abrir a porta do espírito é apostar tudo na extraordinária força de nossa mente.
Essa aposta, como toda aposta, incorre em riscos, em erros, mas provavelmente acabará encontrando o maior dos tesouros: a verdade.
Pensar é uma aventura inenarrável. Pensar é viver em dobro. Pensar é provar por que somos superiores ao gato, ao cachorro, ao cavalo.
Pensar é descobrir.
Pensar é ver além dos olhos. Pensar é escutar além dos ouvidos. Pensar é falar além da boca. Pensar é multiplicar.
Pensar é enriquecer.
Pensar é ganhar confiança. Pensar é amadurecer. Pensar é conquistar.
Pensar é viver, viver mesmo.
Um homem que não pensa de fato não é um homem por inteiro, é um homem pela metade. E de um homem pela metade não se pode dizer que viva.
O pensamento conduz às respostas que precisamos para entender tudo o que acontece.
O pensamento também conduz a novas perguntas, que com mais pensamento nos levarão a novas respostas.
Quanto mais perguntas, melhores respostas. Isso porque se as dúvidas se multiplicaram, satisfazê-las exigiu mais e melhores argumentos.
É uma ilusão pensar-se que a criança é um eterno inocente.
Com três, quatro aninhos de idade é comum fazerem indagações, cobrando-nos a toda hora uma resposta satisfatória acerca da origem das coisas, do porquê de tudo ser como é.
Ou seja: já nascemos filósofos.
A curiosidade é inerente ao homem. O ser humano é o único animal da face da Terra que se faz perguntas.
Que se admira. Que se espanta.
Que não consegue dormir com uma dúvida martelando em sua cabeça.
Mas a atividade do espírito não é privilégio dos filósofos. É do homem em geral, embora nem todos os homens possam ser chamados de pensadores.
A origem da palavra filosofia vem do grego, e quer dizer “amor à sabedoria”.
Mas amor à sabedoria têm também os cientistas e os inventores, que buscam através do raciocínio lógico não uma construção puramente mental, como os filósofos, mas de aplicação imediatamente prática. Se os filósofos vivem à procura de propor questões e respondê-las, os cientistas e inventores vivem à procura de soluções concretas para problemas concretos.

E os artistas, eles não têm amor à sabedoria?
Evidente que sim.
Os escritores, os músicos e os pintores vêm a sabedoria por outro ângulo, não exatamente o da verdade, mas o da beleza.
Para eles a verdade não é nada sem a beleza.
É na apaixonada satisfação do gosto através da criação estética que eles atingem o ponto mais alto de suas vidas: a conquista do belo.
O belo é um conceito complicado, difícil de se traduzir, e para chegar a ele é necessário muita transpiração e muita inspiração.
A obra de arte anseia tocar a perfeição, como um amante quer tocar o ser amado. Mas o artista teme fazer o papel exatamente de um amante, apaixonado por algo que só ele reconhece como belo.
O amante tem todas as desculpas do mundo. Sobretudo porque seu objeto desejado tem um só propósito: satisfazê-lo e fazer-lhe companhia.
Já o artista, ao contrário, quer compartilhar com o mundo sua experiência de maravilhamento, e para isso deve fazer com que o mundo também se apaixone.

Assim, filósofos, cientistas, inventores, artistas – todos fazem do pensamento o que um atleta faz do corpo: seu instrumento incansável.
A um corpo – já que falamos em atleta numa época em que o culto ao corpo está muito popularizado – é fundamental cultivar, isto é, malhar, alimentar, cuidar. Por que com um cérebro seria diferente?
Uma mente que não se exija o máximo é uma espécie de corpo indolente, sedentário. Um cérebro que não se exercite, não faz com que as ligações entre os bilhões de neurônios se desdobrem em novos milhões de ligações, nunca chegando a conclusões – e dúvidas – novas, originais, fortes.
Somos uma máquina, sem nenhuma dúvida, e uma máquina precisa de reparos e de manutenção.
Parada, ela estraga.
Em movimento, pode então mostrar toda sua serventia e poder.
Nossa cabeça necessita, exige combustível. Trocando em miúdos, informação. Com mais dados informados, melhor ela processa os que possui. Seu percurso vai além, acelera e cresce em fôlego, em alcance. Chega a lugares – a idéias – que nem sonhou antes, quando ignorava o que agora sabe. (09/08/2008)