domingo, 14 de setembro de 2008

ARESTAS, APARAS, ARTE

Cuidado com certas modéstias

Modéstia, em alguns casos, é talento modesto.


Advertência

Obra que é obra não tem espelho. 1) Não pode ser imitada; 2) O próprio autor, ao buscar repeti-la, fracassa. E só lhe resta então partir para algo inteiramente novo. Aliás, por fazer exatamente isto é que ele destrói qualquer possibilidade de espelho e constrói a obra. Abandona-se a cada livro, órfão de si mesmo; e diante do espelho desejado (fácil e resumidor) nada o reflete, condenado como um vampiro que deve beber o sangue de todos, mas jamais o seu.


Legado

Anos e anos tentando, e fracassando como um miserável sem sol. A obra não lhe vinha, não de forma aceitável. Aliás, vinha-lhe a obra, sim, mas em forma de condenação: sua derrota cotidiana, o peso terrível de acumular fracassos. Faltava-lhe, talvez menos que engenho, paciência. Sua vida tinha sido até então aquela marca inapagável do insuficiente. E perto dele só ficavam os que não desejam obra alguma, os que aceitavam o silêncio vazio.
Até o dia em que de repente ele achou a direção certa, e fez o que sempre sonhou, e acertou, ah, acertou, sem nenhuma dúvida acertou. E quis ficar quieto, quando terminou de criar, abraçado a um resto de rancor feliz por enfim ter acertado. Imaginou finalmente pertencer-se.
Porém, o primeiro homem que passou por perto teve a atenção despertada pela obra, e interessou-se, e logo outro, e outro, e outro. E em pouco tempo muitos estavam querendo aquilo para eles. E pegaram o que ele achava que lhe pertencia. E, antes mesmo de transformarem a obra em outra coisa (ele já o pressentia), levaram-na para bem longe. E só lhe restou começar tudo de novo, órfão do que criara, reiniciando o doloroso ritual para que nascesse outro filho ou obra, que também lhe seria arrancado, se se fizesse atraente, e deformado bem longe dos seus braços.


Consagrados tentam (em vão) ler os novos

Os jovens escritores, inseguros, carentes, afoitos, não desejam ler os mais velhos, experientes e consagrados escritores. Não desejam mas deveriam. Ao contrário, querem que os maduros empreguem seu pouco tempo em ler suas experiências, suas tentativas, suas promessas. Os escritores maduros, por sua vez, esforçam-se para achar tempo para ler os que estão começando. Os jovens deveriam poupar-lhes tempo, ao invés de roubar-lhes a preciosa e rara disponibilidade. E deveriam, eles sim, jovens, passar a maior parte do seu tempo lendo aqueles que deixaram de ser jovens há muito. Mas quem está começando quer mesmo é mostrar-se, ao invés de ver. E quem é visto não precisa mostrar-se.


Problemas de geografia

Melhor ser um escritor brasileiro mais ou menos do que um maravilhoso escritor sul-rio-grandense. (10/09/2008)

3 comentários:

Anônimo disse...

Bentancur, poeta, pensador:

Teus textos, ultimamente (e creio que desde o primeiro post, que acompanho teu blog desde que foi criado, lá por março), têm trazido uma vocação indisfarçável para a máxima, o epigrama. Nestas duas séries de “Arestas, aparas, arte” (o próprio título já é um epigrama, encaminhando um conceito que resulta no que o artista deve suar até chegar na expressão artística mais plena quanto possível) possuem momentos invejáveis. Um deles está aqui, é o destaco: “Modéstia, em alguns casos, é talento modesto.” Quanta maldade, hem Bentancur! E quanta verdade.


Ruy Dornelles Buarque – Passo Fundo, RS.

Anônimo disse...

Paulo:

Além de úteis, para quem quer escrever – e, mesmo, somente ler – suas observações mostram uma tendência (pelo menos é o que eu acho) para o paradoxo. E tendência para o paradoxo revela um temperamento irônico, de quem deseja mesmo desestabilizar o leitor? Esta é a leitura adequada?

Guilherme de Arruda Fabres – Juiz de Fora, MG

Anônimo disse...

Caro Paulo,

esse seu último trecho aí, "Problema de geografia", olha, cuidado com a gauchada: vão lhe pelar o couro, hem! No entanto, concordo com você, descontada toda a ironia que tal observação possa conter.

Ildo Marcondes (Belo Horizonte)