quarta-feira, 13 de agosto de 2008

"CATATAU" EM CATUÍPE

Qual era a liberdade criadora com que nos deparávamos naqueles idos de 1975, quando não havia liberdade política e a arte não podia dialogar à vontade? Quase nenhuma, embora ao artista a liberdade seja um bem comum inalienável e ele a use de todas as formas, sobretudo as imperceptíveis pelo vigia da hora. Assim, a vanguarda, mais que um experimento, era uma obrigação. E nesse ambiente vigiado as mentes experenciavam viagens mais longas, bem mais longas, que nossos rotos sapatos de Carlitos.
A estrada empoeirada por bombas de gás lacrimogênio quando muito jovem com cara de protesto se reunia precisava ser asfaltada por uma civilidade construída sobre cultura e liberdade. Gente com longas barbas de pose de hippie trilhava esse caminho, mas era necessário mais que uma performática pose de Walt Whitman; era fundamental dar munição verbal a si mesmo, saltando sobre os muros de um discurso vigiado. Paulo Leminski foi um sujeito que teve essa cara e essa coragem alimentadas por dois milênios de poética, desde a de Aristóteles.
Daí que o rebelde não se fez de fúria pura e juvenil e sim transgrediu autorizado pela própria tradição que, enciclopédica, vence o que usa seu nome mas é apenas cânone constituinte da hora política severa.
Não faz muito tempo perdemos esse transgressor, o Leminski, 45 aninhos ainda, na flor da idade, mas com uma produção de quem passou dos 60. Foi em 1989 e muita birita derrubou o poeta-contista-ensaísta multimídia paranaense. Uns 15 volumes desaforados foram seu testamento, sobretudo sua obra-prima, Catatau, uma prosa experimental com cara de romance, mas corpo de poema em prosa. Leminski se foi mas ficou uma legião de leitores formada às margens de seu texto coleante, humorado, inventivo.
Falar em invenção parece obviedade quando se trata de arte, mas em Leminski isso era o ponto de partida e de chegada. Homem da publicidade, vivia de antena ligada no que o mercado pedia sem trair o que ele próprio, Leminski, pedia a si mesmo, e afora o Catatau, nenhum texto seu ia fechar a cara para o público. Assim, promoveu a convergência entre o complexo das idéias e o simples da forma, em textos que iam da piada à crônica, transitando em meio à região afável de uma espécie de circo das letras (“A palmeira estremece / palmas pra ela, / que ela merece”).


O começo

Mas isso foi o fim. Carreira interrompida pela doença (tinha tantos planos, conforme me contou ao telefone 15 dias antes de morrer: “vou partir pro conto, mas com calma, que tu estás na terra do Scliar”; “ainda estou me devendo um romance”), cada vez mais ia aproximando uma curiosidade insaciável que o fazia flertar com meia dúzia de línguas – consta que até egípcio ele andava estudando – com um registro verbal dessa curiosidade capaz de traduzir o mais remoto e o mais transcendental para a fala mais cotidiana possível.
Leminski queria o difícil tornado em fácil. Queria o mais profundo boiando na superfície, a nossa espera, leitores de sorte, alfabetizados no idioma desse paranaense.
Embora seu começo tenha pegado o monstro a unha. Catatau (1975) “refaz” o percurso dos holandeses no Brasil, que trazem René Descartes na bagagem e o filósofo do mais supremo racionalismo mergulha na febre da selva tropical (uma hipótese, claro), na selvageria de um povoamento que não se fez com a liberdade essencial que se respirava na Holanda de então (país mais livre da Europa no século XVII, e para onde Descartes e Spinoza, por exemplo, tinham se mudado).
Catatau é – hoje cabe chamá-lo assim, devido à fluidez dos gêneros literários – um romance, um monólogo, num ritmo alucinante de fluxo de consciência, de um Descartes perdido e achando um país que poderia ter ido por outro caminho. Mas é também o “espírito” do texto se manifestando, evocado pelas inúmeras entidades que o proclamam e por uma força suprema em ressurgir, ou melhor, permanecer enquanto sente que vai – sua chama, sua alma, sua força, sua luz, sua palavra – apagando-se ou confundindo-se já sem nenhuma identidade.
Foram duas décadas e meia em que a parte mais desenvolvida do Brasil esteve nas mãos da Companhia das Índias Ocidentais, capitaneadas por Maurício de Nassau, que para cá trouxe (desta vez, historicamente falando, de verdade) sábios, pintores, matemáticos, cientistas, gente capaz de conviver com alemães, polacos, índios, negros e brancos em paz e em liberdade de credo, não importando que houvesse entre eles católicos, protestantes, judeus etc.
Recife/Olinda foi a primeira experiência (exitosa) cosmopolita do País. Isso é História. Depois os holandeses, que viam no Brasil não apenas um paraíso físico a se explorar com fins econômicos, mas um mundo de fato novo, com fauna e flora exóticas, uma terra adequadamente chamada por eles de Vrijburg (pronúncia: “fraiberg”, cidade livre), foram derrotados pelos senhores de engenho luso-brasileiros que preferiram o feudo ao capitalismo e à liberdade. “Em Guararapes, o Brasil selou seu destino de ser nação periférica, dependente, lusitanamente condenada a viver o passado dos outros” escreveu Leminski num artigo póstumo, publicado no já extinto Nicolau.
No livro, um “catatau” de coisas (idiomas e dialetos, civilização e barbárie, conceitos, imagens, fatos da história, da ciência, das artes, plantas, reais e imaginárias, bichos, reais e imaginários, pessoas, reais e imaginárias, palavras, reais e imaginárias, muitas se entredevorando, num recurso usado por Guimarães Rosa entre nós e por James Joyce na Irlanda) é apresentado num esforço entre lírico e épico de tomar um território, habitá-lo e, por fim, compreendê-lo.
A última intenção é a que não fica.
Descartes/Nassau/a Voz que Fala (e que falha) com os ouvidos livres a todos os sons que se encontram numa pororoca lingüística naufraga no próprio discurso que monta. Monta? O discurso é que monta nele e em nós, leitores, atordoados da primeira à última página, levados pela correnteza, talvez em pleno mar já, longe do Brasil que não achamos.
Do Brasil que não se achou.
Leminski soube achá-lo. Precisou de um Catatau, esforço hercúleo.


PS.: Catuípe é uma cidadezinha do interior do RS onde, durante uma semana, revisei as últimas provas da edição até agora definitiva do livro, que saiu pela Sulina dois meses após a morte do autor. Leminski já tinha feito duas revisões e me pediu: “lê mais uma vez, sempre aparece uma besteira, ainda mais nesse aí.” Peguei o livro e fui me esconder numa cidade de 20.000 mil habitantes a 300 quilômetros da sede da editora. Voltei sete dias depois sem nada anotado. Queria logo que os fotolitos ficassem prontos. Ficaram em três dias. Que fossem pra gráfica. Foram no dia seguinte. E que o livro ficasse pronto. Ficou mas o autor foi embora antes. (13/08/2008)

4 comentários:

Anônimo disse...

Paulo, ao ler o título deste post, jamais imaginei que realmente pudesse existir uma relação entre "Catatau" e Catuípe (confesso: pensei que tu querias apenas unir, sem nenhum grande motivo pra isso, palavras em que o "c" e o "t" são marcantes).
Nesses últimos dias, em que tens me apresentado um "catatau" de novos autores/obras, conseguiste, mais uma vez, me empolgar, agora com o "Catatau" do Leminski, que já está entre minha(s) futura(s) leitura(s) (antes, tenho o Valêncio pela frente!).
Ah, sem contar que esse post tbm serviu para eu entender o porquê de tu teres falado em Catuípe ontem no telefone... rs
Lindo teu texto. O final dele, então... além de lindo, comovente.
Beijão.

Anônimo disse...

Só para lembrar do projeto Polônia.
Bjs!
Érica

Anônimo disse...

Então é assim que são tratados livros importantes da nossa cultura? E gente séria e dedicada como tu? tendo de ir esconder-se em... Catuípe? A gente sempre imagina o sujeito compondo uma obra-prima ou (como tu, nesse caso) trabalhando em cima da edição de um grande livro em condições muito confortáveis. Parece que o desconforto é a regra.


Elias Madeira, Ponta Grossa, PR.

Anônimo disse...

Eu considero o CATATAU um livro praticamente ilegível. Embora, reconheça, ilegível como o Joyce é e o Guimarães Rosa às vezes é também. Leio teus comentários e reflito: parece que a ilegibilidade, como tudo na vida, está nos dois lados, no de quem escreve e no do quem lê (que sabe tão pouco que acha tudo ilegível). Uma coisa temos de admitir: é preciso ser poliglota para ler o Leminski, quase isso (além de cultura especialmente irlandesa e homérica, de Homero), para ler o Joyce, e muita, muita paciência e ouvido de músico para ler o Rosa. Convenhamos, trabalho árduo. Mas tudo na vida exige trabalho de Hércules. Até certas leituras.

Gabriel Almeida Quadros, Lajeado, RS.