Mario Quintana é daqueles nomes que, uma vez transformados em símbolo de uma cultura, dificilmente recuperam para o trânsito habitual das discussões o registro inaugural que gerou tal símbolo. Traduzindo: obra produzida, o artista consagra-se pela via mais fácil da caricatura, e a obra mesma fica à espera de uma leitura que nunca vem.
Quintana virou poema de Manuel Bandeira, de Drummond, de dezenas de outros poetas menos importantes. Virou personagem de si mesmo (todos somos, mas ele mais do que todos), Anjo Malaquias, tríade de poeta-humorista-filósofo, vivendo sempre na remota região das nuvens, parente daquela espécie definida por Julio Cortázar como el gran comedor de mosca, modesta imagem a descrever a distração a serviço da genialidade.
Mas, e a obra? Foi dela que isso tudo veio, e pouco se vai a ela, contentando-se o público a relações amistosas e tímidas tipo “que simpático e divertido velhinho língua-de-trapo!” Lá longe, no tempo, vão se distanciando de nós A rua dos cataventos, Canções, Sapato florido, Espelho mágico e O aprendiz de feiticeiro, seus cinco primeiros livros, pedra inaugural e última de um conjunto lírico que mais tarde ainda daria irretocáveis momentos como Apontamentos de história sobrenatural (1976), porém já totalmente solidificado e auto-suficiente desde 1951 (data da publicação de Espelho mágico).
Prova desse “esquecimento” de leitura efetiva é a afirmação, já em 1978, de Ivan Junqueira, em seu livro À sombra de Orfeu: “A crítica literária brasileira – às vezes estranha ao próprio conceito de crítica – jamais se ocupou como devia desse imenso poeta que é Mario Quintana”. A frase, aliás, é citada logo na abertura de um importante ensaio, Mario Quintana: As faces do feiticeiro, de Paulo Becker, numa co-edição PUC/Editora da UFRGS (1996, comemorando os 90 anos do poeta, se vivo fosse, morto dois anos antes). O volume mapeia propositadamente apenas os cinco livros iniciais do poeta. A tese de Becker, poeta também, é que nesse quinteto original residem essência, forma, gênese, evolução e cristalização da obra de Quintana.
O ensaio, por sua consistência, por suas qualidades tanto de percuciência crítica quanto de método, não só deve ser recomendado, mas sobretudo torna-se inadiável exatamente pelo panorama hoje desenhado – o de um leviano comodismo diante das possibilidades de discussão que os livros do poeta propõem.
Exigido pela pressão de uma lírica apressadamente modernista, cujo valor dos versos pagava tributo (e caro) aos ventos provocadores da época (década de 30), Quintana estreou noutro tom: com A rua dos cataventos, por exemplo, escolheu o soneto, praticamente aposentado desde a virada do século; enveredou para um tipo de simbolismo tardio, só que nada tardio, já que a ele (ritmos lânguidos, intimismo, imagens de uma rica espiritualidade) somou conquistas estéticas posteriores, num claro sincretismo lírico, costurando duas ou mais escolas.
A vida toda tentaram dar-lhe um rótulo, em vão. Não era possível. Extemporâneo, jamais prestou-se ao papel de epígono ou de clone de uma literatura acostumada a ecos e pouco mais que eles. Este o motivo, talvez, do silêncio crítico, da preguiça de análise, da paupérrima bibliografia sobre sua obra. Como classificar Quintana sem lê-lo com a atenção devida, suficiente para se saber que a partir dele uma nova – e única – trilha na poesia brasileira começa?
Num registro clássico, de aparente passadismo, ele incorporou cores, temas, ritmos novos, logrando versos únicos, pessoais (não no plano do restrito, e sim do estilo único). Somou humor, filosofia (sua poesia é basicamente epigramática) e uma melancolia piedosa com o mundo todo e consigo mesmo. Mas, poeta maior, convida a cada linha a desconfiarmos, a reinaugurarmos o mundo, a viajarmos incessantemente ainda que sem armas e bagagens.
Poeta ao desabrigo, se dispõe, naturalmente vestido de ironia. A maior de todas seria ser lembrado, mas não por seus poemas. Evitemos esse crime lendo-o de fato. (03/09/2008)
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4 comentários:
Quintana é que sempre foi o “poetinha”, e não o Vinícius de Moraes, beberrão, namorador. Acho que esqueceram a primeira fase de Vinícius, muito séria, e até espiritualista, com um rigor formal dos mais raros em língua portuguesa até então, assim como esqueceram as fases todas de Quintana, e o resumiram às suas imagens mais fáceis, como a da Rua dos Cataventos, a da menina Lili, a do Anjo Malaquias, tão batido que chegou a desinflar como um balão e cair de seu vôo. Quintana é coisa séria. Li esse livro que você cita, do Prof. Becker, e é um primor, uma ciência da literatura, a mostrar como Mario Quintana cuidava da linguagem, das sonoridades, das imagens, da atmosfera única, de um lirismo talvez alcançado na poesia do Brasil só pela poeta que exatamente o influenciou: Cecília Meireles.
Diego da Cunha - Curitiba.
Paulo:
lembra daquela foto famosa, num banco de praça, creio que no Rio de Janeiro? Drummond, Vinícius, Manoel Bandeira, Quintana comemorando seus 60 anos, e Paulo Mendes Campos (pelo nível dos demais, um "estranho no ninho", embora um excelente cronista e com sentido lírico apurado). Foto para consagrar. Ali foi o batismo dele entre os grandes. Demorou mais veio.
Prof. Emanuel Mendes dos Santos – Carazinho, RS.
Bentancur, que nos honra por ser nosso conterrâneo:
O Quintana foi grande até para os pequenos. Te pergunto – tem poesia para crianças de tanta qualidade como “O batalhão das letras” e “Pé de pilão”? Duvido. Mas duvido mesmo!
Túlio de Castro Lemos. Santana do Livramento, RS.
Bentancur:
que desagravo acabaste de fazer, hem... Contra todas essas leiturazinhas que se costuma fazer. E infelizmente, não só da obra do Quintan, mas da dele principalmente, tens razão. Muito bom!
Júlio César Marcondes Prates, Joinville, SC
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