segunda-feira, 29 de setembro de 2008

HÁ CEM ANOS MORRIA MACHADO DE ASSIS

“A vida é boa” ele disse, em alto e bom som, para quem o pudesse ouvir no sobrado da Rua Cosme Velho, 18, enquanto suas forças iam se extinguindo.


Cronologia comentada

21/06/1839 – Nasce no Morro do Livramento, no Rio de Janeiro, filho de agregados, o pai era filho de escravos recém libertos. Pintor de paredes. A mãe, branca, era lavadeira. No mesmo ano, seis meses antes, nascera Casimiro de Abreu, futuro autor de As Primaveras, e nelas, o poema “Meus Oito Anos”: “Oh! que saudades que eu tenho/ Da aurora da minha vida,/ Da minha infância querida/ Que os anos não trazem mais !”, publicado quando Machado faria 20 anos e trabalhava para Paula Brito.

1845 – Perde a irmã, Maria, de quatro anos. E, talvez perda maior: a madrinha e protetora, Maria José de Mendonça Barroso. Aqui há controvérsias. Morta tão cedo, como se pode inferir que o papel da madrinha teria sido decisivo na salvação material e intelectual do menino. Não foi à toa que ele vendeu balas fabricadas pela madrasta e aprendeu francês numa padaria.

1849 – Morre-lhe a mãe. As raízes se soltam. Com ela, o pai morre um pouco, ou se desvia, o que dá no mesmo.

1854 – Primeira produção que pode ver impressa. O poema “Soneto”, no Periódico dos Pobres, a 3 de outubro. Quase nunca citado. Três meses depois, a 15 de janeiro de 55, num periódico de reputação, Marmota Fluminense, sai o poema “Ela”, tido como sua real estréia. Não foi.

1856 – Ingressa na Imprensa Nacional, como aprendiz de tipógrafo. Lá conhecerá Manuel Antônio de Almeida, que o ajudará muito. Almeida é autor de um livro que não faz grande sucesso num ambiente de românticos sem humor, mas sem dúvida é, daquele período, das poucas coisas que sobreviveram. Certamente isso terá causado algum impacto positivo em Machado.

1860 – Entra em cena o jornalista. E o comediógrafo. Que não pararão, com idas e vindas, entre a imposição do contista – a produzir até o apagar das luzes – e a cada vez maior consistência na carreira do romancista. Mas deve ao jornalista a prática e um público e ao comediógrafo a reputação de vôos mais altos no início. Promessa que cumpriu.

1861 – Morre Manuel Antônio de Almeida. Sai de cena o segundo protetor. Mas logo não precisará mais deles. Machado de Assis, escrevendo sem parar e, paradoxalmente, rigoroso no projeto e na execução, com uma obra que é, mais que sólida, renovadora porque não se ancora no já feito, arrojada nas proposições temáticas e formais, terá apenas na esposa outros braços estendidos.

1860-63 – O comediógrafo mostra as unhas. Aparadas. Sua primeira peça: Hoje Avental, Amanhã Luva. E logo: Desencantos, O Caminho da Porta e O Protocolo (saem num volume, O Teatro de Machado de Assis, no mesmo ano). Quase Ministro, também de 63, sai em separado.

1864 – Inicia colaboração que marcará época. No Jornal das Famílias, muitos de seus contos saírão durante mais de uma década. O que lembra a fase do argentino Jorge Luis Borges em El Hogar, nos anos 1930.

1864 – Sai seu primeiro livro. Crisálidas, poemas. A crítica vasculhou em vão, nesses poemas derramados (mesmo com versos regulares), alguma pista do Machado que sobreviveu à própria morte. Ficasse só nos poemas, e não o teríamos lembrado. Não deixa, no entanto, de configurar, essa observação, uma injustiça. O processo do artista é longo e irregular, como o de maciça maioria dos artistas, mesmo os grandes. Aos 25 anos era praticamente impossível estabelecer autonomia estética num meio onde criadores fadados a serem esquecidos antes de morrer ditavam as regras. Ele não as seguiria em breve. Mas era preciso esperar

1866 – Desembarca do navio, que a trouxe de Portugal, Carolina Augusta Xavier de Novais, quatro anos mais velha que ele e amiga de Camilo castelo Branco e de outros escritores portugueses.

1869 – Casamento com Carolina. Residem, primeiramente, na Rua dos Andradas. Cinco anos depois, muda-se para a Rua da Lapa. Em 1875, para a Rua das Laranjeiras. O casal busca o abrigo que os fortaleça.

1870 – Edição de Contos Fluminenses e Falenas (poemas). Nos contos, uma evolução na prosa que se fazia então. Na poesia, nada de novo.

1872 – Realiza seu romance inicial, Ressurreição. Já traindo a tradição romântica, coloca o casal, dois protagonistas, num jogo contido onde há mais embate que a exaltação das certezas do desejo mútuo.

1873 – Entra para o funcionalismo público, no Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, e lança Histórias da Meia-Noite, segunda incursão no conto.

1874 – Segundo romance, A Mão e a Luva. Estréia como folhetinista. Depois, no mesmo ano, o romance sai em livro. Guiomar, moça segura de si, de origem humilde, vê a chance de ascensão social pelo casamento. Três são os pretendentes. O fiel Estevão, tratado no entanto com certo desdém pelo narrador. O óbvio, oco e desimportante Jorge, o mais parecido com Guiomar, mas sem charme, naturalmente. E o ambicioso Luis Alves, determinado, com planos políticos e sociais. Apesar desse cenário que a escola romântica não aprovaria, fica evidente a escolha de Guiomar por Luis Alves. A união dos dois é tão certa como a mão e a luva. O cético Machado já dá as cartas em sua fase “romântica”.

1875 – O poeta dá mais um passo. Sai Americanas, seu terceiro livro no gênero. Antecipando uma pausa lírica que durará 26 anos.

1876 – Helena, terceiro romance da primeira fase do autor, vem a público. Talvez o mais frágil porque Machado nele não se detém – como, ao contrário, sempre foi sua marca – no detalhamento psicológico das personagens. É a menos machadiana de suas ficções: o enredo domina tudo. Desde o forte início, com a morte de um homem poderoso, o surgimento de uma suposta filha, Helena, que ele tivera com uma amante, a paixão – recíproca – entre Helena e Estácio, o irmão da moça, até o desfecho surpreendente. O que parece uma ameaça de incesto terá uma reviravolta. Amores paralelos (por Helena, da parte de Mendonça, e por Eugênio, suposto irmão da moça, da parte de Eugênia, prometida desde a infância ao filho do homem poderoso, rico) e interesses de ascensão social, esses sim marca recorrente no universo ficcional de Machado fazem de Helena um roteiro que se insere no corpus de sua obra, mas o tom com que tal roteiro se mostra abre mão das nuances características do escritor, sempre a criar armadilhas e dissolver qualquer possibilidade de evidência. O enigma de Capitu não é um capítulo isolado em sua criação.

1878 – Encerra o ciclo romântico com Iaiá Garcia. Não à toa nesse mesmo ano publica seu célebre ensaio contra o naturalismo de Eça de Queirós em O Primo Basílio. Talvez o mais bem acabado romance da primeira fase. Como se fosse a fronteira entre os jogos afetivos infindáveis e as questões morais e suas derivações a apontar outra concepção de literatura, que se dará dali a dois anos. Em Iaiá Garcia temos a sombra constante do amor entre Jorge, moço rico, e Estela, de origem pobre. A mãe do rapaz, viúva rica amiga do também viúvo Luís Garcia, pai de Iaiá – na verdade Lina –, sabe do interesse do amigo maduro pela moça. Trata de afastar o filho, convencendo-o a alistar-se na Guerra do Paraguai. Depois dá um dote à Estela e a convence que Luís Garcia, um bom partido, pacato e caseiro, é o melhor rumo para a vida da moça. Jorge também era amigo do pai de Iaiá, e confidencia-lhe, quando Luís Garcia já está casado com Estela, dos verdadeiros motivos de sua ida ao Paraguai. Omitindo, por respeito, a identidade da moça que a mãe não queria que ele desposasse. Antes do retorno do rapaz, morre-lhe a mãe. Jorge retorna. Passa freqüentar a casa de Luís Garcia e naturalmente cruzam-se ele e Estela, sempre havendo tensão no encontro entre ambos. Iaiá, muito próxima do pai, conhece-lhe a fundo e percebe a perturbação de Estela nessas horas. Sobretudo quando o pai mostra à esposa as cartas do amigo confessando seus amores proibidos pela mãe, sem citar o nome da pretendida. Na volta Jorge trouxe um amigo, Procópio, que logo se interessa por Iaiá. Faz de Jorge seu confidente, na busca de alguma chance com a filha de Luís Garcia. No entanto, querendo resguardar o pai de uma grande decepção, Iaiá decide-se casar-se com Jorge e, para isto, tenta conquistá-lo, apesar do sentimento de repulsa que o rapaz lhe causava até então. Contando com seus dotes, acaba por noivar com o moço. Entretanto, antes do casamento, morre o velho Luís Garcia. O plano da heroína perde o significado, e Iaiá desmancha o noivado. Mas os dias mostram que, de fato, ela agora está apaixonada por Jorge. Procópio Dias, o pretendente rejeitado, fortalece as suspeitas da moça, insinuando relações amorosas entre Jorge e Estela. Esta, descobrindo o que levou Iaiá a romper o noivado, convence-a de que suas suspeitas não têm fundamento: tudo há muito se resumia às lembranças do passado. Reaproximam-se os noivos e Estela serve-lhes de madrinha no casamento. Após isso, muda-se para São Paulo, onde vai trabalhar na escola de uma amiga. Ainda o Romantismo exige de Machado de Assis respostas, mas a resposta, cada vez mais, é tipicamente machadiana.

1878/79 – Séria enfermidade nos olhos. Passa longa temporada em Nova Friburgo, RJ, em busca de recuperação. Tempo de renovar-se. Muitos biógrafos apontam esse episódio de sua vida como a fronteira entre a primeira fase e a segunda, que vem logo em seguida.

1880 – Tu, só tu, puro amor, peça em homenagem ao terceiro centenário da morte de Camões (1525?-1580). Resume-se ao papel de homenagem. O excessivo psicologismo, no caso, não se adéqua à cena e menos ainda à odisséia relacionada ao episódio camoniano. O teatro é o gênero onde Machado menos acertou. Não à toa só voltará a publicar duas peças, as derradeiras, 26 anos mais tarde.

1881 – Ano-marco na vida do autor. Sai Memórias póstumas de Brás Cubas, seu romance mais original, difícil de definir. Espécie de rapsódia, à qual o autor não voltará nos livros seguintes, mesmo atingindo em alguns nível semelhante de excelência. Algo impossível de se extrair do livro, para começar: uma sinopse. Basta dizer que quem narra é um defunto, que começa o livro no dia de sua morte e a narra, num resumo simplificado, de trás para diante. A literatura brasileira nunca mais seria a mesma.

1882 – Sai mais uma coletânea de contos, já com marcas inconfundíveis da maturidade: Papéis avulsos. O volume abre com "O Alienista", uma novela de 90 páginas que muitos chamam de conto, e que está entre as criações máximas do autor. Para coroar o livro, destacam-se ainda "Teoria do medalhão", "A sereníssima república" e "O espelho", um dos contos mais estudados de Machado.

1884 – Machado e Carolina mudam-se para a casa definitiva, o sobrado na rua Cosme Velho, 18. Nesse mesmo ano sai Histórias sem data. O contista consagra em definitivo o escritor: só neste volume encontram-se "A igreja do Diabo", "Cantiga de esponsais", "Singular ocorrência", "Galeria póstuma", "Capítulo dos chapéus", "Noite de almirante" e "As academias de Sião".

1888 – É nomeado Oficial da Ordem da Rosa por Dom Pedro II. Uma semana após a proclamação da Leia Áurea, libertando os escravos, Machado, avesso a “excessos” públicos, desfila em carro aberto.

1891 – Sai Quincas Borba, segundo romance do seu trio maior (completado com Dom Casmurro) de narrativas longas do autor. O livro dialoga com o Memórias póstumas... A começar pelo personagem homônimo, amigo de Brás Cubas e a quem este seguia como um exemplo de saber, sobretudo por sua filosofia, no Quincas Borba explicada: o Humanitismo. Além disso, o “pensador” – a ironia machadiana nos leva a desconfiar de que sua filosofia seja mero pretexto para nos passar a perna ou, mesmo, que ele seja um alucinado – tem um cão a quem deu seu próprio nome. Quando morre, deixa uma herança em dinheiro para o amigo Rubião, desde que este cuide do cão. O título alude ao filósofo “louco” ou ao animal de estimação? É do pensamento de Quincas Borba, o homem, a frase famosa: “Ao vencedor, as batatas.”

1896 – Sai um de seus mais importantes livros de contos, Várias histórias. Basta que se diga que nesse volume reúnem-se "A cartomante", "Uns braços", "Um homem célebre", "A causa secreta", "Conto de escola" e "Um apólogo". Funda a ABL – Academia Brasileira de Letras e é eleito seu primeiro presidente a 15 de dezembro.

1897 – Sílvio Romero publica o mais notável – pela infelicidade – estudo sobre um grande autor na história da crítica brasileira. Chama-se Machado de Assis, simplesmente, e é a primeira e, ao mesmo tempo, mais enfática resistência à obra machadiana. Acusa aos demais críticos de superestimarem o autor, em quem vê apenas “O estilo de Machado de Assis, sem ser notado por um forte cunho pessoal, é a fotografia exata do seu espírito, de sua índole psicológica indecisa. (...) Vê-se que ele apalpa e tropeça, que sofre de uma perturbação qualquer nos órgãos da linguagem. Machado de Assis repisa, repete, torce e retorce tanto suas idéias e as palavras que as vestem, que deixa-nos a impressão dum tal tartamudear. Esse vezo, esse sestro, tomado por uma cousa conscienciosamente praticada, elevado a uma manifestação de graça e humour, era o resultado de uma lacuna do romancista nos órgãos da palavra”. Diversos trechos revelam o tom preconceituoso de Romero, levando em conta a origem pobre do autor, a gagueira, a timidez, e o fato de ser mulato, como determinantes de uma impossibilidade.

1899 – Outro ano que marca a vida de Machado. Sai Dom Casmurro, romance que, na forma, retoma a narrativa até certo ponto linear de antes de Memórias póstumas... Trata-se de um dos três livros mais estudados das letras nacionais. Só sobre Dom Casmurro, ambígua história de uma aparentemente evidenciada traição, pode-se formar uma biblioteca média de produção crítica nos quase 110 anos de seu surgimento. Também publicado nesse ano, Páginas recolhidas confirma que o contista chegou ao auge há duas décadas. No volume, não bastassem "O caso da vara", "Idéias de canário" e "Filosofia de um par de botas", integra o conjunto "Missa do Galo", seu conto mais discutido.

1901 – Talvez sob o impacto do novo século, Machado faz um balanço de sua poética. Publica seu quarto e último volume de poemas, Ocidentais, e igualmente reúne toda sua produção no gênero, em Poesias completas.

1904 – Sai seu penúltimo romance, Esaú e Jacó, considerado, junto com o próximo, obra crepuscular, uma espécie de queda no projeto estético machadiano. Inevitável. Já tinha feito mais do que todos os que o tinham antecedido – e talvez do que os pósteros. E era um ano que se adivinhava amargo. Em outubro, morria Carolina, que durante 35 anos o acompanhara em tudo, sendo até mesmo sua secretária e revisora. Fortes dores no estômago, agravadas por uma receita equivocada de um farmacêutico, precipitaram o fim por causas que, então, não eram diagnosticadas.

1906 – Publica seu último livro de contos, Relíquias de casa velha, sendo que ali promove uma miscelânea, abrindo o volume com seu melhor poema, “A Carolina”, e logo em seguida com uma narrativa breve que também se inclui entre suas melhores: "Pai contra mãe". Os outros 41 textos, alguns pendendo à crônica, a maioria contos mesmo, recolhem o que ficou pelo caminho, textos esparsos na imprensa, saídos entre 1874 a 1894, reunidos em ordem cronológica.

1908 – Vem à luz seu derradeiro romance, Memorial de Aires. Em 29 de setembro, uma grave infecção intestinal e uma úlcera na língua debilitam seu estado de saúde a ponto de fazê-lo fechar os olhos pela última vez, já madrugada. Muita gente o acompanhava em casa. Não aceitou quando lhe ofereceram um padre para a extrema-unção. “Seria muita hipocrisia.” (29/09/2008)

4 comentários:

Anônimo disse...

Paulo,

como sempre, uma aula!

Beijo

Joana Giacomazzi

Anônimo disse...

Isto é que é cronologia. Você vai sempre um pouco além, caro Bentancur. Parabéns e obrigado pelos serviços prestados.


Dalmo Freitas, Francisco Beltrão, PR.

Anônimo disse...

Mestre Machado, como um bruxo, criou motivos para um novo curso da literatura brasileira. E fez com tão completa ginga, com tamanho talento que deixou uma herança profunda em todos os aspectos.

Ótimo texto Paulo!

Jeff Negromonte

Anônimo disse...

Amigo Paulo:

você, mais uma vez, dá um jeito de "inventar" um gênero: a cronologia em forma de artigo. Ou o artigo em forma de cronologia. Enfim, criativo, crítico, o seu jeito, habitualmente levando-nos à reflexão. Coisa que sobra no Machado!

Parabéns pelo blog. Tenho passado várias vezes, algumas nem é para ver as novidades (sempre bem-vindas), mas para reler textos que ameaçam apagar-se na memória.

Arthur Schultz. Juiz de Fora, MG.