Morre fisicamente o escritor, célebre pela qualidade de sua obra. Imagina-se que a posteridade lhe será grata, reconhecendo seus méritos e povoando as décadas vindouras de ecos do aplauso que ele conheceu em vida. Entretanto, um professor de literatura mais afoito burla a vigilância precária da viúva e arranca das mãos hesitantes da mulher páginas que o autor desejaria enterrar consigo. Está feito o crime.
Um mês depois de morto, sai em edição de luxo a primeira besteira no conjunto da obra do autor, até então cuidadíssima. Quer o tal professor, a exemplo do mau-exemplo Max Brod, impedir que caia no esquecimento o que o autor quis assim. Max Brod teve sorte, o Kafka inédito de fato valia a pena, mas foi uma exceção, a regra é o defunto ter razão, e o que deixou sem a luz do público de fato merecer tal escuridão. Fizeram isso com Fernando Pessoa depois de morto, cujo “baú inesgotável” de obras-primas efetivamente deu obras-primas, mas também muita bobagem, como O Livro do desassossego, que nunca deveria receber a atenção que a maioria do material escondido mereceu. Com Pessoa tinha um atenuante, como com Kafka: o autor foi exigente além da sensatez, e realmente escondeu o ouro. Mas o normal é o autor esconder aquilo que não desejaria mesmo que lessem.
Feito este prólogo, um pedido: respeitem a memória do morto – ele pede silêncio além do que disse em vida. Toda palavra nova, trazida ao palco postumamente, é som distorcido, é sentido extraviado, é um homem empalhado forçado a pular o carnaval. Cinco anos depois do funeral, um leitor menos informado acerca do ocorrido com nosso impotente e infeliz defunto, depois de ler cinco livros póstumos (a média com o coitado foi de uma exumação por ano), exclamará, desconsolado: “mas esse cara não é grande coisa! Engraçado, quando vivo festejavam-no com tanto empenho...”
O morto quer que o lembrem de quando era vivo, e escrevia. E, ao escrever, escolhia o que era melhor, o que funcionava, e isso ele tornava público; o resto, ele deletava o arquivo, queimava os
papéis, rasgava (e até aí salvava-se, quase sem saber), ou simplesmente (ó imprudência!) deixa adormecido numa gaveta. Este último procedimento – delicadeza do autor com a imperfeição de seu trabalho – revelava um método simples, cômodo, e, enquanto vivo, eficaz. Alguma parcela daquele equívoco talvez servisse para ser aproveitada adiante. Só que adiante estava também a morte, e, morto, ele não poderia arbitrar sobre o percentual aproveitável. Ficava 100% do insuficiente, quando não do fiasco, para cair nas mãos das carpideiras de plantão. Chorando sua morte, insistem em revivê-lo pelo que não pretendeu dizer, pelo que, em última instância, não disse, esfregando ante nossos olhos o texto arrependido.
Agora o desfecho deste reconhecimento e deste restabelecimento da justiça: evitemos de imputar ao autor, hoje sem chance de interferir sobre os desígnios de sua obra, a responsabilidade por um crime cujo impulso ele reconheceu porém cuja realização ele não autorizou. Paremos de acrescentar aos seus títulos – momentos que ele julgou raros, extraordinários, e, por isso, exemplares – quaisquer pedaços de experiências que o próprio ato de experimentar esgotou, trechos ordinários que o todo da obra selecionada dispensa, momentos menos felizes cuja derrota de execução já basta, quanto mais estender essa derrota aos pósteros.
Morte feliz a daquele escritor cujo último livro publicado em vida é, sim, o último livro de sua bibliografia. E os seguintes não passem de homenagens de terceiros, clubes de leitores, associação de críticos, enfim, essa outra espécie de desdobramento – cá pra nós, na maioria lamentável –, mas pelo menos com a honestidade de ostentar a assinatura de gente viva que pode ser responsabilizada pelos próprios erros. Morto o autor, leva para o túmulo a paz de enfim ter descansado. Isso quer dizer simplesmente que agora não escreverá mais. Nunca mais. E não publicará mais. Nunca mais. O que já estava, ficou. O que não aconteceu com ele, não pode mais
acontecer. A obra precisa ser dele para depois ser nossa. (23/08/2008)
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6 comentários:
Paulo, digamos que o cara foi sensato o suficiente pra não deixar rascunhos inacabados ou primeiros rascunhos de livros publicados. Ainda restam as edições dos primeiros livros, aqueles que ele corrigiu para as reedições. Como escapar das manadas de acadêmicos que saltam no cangote de todos, mal eles viram as costas?
Ernani Ssó
Grande Ernani!
Só mesmo ele deixando uma família, como o Erico Verissimo deixou: com um escritor de qualidade fazendo parte do seu legado – ainda mais filho –, capaz de protegê-lo da irresponsabilidade alheia quando a pimenta é no olho dos outros.
Fora isso, amigos tu já viste que não funcionam. E até família, quando não há no meio dela um (bom!) escritor arbitrando tudo. Enfim, é morrer e rezar, se morto rezasse.
Aproveitando a tua visita, parabéns pelo recente lançamento de "Contos de Gigantes", teu quarto livro infanto-juvenil pela Cia. das Letras.
Caro Paulo,
Parece até piada, não fosse um quadro absurdo de tão desleal. Eu ia escrever “desumano” se não se tratasse de um morto. Mas o inverso também ocorre, e é aí que está a desumanidade: o sujeito é bom (QUANDO o escritor é bom, que fique bem claro), todavia, exatamente por produzir material de qualidade, ou seja, original, não atrai a massa, nem mesmo a média dos leitores, de gosto mais que duvidoso, e não publicam nada dele, NADA! Por mais que ele produza. Quando morrer, não terá deixado nome, reputação: não será um produto vendável. E não o publicarão mesmo, evidentemente. Podem mofar seus papéis, podem deletar todos os incontáveis arquivos que ele deixou repletos de literatura de qualidade.
Lúcia Helena Gudzinski, Paranavaí, PR.
Ótimo texto, Paulo! A verdade é que as editoras pegam carona na fama de um determinado autor e assim publicam obras póstumas. Talvez o próprio autor abominasse esses escritos, mas nada mais podem fazer, não é mesmo? Um abraço e boa semana!
Sem duvida isso é um mal a refletir. A carona que pegam na fama de um escritor é bastante ruim. O escritor pode nem ter gostado do que escreveu e mesmo assim eles publicam. É sério.
ótimo texto, Paulo.
Jeff Negromonte
Concordo, Paulo, que o escritor tenha o direito de escrever coisas pra si e coisas pros outros, e ninquém tem o direito de sair publicando seus guardados, assim indiscriminadamente. E deve haver um motivo para estarem guardados, não é mesmo?
Gostei muito do texto.
Lígia
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