Quem não gosta de descobrir? Quem pode descobrir se não vê? Quem pode ver se não escuta? Quem pode escutar se não fala? Quem pode falar se não lê?
Na leitura está o caminho de uma série de mistérios. Continuamos aqui uma série sobre os mistérios da escrita criativa, da criação literária. Criação que nos ajuda a criarmo-nos enquanto seres cheios de mistérios.
III
Morto o autor, se gostamos dele, queremos mais. Porém, cabe a pergunta: devemos querer? Morto, não terá ele concluído sua obra? Por que não nos entregarmos a simplesmente relê-lo. Pronto: reler é a forma mais aperfeiçoada de ler. Chega. O defunto já esfriou, não quer publicar mais. Simplesmente porque não produz mais. Mas hoje costuma-se desenterrar até bilhetes para o gerente de banco do escritor e querer dar à luz esses bilhetes como se fossem, porque assinados por quem são, obra a se considerar. Um crime. Nosso colaborador Anthero Luz reflete sobre esta questão polêmica:
“Morre fisicamente o escritor, célebre pela qualidade de sua obra. Imagina-se que a posteridade lhe será grata, reconhecendo seus méritos e povoando as décadas vindouras de ecos do aplauso que ele conheceu em vida. Entretanto, um professor de literatura mais afoito burla a vigilância precária da viúva e arranca das mãos hesitantes da mulher páginas que o autor desejaria enterrar consigo. Está feito o crime.
Um mês depois de morto sai em edição de luxo a primeira besteira no conjunto da obra do autor, até então cuidadíssima. Quer o tal professor, a exemplo do mau-exemplo Max Brod, impedir que caia no esquecimento o que o autor quis assim. Max Brod teve sorte, o Kafka inédito de fato valia a pena, mas foi uma exceção, a regra é o defunto ter razão, e o que deixou sem a luz do público de fato merecer tal escuridão.
Fizeram isso com Fernando Pessoa depois de morto, cujo “baú inesgotável” de obras-primas efetivamente deu obras-primas, mas também muita bobagem, como O Livro do desassossego, que nunca deveria receber a atenção que a maioria do material escondido mereceu. Com Pessoa tinha um atenuante, como com Kafka: o autor foi exigente além da sensatez, e realmente escondeu o ouro. Mas o normal é o autor esconder aquilo que não desejaria mesmo que lessem.
Morte feliz a daquele escritor cujo último livro publicado em vida é, sim, o último livro de sua bibliografia. E os seguintes não passem de homenagens de terceiros, clubes de leitores, associação de críticos, enfim, essa outro espécie de desdobramento, cá pra nós, lamentável, mas pelo menos com o honestidade de ostentar a assinatura de gente viva que pode ser responsabilizada pelos próprios erros. Morto o autor, leva para o túmulo a paz de enfim ter descansado. Isso quer dizer simplesmente que agora não escreverá mais. Nunca mais. E não publicará mais. Nunca mais. O que já estava, ficou. O que não aconteceu com ele, não pode mais acontecer. A obra precisa ser dele para depois ser nossa..” (09/08/2008)
4 comentários:
Paulo:
outro da, pelo jeito, interminável série de "Os livros impossíveis"?
Júlio do Valle e Silva, Santa Maria, RS.
Júlio, sempre presente:
outro! E virão mais. Pode apostar e esperar. É um de meus temas, de minhas obsessões, o artista e a arte como sinônimos do homem e a existência.
Eu gosto muito dessas histórias envolvendo quem escreve e o que esse alguém escreve. Sempre o resultado sai meio louco, meio aturdido, meio (para não escrever total) capaz de deixar o nosso mundinho de ponta-cabeça.
Rubens Cerqueira Mattoso, Viamão, RS.
Paulo:
Sem dúvida está série é uma boa escolha para pessoas que necessitam de literatura, pessoas que tendem a ver mortos falarem.
Grande texto.
abração
Jeff Negromonte
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