Quem não gosta de descobrir? Quem pode descobrir se não vê? Quem pode ver se não escuta? Quem pode escutar se não fala? Quem pode falar se não lê?
Na leitura está o caminho de uma série de mistérios. Continuamos aqui uma série sobre os mistérios da escrita criativa, da criação literária. Criação que nos ajuda a criarmo-nos enquanto seres cheios de mistérios.
VII
A literatura, como a arte em geral, como a vida, é feita de paradoxos, e obedece ao ritmo imprevisível e caprichoso das paixões humanas, dos vícios, dos enganos, do desconhecido. Tenta-se aqui iluminar um pouco esse reino nebuloso e contraditório.
“Talentos – O sujeito, afinal de contas, era medíocre, porque, sendo talentoso, deu vez a um medíocre em sacrifício da própria genialidade, posta de lado pela dúvida sempre cruel da autocrítica, a princípio uma virtude, a seguir, um vício. Não acreditava no outro, claro, porém, incapacitado de crer em suas virtudes e engenho, preferiu render-se ao movimento contínuo, talvez monótono, da necessidade de afirmação do colega, sem talento algum, sim, entretanto tornado mais forte que ele diante da indiferença do mundo.
Por outro lado, que talento o do sujeito que, sendo medíocre, sentiu a hora única na brecha mínima que foi a dor atroz da profunda insatisfação do amigo talentoso, e naquele segundo de hesitação deixou-o para trás, permitindo que ficasse inédita uma novela lancinante do outro, e que as portas se abrissem ao vazio fútil e fácil que foi então sua ascensão imposta pelo simples desejo de subir. Desejo que ninguém segura. E que o universo, feito de matéria escura, aplaude.”
“Legado – Anos e anos tentando, e fracassando como um miserável sem sol. A obra não lhe vinha, não de forma aceitável. Aliás, vinha-lhe a obra, sim, mas em forma de condenação: sua derrota cotidiana, o peso terrível de acumular fracassos. Faltava-lhe, talvez menos que engenho, paciência. Sua vida tinha sido até então aquela marca inapagável do insuficiente. E perto dele só ficavam os que não desejam obra alguma, os que aceitavam o silêncio vazio.
Até o dia em que de repente ele achou a direção certa, e fez o que sempre sonhou, e acertou, ah, acertou, sem nenhuma dúvida acertou. E quis ficar quieto, quando terminou de criar, abraçado a um resto de rancor feliz por enfim ter acertado. Imaginou finalmente pertencer-se.
Porém, o primeiro homem que passou por perto teve a atenção despertada pela obra, e interessou-se, e logo outro, e outro, e outro. E em pouco tempo muitos estavam querendo aquilo para eles. E pegaram o que ele achava que lhe pertencia. E, antes mesmo de transformarem a obra em outra coisa (ele já o pressentia), levaram-na para bem longe. E só lhe restou começar tudo de novo, órfão do que criara, reiniciando o doloroso ritual para que nascesse outro filho ou obra, que também lhe seria arrancada, se a fizesse atraente, e deformada bem longe dos seus braços.” (09/08/2008)
4 comentários:
Paulo!
impressionante os quadros que você pinta. O medíocre vence, o talentoso se dá mal. E na outra narrativa, o legado do sujeito lhe é roubado de forma impiedosa. E quando ele tenta começar tudo de novo, não adianta, parece que nada, jamais, vai lhe pertencer ou levar seu nome. Impressionante.
Luísa Coutinho Borges, Criciúma, SC
Bentancur.
Teus textos às vezes parecem telas. Não exatamente quadros para uma exposição, fixos e imutáveis como uma cena de um pintor realista. Não. Mas telas oscilantes com pinceladas feitas de uma linguagem que retrata tanto desacerto no mundo real e no imaginário de todos nós. É isso que mais marca em teu trabalho. E que o faz perdurar.
Clarice Argolo, Gramado, RS.
Parte-se do talento, chega-se ao legado. E o que concluis? Que nada sobra. Pessimismo ou queres mesmo, Paulo, nos deixar assustados? A tua visão crítica é às vezes implacável demais. Às vezes?
Elisa M. Moura, Florianópolis.
O legado tolera a mediocridade. A mediocridade não tolera o legado.
Talvez se pudessem expor o talento, propriamente dito, houvesse um espaço para a coexistência.
Ótimo texto Paulo!
Jeff Negromonte, Porto Seguro, BA
Postar um comentário