Quem não gosta de descobrir? Quem pode descobrir se não vê? Quem pode ver se não escuta? Quem pode escutar se não fala? Quem pode falar se não lê?
Na leitura está o caminho de uma série de mistérios. Continuamos aqui uma série sobre os mistérios da escrita criativa, da criação literária. Criação que nos ajuda a criarmo-nos enquanto seres cheios de mistérios.
II
O que é a obra? Que condições a propiciam e o que exatamente a anuncia? Como pode ser reconhecida? Fomos buscar auxílio junto a um valioso colaborador, que fez questão de afirmar que “obra que é obra não tem espelho”. E, advertindo-nos, “não perguntem ao autor”, mandou-nos a seguinte história:
“O homem termina mais uma de suas peças. Lê novamente o que acabou de escrever, francamente incomodado. Mais que as dúvidas habituais que assaltam os que pensam e produzem, em regra pressionados por prazos, o espírito do homem é tomado de um tormento já rotineiro: novamente vê no que criou a marca do excesso, do imperfeito.
Relê tudo com uma atenção desconsolada. Lá estão, bem claros, o enredo improvável, cheio de episódios de exceção, os personagens descontrolados, neuróticos a um passo do inverossímil, e suas falas então, literárias em demasia, de uma profundidade só cabível a um artista, não a um homem ao qual a arte não elegeu.
Sente-se incoerente esse homem que escreve. E, mais que incoerente, falho. Aceita a incoerência (não é ela moeda corrente em suas obras?), assim como aceita o descontrole emocional, o ridículo nos atos das criaturas que põe em cena, o despropósito de suas decisões, a natureza quase bestial de algumas, quase divina de outras. Aceita isso, sim, mas aceita como aceitamos um ritmo cego que nos toma e nos carrega e logo que ele acaba saímos em outra direção.
E tudo isso que o homem escreve é feito numa linguagem que pinga, ressuma, reverbera. Muita música, muita imagem, muita ação, muita legenda. O homem sente-se francamente cansado. Cansado de tudo. Sabe que errou miseravelmente em seu projeto estético. Perdeu desde a primeira linha a possibilidade do equilíbrio. Qual seu destino?
Evidente: cair. Cair do mais alto sonho até a mais baixa realidade. O mundo é impiedoso, disso ele sabe. Que glória poderá esperar? Nenhuma. Claro que nenhuma. O consolo é o relativo sucesso mais imediato – por enquanto ele está vivo e é isso o que mais importa – que seu trabalho faz junto ao público, vulgar, como se sabe.
Quando acaba o espetáculo, ele volta para casa, e logo já bola outra peça descabelada, outro exagero, outro conjunto de vilanias, ridículos, incongruências, únicos sinais que lhe acenam e depois dos quais ele duvida que tenha chegado ao ponto certo.Um dia morrerá, não se ilude, tudo terá acabado, mas as dívidas não se acumularão, alguma herança material restará, e se seu nome – William Shakespeare – tiver sido varrido da face da Terra, ele não estará presente para lamentar esse resto de silêncio. Até porque concordaria com ele.” (09/08/2008)
3 comentários:
PAulo
Descobrir. O ato da curiosidade. a vontade incansável de saber. tudo se resume na arte que estamos dispostos a compreender. E, sem dúvida, tudo nela se radica, se conhece, pois há sempre um mundo, uma conspiração para que criemos outros mundos.
Uma análise altamente bem construída. Shakespeare se orgulharia, não?
Abração
Jeff Negromonte
Paulo, Paulo!
Parece que a série poderia se chamar "Os livros impossíveis" em vez de Mistérios da criação literária", não?
Maria do Socorro Vilhena. Natal, RN.
Simpática e atenta Maria do Socorro:
e-xa-ta-men-te! "Os livros impossíveis", de algum modo, está sendo testado aqui, neste espaço. Espero que os leitores aprovem...
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