Quem não gosta de descobrir? Quem pode descobrir se não vê? Quem pode ver se não escuta? Quem pode escutar se não fala? Quem pode falar se não lê?
Na leitura está o caminho de uma série de mistérios. Continuamos aqui uma série sobre os mistérios da escrita criativa, da criação literária. Criação que nos ajuda a criarmo-nos enquanto seres cheios de mistérios.
IV
Qual a receita, qual o segredo da ficção? Existe essa receita, esse segredo? O leitor nem quer saber, quer logo a ficção que o seduza, a história que o comova. Mas o escritor quer saber. Quer e tenta e parece que.... Nosso colaborador Anthero Luz conta uma história e com ela nos revela se o escritor compreende ou não o mistério de sua arte, quais os ingredientes que a compõem.
“O escritor Alaor é sério pra burro. Não quer conversa fiada. Passa as madrugadas na internet, as manhãs na biblioteca do pai, desembargador aposentado, e durante a tarde ele debulha para uma página em branco impotente todos os dados que acumulou. Cruza-os, relaciona-os, uma informação levando a outra, e outra a outra, e assim por diante. Alaor não quer conversa fiada, por isso pratica o alterofilismo mental, sustentando um conhecimento cada vez mais concreto, com fatos, figuras, teses mais do que respeitáveis. O diabo é que um crítico, de quem sempre falaram bem a Alaor, e ao qual Alaor pediu socorro acerca de seu mais recente romance, perguntou: “romance? Cadê as personagens?”
Alaor apressou-se: “mas e o deputado, e o senador, e a mulher do senador, e o cientista, e o professor, e?” O crítico o interrompeu: “personagens se movem, gesticulam, suam, vagam, mais perdidos que encontrados dentro de um romance. O que você faz é listar uns nomes, umas ocupações, e mencionar situações em que essas figurinhas carimbadas se pronunciariam. Isso é só tema, pretexto, ponto de partida. Você não chegou a começar a fazer arte, Alaor, parou antes.”
Alaor é um sujeito do qual se pode dizer tudo, menos que não seja sério. “Tem um monte de idéias interessantes na história.”
“Mas não tem história”, devolveu o crítico.
“Mas e o enredo que montei?”
“Montou, Alaor, montou. E enredo é um troço pra lá de complicado. Deve ser a parte mais invisível da ficção, aquela que, quando o leitor foi ver, já aconteceu. Tudo, aliás, deve ser invisível, os personagens sendo o que são sem o autor gritar para mostrá-los. A trama se desenrolando sem trama alguma, uma cena levando a outra, com suavidade. Ou com sobressalto, que se há de fazer, mas um sobressalto do qual até o autor se ressente.”
“Mas tem tanta frase inteligente no meu livro.”
“E o que isso tem a ver com ficção?”
“Mas aí fica meio confuso...”
“Nada melhor que a confusão para revelar um caráter, um drama.”
“O perigo, caro crítico, é o escritor cometer muita conversa fiada.”
“Literatura é conversa fiada.”
“Eu sou sério demais”, advertiu-o Alaor, ofendido já, e orgulhoso da própria seriedade.
“A diferença é que arte é forma; e você, que só vive das idéias, é formal.”
“Não, não, não!”, horrorizou-se Alaor. “A literatura não pode ser tão superficial...”“Num certo sentido, é bastante. Vive de olhar demoradamente a superfície, onde bóiam sinais remotos de algo que se agita no fundo – e nunca será revelado.” (09/08/2008)
3 comentários:
Credo! É um conto. Também da série "Os livros impossíveis"? Começa com humor e termina entre poético e dramático. Dos mais bonitos e sugestivos textos deste blog.
Júlio do Valle e Silva, Santa Maria, RS.
Sim, fiel Júlio:
também pertence a "Os livros impossíveis". E, de fato, tu tens faro. Gosto especialmente deste texto, que me diz coisas importantes, de perto. Pocuro, através dele, deixar transparecer alguns truques do mundo esquizofrênico da ficção. espero que tenha conseguido.
A arte, certamente não advém de um sujeito tradicional. A pessoa que necessita aprender arte, formá-la, tem que ser rebelde, insatisfeito, pois aí ele tende a não se remoer quando ler um texto, por que, entende.
Jeff Negromonte
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