Quem não gosta de descobrir? Quem pode descobrir se não vê? Quem pode ver se não escuta? Quem pode escutar se não fala? Quem pode falar se não lê?
Na leitura está o caminho de uma série de mistérios. Continuamos aqui uma série sobre os mistérios da escrita criativa, da criação literária. Criação que nos ajuda a criarmo-nos enquanto seres cheios de mistérios.
V
Dois breves diálogos, quase dois minicontos, pocuram refletir sobre o artista e seu perfil fugaz e irônico. O escritor é sempre uma figura inclassificável, frágil e forte – como qualquer um.
Um livro que não poderia ser escrito
– Não há o que eu não escreva!
Quem se vangloriava era o Elizeu, inchado como um garnizé. A Bruna assombrada:
– Qualquer tipo de livro?
– Qualquer – confirmava o Elizeu.
– Até poesia?
– Ih, isso é fichinha...
– Rimada?
– Rimada.
– Metrificada?
– Metrificada.
– Cheia de imagens e símbolos?
– Cheia de imagens e símbolos.
Estava ficando monótona aquela conversa. Elizeu até se condoeu da modéstia da exigência da Bruna. Poesia! Isso é coisa pra quinze minutos, vinte. Crônica também é rápido, é só bate-papo. Conto demora um pouco mais, digamos, umas duas horas. Sabe como é, a situação, o clima.
Tinha uma coisa que ele nunca tentara: romance, mas romance é um troço deste tamanho. Mais de cem páginas, um monte de personagens, um monte de cenas, diálogo pra mais de metro – a Bruna nem ia lembrar que existe romance.
Só que a Bruna lembrou.
– E um livrão assim, tipo ...E o vento levou?
Pô, o catatau da Katherine Mitchel tinha oitocentas páginas.
– Aquela chorumela? Tá louca, mulher!
– E daí, você faz ou não faz?
– Ah, não, um desses eu não faço... – tartamudeou.
Bruna sorriu, compassiva.
Elizeu reagiu, ferido de morte.
– Não faço porque não quero, só por isso. Já imaginou quanto poeminha e quanto continho eu ia deixar de fazer só por causa de um negócio arrastado assim?
– Quer dizer que não posso esperar um romance de você?
– Não! – Elizeu estava vermelho, mais um pouco e se descontrolaria.
– Que pena...
Elizeu saiu apressado, sem nenhuma pena da Bruna.
A namorada e o escritor
A namorada lê o que o escritor escreve e estremece.
– Quanta bandalheira! E você não é bandalho...
Continua:
– Quanta loucura! E você não é louco...
E arremata:
– Quanta crueldade! E você não é mau...
– Sou um escritor – ele responde –, e um escritor é uma espécie de ator completo, até de um super-homem.
– Que faço eu – pergunta ela, preocupadíssima –, tão vulnerável contra tantos poderes? (09/08/2008)
5 comentários:
Que coisa boa! Dois contos! Duas crônicas! Duas histórias que deixam quem lê sem ação. Com humor e sem dar mole. Bem no estilo que caracteriza o autor. Em ótima forma.
Ítalo C. Bianchini (Erechim, RS)
Paulo,
acostumada que eu estava às tuas reflexões, confesso que me pegaste de surpresa com esse item 5 do "Mistérios da criação literária". É engraçado e inacreditável: como consegues mostrar que a arte de criar, tão nobre, tem as suas misérias... Algo difícil e admirável de se fazer.
Sandra Maraschin (Farroupilha, RS)
Vais recolher essas duas histórias e juntá-las a outras tantas para um dia terminares teu projeto que, segundo sei, ainda vais retomar e ampliar, o de "Os livros impossíveis"?
Júlio do Valle e Silva, Santa Maria, RS.
Caro Júlio:
pergunta bem apropriada. "Os livros impossíveis" é um dos meus projetos mais acalentados. Já teve uma versão modesta, magrinha, incompleta, lá por 2001. Já está chegando a hora de virar (com todo o respeito) uma espécie de homenagem ao Jorge Luis Borges e, com umas 150 páginas pelo menos, marcar presença, fazer sombra a coisas mais ambiciosas. Levo muita fé nessa idéia.
A forma como você tentar explicar os Mistérios da Criação Lietrária é uma forma nova, contemplada, e por isso deliciosa de se ler.
Parabéns, Paulo, pelo texto e pelo blog.
Jeff Negromonte
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