sábado, 9 de agosto de 2008

MISTÉRIOS DA CRIAÇÃO LITERÁRIA 10


Quem não gosta de descobrir? Quem pode descobrir se não vê? Quem pode ver se não escuta? Quem pode escutar se não fala? Quem pode falar se não lê?
Na leitura está o caminho de uma série de mistérios. Continuamos aqui uma série sobre os mistérios da escrita criativa, da criação literária. Criação que nos ajuda a criarmo-nos enquanto seres cheios de mistérios.

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A seguir uma pequena morfologia do artista. O que o constitui. O que o nega. O que o insinua. O que o anuncia. O que o ameaça. O que o salva.

O que é um artista? Alguém que tenta ser uma espécie de espelho do mundo, espelho no qual se refletem a vida e os seres que a vivem ou tentam vivê-la.
O que é um artista? Alguém que busca, por meio de tintas e telas (se é pintor), instrumentos musicais (se é compositor), palavras (se é escritor) recompor a existência humana e seus significados.
O que é um artista, afinal de contas? Para explicar isso direito milhares de livros foram escritos, milhares de artistas deram seu depoimento, e no entanto a resposta não é fácil nem é uma só.
É necessário, em primeiro lugar, saber que tipo de artista estamos falando. Por exemplo, um pintor: deve ter olhos. Um músico: deve ter ouvidos. E um escritor: um ator. Isso mesmo, um ator.
Um escritor é um homem que deseja “pintar” com palavras o que vê. Um homem que “canta” (se é um poeta) com palavras o que escuta. Um homem que procura, como se fosse um ator, vestir a pele da humanidade inteira (de um macho adulto, de uma mulher, de uma criança, de um velho) e com essa multidão de papéis que interpreta, atingir a voz e as verdades que servem para ele e para os que o lêem.
Um escritor sabe que uma boa história necessita de bons personagens. Bons personagens são marcantes, têm personalidade, falam de uma forma especial, como se o que dizem formasse um desenho único, irrepetível: o desenho de sua alma. Bons personagens possuem um modo original e próprio de falar. Suas frases, suas expressões, seu vocabulário, e também seus gestos, seu comportamento, suas roupas, suas manias, muitas de suas características, enfim, somam-se para compor um perfil que deixa fundas marcas no leitor, que impressiona, que vale como uma espécie de modelo humano exemplar.
Mesmo que esse modelo não seja exemplar, mesmo que se trate de um ser comum, de uma pessoa vulgar, sem qualidades, sem beleza, sem importância. A miséria – o drama – de sua desimportância constituem ótimo material literário.
Grande é o escritor que saiba “repetir” de forma convincente alguém que o leitor identifique (como a um vizinho, um parente, ou mesmo um desconhecido), alguém que o leitor reconheça como plausível, ou seja, verossímil. “Esse tipo de pessoa eu conheço” diria o leitor diante da personagem criada. Êxito do autor.Ou então, “que tipo mais extraordinário!” Isso nos casos de exceção, que combina mais com aqueles escritores capazes de criar gente que sintetiza o drama do homem diante dos mistérios da existência. Figuras cujo modelo não faz parte da nossa família (se fizesse, já tinha sido expulso). Figuras que julgamos únicas porque não lhes conhecemos a síntese senão ali mesmo, na obra.

Criar um indivíduo, tomando todos os cuidados, observando cada mínimo detalhe na descrição, nos diálogos, fixar um tipo de pessoa a partir de seus hábitos, do tom de sua voz, do jeito neurótico como passa a mão repetidas vezes pelo cabelo, ou como grita desnecessariamente, ou como pensa, sim, principalmente como pensa.
Um homem são suas idéias.
E, antes de que as examinemos, um homem é a coragem de pensar ou o medo de pensar. Um homem que tema tanto viver, um fraco, e que por isso não ouse elevar seu espírito tão alto, ainda assim é um homem – uma vítima de si mesmo –, e interpretá-lo é um trabalho rigoroso, complexo, e tanto o ator quanto o escritor são chamados a fazê-lo.
O escritor apresenta-se, muitas vezes – a maioria delas, inclusive –, sem ter sido chamado. Um viciado cometendo excesso, mas excessos que revelam nossa verdade humana (portanto, nossa humanidade), e um vício que se apóia em duas dependências: a beleza e a verdade.
O escritor denuncia. Transforma (sempre em algo maior). Cria, onde antes havia, se não o vazio, ao menos o insuficiente.
Ele é o fruto dourado de uma terra (quando sem arte) estéril. E brota. Ou faz brotar.
Sem ele, sem sua obra, é o mundo cego, surdo, mudo.
É o mundo uma dimensão plana, exígua, sem fundo.
É mundo, sim, mas não habitável.
O artista, qualquer que seja sua ferramenta (neste caso estamos falando do escritor), torna o mundo real mais legível. É como se, sem ele, a realidade fosse intraduzível, e, de alguma forma, invisível a si mesma.
Nesse sentido, o escritor, é sem dúvida, um deus. Só depois dele o mundo, enfim totalmente criado, está pronto para a confissão.
Como um deus, porém, solitário, essa confissão só pode vir dele. Os homens que ele tenta salvar estão calados. Ou perderam-se na babel de palavras. Por isso mesmo ele fala por eles. (09/08/2008)

9 comentários:

Paulo Seben disse...

Nem li o poste, confesso. Só passei pra dar uma flauteada leve.

Anônimo disse...

Seben,

nem precisa. Mais que colorado, sou um sujeito que pensa. E, pensando, o futebol não seria (área tão fundamental do conhecimento) algo a me escapar da sensatez. Reconheço há uns dois meses: o Grêmio tem um time, isto é, um conjunto, homogêneo, típico football association. O Inter é um conglomerado de jogadores, alguns com boa fama, mas, parece, que apenas deitados na cama...

E vê se me lê, ô, vagabundo! Segue o exemplo do teu time, que se esfalfa em campo!

Anônimo disse...

O homem Paulo é aquele homem que extrai o humus das palavras, com humildade, em sinal de respeito aos demais, como um esteta do silêncio, que repentinamente, no espaço de um sopro, resolve mandar tornados sobre nossas cabeças, nos tirar os pés do chão e causar aquela sensação de que somos possíveis como existencialistas ou como questionadores dessa posição rotativa e transladora na qual estamos ancorados na Terra, sem esperança alguma ou com todas elas juntas, sem poder organizar algo para falar. Era isto que queria te dizer. Tu verdadeiramente inspiras um outro da raça a contribuir com o diálogo. Para alguns outros na rua, chego até a falar do tempo. Contigo, sinto que vale a pena escrever e fazer deste vazio da existência o encher de balões São Roque.

Abraço, Gonzaga

Anônimo disse...

Li o primeiro, o segundo, o terceiro... Fui lendo, até o post número 10 de “Mistérios da criação literária”. E o que vi? Em vez de um simples e despretensioso blog, um curso quase completo de como se dá a química complicada que é 1) viver; 2) ler; 3) sentir a emoção que tantas experiências nos causam; 4) desenvolver técnicas de como criar enredos, personagens, diálogos, descrições; 5) e o cuidado com a linguagem, principalmente o vocabulário e o ritmo das frases. Não há o que dizer. É mãos à obra mesmo. Sigo meu instinto. Vou trabalhar em sala de aula com esse roteiro básico e, dentro dos seus limites, bem completo. Valeu, Paulo!

Prof. Emanuel Mendes dos Santos – Carazinho, RS.

Anônimo disse...

Prof. Emanuel,

fico grato, gratíssimo, com a seriedade com que o sr. acompanha meu trabalho aqui. A intenção é essa mesma. Proporcionar matéria de reflexão. E de carpintaria. Obrigado pelo estímulo de se mostrar tão estimulado.

Anônimo disse...

Escritor e jornalista Luiz Gonzaga Lopes:

teu comentário está um arraso. Redondinho. Deu-me vontade de roubá-lo e postá-lo aqui, como um texto a mais no meu blog. O melhor de todos. Parabéns e obrigado, amigo.

Melissa disse...

o poste, diz ele

Luiz Gonzaga Lopes disse...

Grazzie, Paolo!

Anônimo disse...

A oficina continua altamente séria e bem instruída. Em exemplos claros e bem estruturados. Sem dúvida isso é algo que merece respeito e continuação pelo caráter construtivo que reflete.

Abração

Jeff Negromonte