sábado, 20 de setembro de 2008

A MULHER QUE NOS DEU AS COSTAS

Flagrada na intimidade mais doce, aquela que parece anteceder uma posse (a sonhada posse masculina), a fêmea figura freqüenta a mente e a paleta de muita gente – Rafael, Goya, Renoir, e esses três são apenas alguns nomes centrais de uma prática de séculos e de centenas de artistas. O ítalo-brasileiro Eliseu Visconti (Villa di Santa Caterina, Giffoni Valle Piana/Itália, 1866 – Rio de Janeiro/RJ, 1944), em Dorso de mulher (68cmx41cm, sem data), trai sua predileção pelo esteticismo de Degas, diluindo aí a antiga poesia vaporosa de Renoir, poesia ausente nesta tela, mas marca fundamental do impressionismo em cujas luzes muito da pintura de Visconti se banha.

Estávamos na passagem do século XIX para o XX (não sabemos em que ano a tela foi pintada), entre o umbral do novo (agora velho) século e a década de 20, os ares da art nouveau lavando a pesada, densa luz do impressionismo que ficara para trás. O pontilhismo acenava de perto. O divisionismo dos neo-impressionistas, típico daquele tempo, fazia com que a cor estivesse sendo definitivamente perturbada, perdendo para sempre a rígida placidez dos tons clássicos.
Mas Visconti não trai a altiva intimidade dessa mulher que nos dá as costas. Ou melhor, que não nos nota, imersa na sua serena nudez, sem o langor renoireano, sem o movimento elegante de quem pede um espelho, tocada por uma luz que morre nela.

Acostumamo-nos a ser levados por essa displicente apresentação do corpo feminino: a lassidão de quem se estende, levemente erguida, levemente deitada. Convite e impedimento. A diferença, claro, não está nas mulheres, nem mesmo nas épocas (cuja nudez sempre antecipa o futuro), mas no estilo dos pintores, isto é, nos pintores, e seu olhar de macho, num primeiro momento amestrado, e num segundo, vitorioso pela mão civilizadora da arte. Todos – e não é preciso ser Fragonar ou Rubens – estacam ante a visão e ali ficam, mortificados, incapazes de dar um passo à frente sem antes gravar para sempre a imagem que os feriu.

O impressionismo briga com o fotográfico, afasta-se levemente do figurativo e, de certa forma, antecipa o abstrato, mergulhando na sede de luz, no susto ante o fulgor do mundo, ante a auréola nem santa nem demoníaca, mas pretensamente natural, num exagero que banha as formas e nos fecha um pouco os olhos como se um sol acendesse tudo. Num corpo não seria de se esperar esse facho, esse clarão, essa cor móvel, cheia de cintilações, que corusca com um calor úmido e ameaça falsear o que se vê. A luz então conhece a sombra e mais tarde busca um equilíbrio onde ela não é o elemento principal, ou melhor, ainda é, mas discretamente utilizado.

Visconti recupera em seu tempo a cena doméstica, a verdade sem o excesso lírico, a pele iluminada até onde somos capazes de ver, sem as ilusões pictóricas, visualmente retóricas. Como se uma toalha tivesse enxugado aquelas costas. Toalha que a própria mulher usou, sem a nossa miserável ajuda. (20/09/2008)

4 comentários:

Anônimo disse...

Lindo! Sempre especial quando abordas temas assim... Amei.

Beijo.

Joana Giacomazzi

Anônimo disse...

Bentancur:

fiz o seguinte: imprimi o texto, levei na bolsa, fui ao Margs, vi durante um bom tempo a tela. De vez em quando, lia o teu comentário. Umas três vezes. É uma experiência reveladora. Grata.

Luísa Alfaya, Porto Alegre.

Anônimo disse...

E depois dizem que a pintura é uma arte morta... Nenhuma arte é morta se AINDA faz sentido. E você mostra o quanto.

Ari Maciel (Recife, PE)

Anônimo disse...

A pintura de uma mulher expande e consme nossos pensamentos. E analisá-la compõe sensibilidade como qualquer outra arte.

belo texto, Paulo!!


Parabéns!!!

Jeff Negromonte