segunda-feira, 1 de setembro de 2008

A FILOSOFIA DEPOIS DA FILOSOFIA

A obra de Luc Ferry, em seu conjunto, aponta para uma nova filosofia
porque para uma nova função filosófica: não apenas descrever o sentido da vida,
mas achar na existência a sabedoria de melhor aproveitá-la, livre de dogmas.

Luc Ferry não matou Deus. (Quantos já o haviam matado antes!) Menos, ainda, o ressuscitou. Ressuscitou, sim, ao homem, que sempre aspirou ao sagrado. Sempre. Mesmo aqueles, numeroso contingente, que resistiam à idéia de qualquer religião. Religião envolve culto, imagem externa à consciência. O sagrado é um estado pleno no qual mesmo o ateu mais convicto deseja experimentar. O Budismo mostra isso. Luc Ferry recupera tais momentos no pensamento através dos séculos, e, levando questões vitais da filosofia, transfere-as para a vida cotidiana.
Se não se aplicam à vida, são questões meramente retóricas. Evidente: a vida de que fala Ferry é uma vida acima do que tem recebido tal nome, sem merecê-lo. O presente merece – e precisa – da transcendência sem para isso jogar fora conceitos que, aparentemente inoculados de um moralismo vicioso, mereciam apenas uma nova oportunidade. Um novo olhar. Luc Ferry examina, sem nenhuma espécie de a priori, isto é, sem pagar pedágio (o mais caro: o da nossa liberdade) aos que o antecederam pensando as mesmas questões.

Em A sabedoria dos Modernos, que escreveu em conjunto com André Comte-Sponville, em 1997, num sistema ágil de perguntas e respostas que povoam capítulos onde estão setorizadas dez questões para o nosso tempo, Luc Ferry e seu interlocutor exploram a fundo, sem hesitação – e, muito menos, sem retórica desviante –, questões decisivas, diagnosticando nessas questões dois caminhos para a filosofia contemporânea: como ser materialista e como ser humanista, simultaneamente. Óbvio: de tal indagação nascem e se multiplicam, sem cessar (filosofar é a permanência dessa transformação que avança à medida que cada ilusão se esboroa), aspectos elementares que envolvem ética, moral, a liberdade como um mistério, um bem, uma libertação para se chegar aonde a ausência dela não chega: o território multifacetado da vontade, as duas racionalidades, os paradoxos de uma humanização que inclui, inclusive, a crueldade.

Esse livro é o mais amplo e aprofundado estudo (independente da decisiva, quase antagônica – embora convergente –, mediação de Comte-Sponville. Mediação não. Nem Luc nem André se prestam para fazer eco um ao outro. Antes, ao buscar completar o pensamento do co-autor, ampliando-no, provocam-no, tornam o que foi resposta em uma nova pergunta. A sabedoria dos modernos é trabalhar, enfim, com a presença invisível do Absoluto até mesmo no homem precário, e, claro, no nada precário.
Ferry alerta: a filosofia está na moda. Cuidado. Pensar por si mesmo é uma condição que não existe; ou que só vem depois de muita prática e exercício (como em qualquer área) através dos principais pensadores dos últimos 2.000 anos. Não se trata de erudição. 90% pode ser deixado de lado. Mas a amplitude desses 10% constitui uma bibliografia sem a qual nossa voz não domina o idioma que poderia nos traduzir.


Sucesso para mais de 15 minutos

O que é uma vida bem-sucedida? – Ensaio, publicado cinco anos depois, ainda mostra um Luc Ferry que, embora se aproxime aos poucos do diálogo com uma maioria, não dispensa os referenciais filosóficos que tornam o pensar como gênero obra para poucos. Os temas não são áridos. Dizem respeito a qualquer um, intelectual ou vendedor de sapatos. A diferença entre “vida boa” e “vida bem-sucedida”. Um passeio, em linguagem condutora, isto é, sem o peso excessivo de uma redação que parece mais de compêndio (e que Ferry tanto critica) do que de um homem falando a outro. Naturalmente, de forma profunda, com exigências de um texto bem-escrito e alguma leitura anterior, a fortalecer a recepção.

Mas isso é o mínimo. E desse mínimo o autor parte para, não o máximo (quantitativo), mas o melhor possível. A confusão entre a performance (exigência social permanente, já instituída no coração da família) e a sabedoria em viver bem. Muito além do êxito, reflexo externo de ações, e provisório, o homem deseja, no fundo inconfessável “tão-somente” o bem-estar – difícil de definir, uma vez que é composto de inúmeros condicionantes, internos e externos. Luc Ferry o define, como filósofo do presente: uma frágil felicidade, que vem e vai, a confirmar, em frações separadas no tempo (nos diversos ciclos que ao homem é dado enfrentar), uma trajetória pessoal que não tem razão alguma para afundar.


Deus à nossa imagem e semelhança

Talvez o livro mais radical de Ferry seja O Homem-Deus ou O sentido da vida, lançado há um ano. A religião não perdeu por esperar. Se houve, através da história da Igreja, a humanização do divino, através de um Cristo misturado à multidão, morto entre ladrões, como um qualquer, há agora a imperiosa necessidade de divinizar o humano. O homem vive, desta forma, a confusão do novo estágio, onde o amor é sua experiência concreta de transcendência. Onde a morte é a presença do não-sentido. O sagrado até então conhecido se esvai. A vida tem prazo curto, e pede, então, mais do homem. E o confuso território dessas duas imagens – um Deus já cansado e um Homem que se instaura, enfim, como entidade suprema de si mesmo – é o espaço aberto onde uma nova humanização pode florescer e um sentido para a vida pode ser revelado: um sentido onde o principal incluído seja o próprio homem. Talvez o único.

Sucesso de vendas na França (terra dos filósofos, principalmente após a II Grande Guerra), Aprender a viver – Filosofia para os novos tempos (best-seller no Brasil por seis meses em 2007) é uma pequena e grande história do pensamento. Pequena por eleger apenas cinco momentos culminantes na história das idéias; grande porque Ferry traduz o que parecia intraduzível. Aos apressados é bom avisar: não se trata de um O mundo de Sofia (Jostein Garder) para adultos. A começar, pelo texto-síntese de Ferry, ao contrário do de Garder, que é arrastado. Depois, o dinamarquês fez ficção; Ferry faz ensaio.

E por quê, perguntarão muitos, ensaio de fundo filosófico terá tido tal êxito comercial? Porque 1) a filosofia hoje é uma resposta eficaz a apelos lamentáveis de fundo místico ou de auto-ajuda; 2) Luc Ferry mostra que filosofar não necessita de ferramentas inacessíveis ao dia-a-dia. Pelo contrário: o francês convence público em geral e críticos mais exigentes de que o pensamento acerca das questões mais cruciais e milenares, sobretudo se acompanhadas da parceria de gênios que em vinte séculos se debruçaram com método e paciência sobre elas, nos ajudam a compreender os temas mais comezinhos e os mais espinhosos de nossa vida. Tanto um caso (o do apelo místico) como outro (o da linguagem inacessível) serão desmentidos. Para melhoria – pela iluminação sem dogmas nem rigores insustentáveis – da existência do homem. (27/08/2008)

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Obras de Luc Ferry lançadas no Brasil

A nova ordem ecológica: a árvore, o animal e o homem. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Editora Ensaio, 1994.

A sabedoria dos modernos, em parceria com André Comte-Sponville. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Livraria e Editora Martins Fontes, 1999.

O que é uma vida bem-sucedida? – Ensaios. Tradução de Karina Jannini. Difel, 2004.

Aprender a viver – Filosofia para os novos tempos. Tradução de Vera Lúcia dos Reis. Editora objetiva, 2007.

O Homem-Deus ou O sentido da vida. Tradução de Jorge Bastos. Difel, 2007.

3 comentários:

Anônimo disse...

Alívio total! A filosofia, que voltou à moda, passou a falar português, inglês, francês das ruas, isto é, a linguagem com que todos nos comunicamos; quase a linguagem da crônica. Luc Ferry fez um achado, uma descoberta: se filosofar é espantar-se diante do mundo, este espanto deve se dar a campo aberto, sem esconderijos, que é o que a filosofia clássica sempre fez, escrita mais com jargões do que propriamente escrita com o corpo e efetivamente “falando” ao homem. Tínhamos que decifrar os filósofos, tarefa para um Atlas. Luc Ferry nos dispensou desta tarefa. Tomou ele a si a missão, e a resolveu, aparentemente, com muita facilidade. Depois dele, dá vontade de ler todos os filósofos – porém através do filtro de sua linguagem sedutora e LEGÍVEL!

Adalberto Correia Mattos, São Caetano do Sul, SP.

Anônimo disse...

O homem mostra bem cedo que é poeta e filósofo, desde os três anos. Todo mundo sabe disso. Depois, sei lá, com tanta frescura e artificialismo que embutem na nossa vida, perdemos a espontaneidade, o atalho que nos leva à verdade quando ela ainda não aprendeu a dissimular-se, e, adultos, dedicamo-nos a performances lingüísticas que mais embebedam nossas mentes que propriamente as educam com idéias claras (não necessariamente menos profundas). O intrincado pode ser claro. Intrincado enquanto extenso em seus nexos racionais, mas claro enquanto formulação. Só Luc Ferry faz isso. Os demais parecem enrolar em cima do pouco que têm a dizer. E se não é pouco, fica parecendo depois de tanta enrolação. Saúde ao idioma do qual a Filosofia, como qualquer área que da palavra se nutre, serve-se para mostrar-nos o real e a nós mesmos e não para brincar de esconde-esconde.


Solange Trindade Ruschell. Santo Ângelo, RS.

Anônimo disse...

Luc Ferry é um homem muito esperto que sabe dizer o difícil de uma maneira pop. É, sem dúvida, um astro da filosofia contemporânea que merece ser lido por todos.

Grande texto, Paulo

Jeff Negromonte.