sábado, 6 de setembro de 2008
ATÉ OS LOBOS SE ABATEM
Fausto Wolff, nascido em Santo Ângelo, em 8 de julho de 1940, morreu nesta sexta-feira, 5 de setembro (seria ridículo, por sua trajetória, cair numa data cívica: safou-se por dois dias), no Hospital São Lucas, em Copacabana. Dizem algumas agências que às 20h05min, outras, que às 21h (fica mais redondinho, né?). Falando em versões, atenção, internautas, alguns sites dão a data de nascimento como 17 de outubro, vá lá se saber por quê. Está no site do próprio Fausto, 8 de julho! Fora internado no último domingo – setembro tinha chegado, nada prometedor –, com hemorragia intestinal. O resultado é que entrou em estado comatoso e daí não saiu. Em cinco dias o grave quadro de insuficiência respiratória minou-lhe todas as resistências, se é que alguma havia. Os obituários falam da companheira, a psicanalista Monica Tolipan e de duas filhas, que deixa. A crítica, que nunca lhe deu muita bola, uma hora vai ter de se deparar com três maçudos referenciais não só de nossa época, a de Fausto, mas de várias épocas, uma vez que ele fez uma costura da história do mundo em A 1002ª noite (Bertrand Brasil, 2005). Os outros dois, são, primeiro, À mão esquerda (lançado em 1996, pela Ed. Civilização Brasileira, foi saudado à época como legítimo “romance de geração”, a geração que atravessou os anos 60-70). O terceiro volume a cutucar a fingida (duvido: a ignorância do establismenth, seja ele de que ordem for, inclusive cultural, pela natureza cínica, o faz cego e, assim, amplia-lhe o grau de desconhecimento, sem precisar fingir) é Olympia (Ed. Leitura, 2007), onde ele repete a estrutura cronística-aforística-fabular-colcha de retalhos de A 1002ª noite. Não é fácil acompanhar tais livros tanto pela erudição destilada sem alarde (vire-se, leitor!) quanto pela linguagem sem modos e, ao mesmo tempo, sem forçar a barra para impressionar. Fausto nunca cometeu literatices e nunca fez apenas jornalismo em sua ficção. Soube elevar o jornalismo à categoria de gênero de reflexão e a literatura que praticou sempre fez questão de esfregar sua cara na lama da história da civilização. Passou 40 anos escrevendo loucamente, publicando loucamente, mas como isso se deu a léguas do mundo acadêmico, e, além disso, produzindo ficção um tanto híbrida, tornou-se um lobo uivante (imagem, aliás, de seu blog), cujo saudável perigo – o de expor-nos e às nossas pusilanimidades e preguiças – parecia residir longe de nosso confortável condomínio, de onde saem as páginas que vão compondo a história da literatura que ficará para os futuros estudantes do curso de Letras. Fausto Wolff ainda não está nestas páginas por razões óbvias, extra-literárias. Mas às vezes a morte tem esse paradoxal poder de, mais que ressuscitar, fazer nascer (como a Lima Barreto, entre tantos exemplos) artistas que atingiram a plenitude estética em vida e o reconhecimento, só após a última pá de cimento úmido na catacumba de um cemitério. (06/09/2008)
Assinar:
Postar comentários (Atom)
8 comentários:
Bentancur:
o Fausto foi um jornalista (desculpe a brincadeira numa hora tão séria) "fáustico", isto é, de mãos dadas com o demo, mortal, agressivo, desconcertante. Como escritor foi ainda jornalista, e isso o atrapalhou. Mas concordo contigo que é mais culpa da crítica que do próprio Fausto e seu estilo.
Helmer Bastos - Rio de Janeiro, RJ.
Caro Paulo
A morte é uma merda, um desastre, conforme disse minha amiga Marisa Marega, "é muito triste perder inteligência". Fausto era isso, seus livros continuarão sendo isso, mas eu como seu discípulo, até onde eu podia, como seu admirador, bem menos do que ele merecia, e como seu amigo; não sou mais assim como eu era até sábado pela manhã quando você me deu a notícia da morte do Ogro, como dizia carinhosamente minha filha Thamara. Thamara a quem Fausto, em 2003, proporcionou segundo ela, seu melhor aniversário. E agora eu pergunto: o que posso dizer de um homem, um escritor, que me fez muito feliz e colocou essa alegria permanente em minha filha?
Não, Paulo, eu não tolero a morte, eu não respeito a morte. Eu temo a morte, mas temo com desprezo. E "tô muito puto" com o Fausto, ele não podia morrer.
Grande Luíz Horácio!
Uma honra tê-lo aqui, embora numa hora tão severa. Mas, que diabos, o Fausto bem que ia gostar, escritores reunidos, gente que sabe ler, como o Helmer, lá do Rio, enfim, dando um esporro na crítica, na morte, essa ceifadeira, e até no próprio Fausto, que nos largou sem um chefão da grande área para brigar por todos nós – como ele foi.
Atento Bentancur:
Chega a ser uma vergonha que um jornal metido a ser grande (isto é, a pensar grande também) como a FOLHA DE S. PAULO dê na edição de hoje, segunda-feira, uma pequena nota (9 linhas), no caderno "Ilustrada", sobre a morte de Fausto Wolff. Ele merecia uma página inteira, jornalisticamente falando. E estou sendo modesta, já que sabemos que os medalhões ganham duas páginas espelhadas, quando não um caderno inteiro. Mas de medalhão o Fausto não tinha nada. Aliás, se o tratassem como um, ele ia trocar a honra por um copo de uísque... Se bem que não bebia já nos últimos tempos. Bem, certamente dispensaria a honra e olharia nos olhos do admirador talvez com pena. Grande, enormíssimo Fausto, uma infelicidade ser grande neste país pequeno.
Beth Almeida - São Paulo, SP.
Caro:
Fausto Wolff era (foi) um sujeito difícil, intolerante às vezes, difícil de agüentar. No trato pessoal. Por escrito, difícil também, deixando-nos de saia justa frente a comentários que não deram chance das esfarrapas desculpas de sempre, da esquerda, ultimamente, e da direita, que nem tem preciso se desculpar mais. Sua crônica diária era motivo de todos os desagravos imagináveis e todos os processos – se processos assim se criassem. Mas ele não brincava com fogo, tascava fogo mesmo. À queima-roupa. Fosse em quem fosse. Sabia que o inferno (real) e o paraíso (metafórico) não estão cheios de boas-intenções, que isso de boas-intenções nem sequer existe. Estão cheios de lava, que é pior que lama. E no paraíso, na hipótese de você chegar lá, no mínimo corre o risco de ficar piegas rodeado de gente piegas e desinformada (as novidades só dizem respeito a catástrofes). Sua ficção é uma extensa e intensa crônica da formação da inteligência do mundo. Uma espécie de 1.001 noites travada em laboratórios, bordéis, prisões, expedições, e cérebros torturados por um tipo de alucinada lucidez que não deixa ninguém em paz. Não alguém como Fausto Wolff. Foi descansar, acredito. Merecia. Merece, agora, ser lido com mais atenção, conforme você apregoa em seu post, Paulo. É isso aí.
Bruno Tomasi (Salvador, BA)
Dá licença, Paulo. Eis a minha antologia do Fausto:
O ACROBATA PEDE DESCULPAS E CAI (romance, estréia do autor em 1966, Bertrand Brasil, 1998);
O HOMEM E SEU ALGOZ (contos, Bertrand Brasil, 1998);
O NOME DE DEUS: 10 HISTÓRIAS (contos, Bertrand Brasil, 1999);
O LOBO ATRÁS DO ESPELHO (romance, atenção que o livro é muito mais do que andaram dizendo!, Bertrand Brasil, 1999);
À MÃO ESQUERDA (romance, Bertrand Brasil, 2000), seu livro mais festejado, mais vendido até agora, lançado há 12 anos;
A MILÉSIMA SEGUNDA NOITE (romance, Bertrand Brasil, 2005);
OLYMPIA (Leitura, 2007). De certa forma, seu testamento literário.
Obs: A partir de 2007, a ed. leitura, de Belo Horizonte, adquiriu os direitos da maioria de suas obras. Assim, já há edições desse ano, recém lançadas, com novo projeto gráfico, de O LOBO ATRÁS DO ESPELHO, À MÃO ESQUERDA e seu segundo romance publicado, em 1968, esgotado até então: O CAMPO DE BATALHA SOU EU. Sem contar, claro, com o derradeiro OLYMPIA.
Essa lista é imprescindível.
Heloísa Frotta Spina (Belo Horizonte, MG)
Paulo,concordo com o Luiz Horácio que essa tal da morte é uma merda. Conversei e gostei muito de ter conhecido o Fausto apenas uma vez quando ele esteve aqui em Porto Alegre.
Obviamente ele bebeu mais que eu, falou mais que eu, atuou mais que eu (pois numa das noites deu uma entrevista ao vivo na TV COM afirmando que Brizola tinha sido assassinado) e não pegou mais mulher que eu pois eu já estava comprometido e ele com saudades da mulher.
Numa das conversas ele explicava para o Scharlau que somos,eu entendi assim, livres e infinitos dentro de nós mesmos. Acredito que mesmo,obviamente,sabendo da finitude da própria, se sabia imortal em relação aos outros.
Mesmo nas pequenas linhas dos grandes jornais se manifesta a verdade irrevogável, mesmo que piegas ou clichê.
Morre o Homem.
Nasce o Mito.
E, sim, nós, os Homens, assim como Fausto, também renascemos nos Mitos.
Ps.: Mas que a morte é uma baita sacanagem, isso lá é, Luiz.
Marcelo, amigo desconhecido ao vivo, tão vivo no que escreves:
obrigado pelo comentário, mais que um comentário, um post dos mais sérios (no sentido de qualidade), a nos deixar bem acompanhados neste enterro simbólico. Não seca a indignação com essa trajetória faustiana nem a trajetória similar, a derradeira, destinada a todos nós. Por isso lemos gente como Fausto Wolff. Naõ aceitamos menos da vida.
Grande abraço.
Postar um comentário