quarta-feira, 17 de setembro de 2008

ARESTAS, APARAS, ARTE 3

O homem condenado

A inteligência cria tantas armadilhas quanto a mediocridade.
A mediocridade leva o homem ao deserto espiritual. A inteligência, ao inferno espiritual.
A mediocridade causa dependência, mas compensa com o fácil convívio social. A inteligência vive da surpresa, cria todo o tempo, mas torna-se impotente num mundo que se transforma só por fora. O medíocre corre todo o tempo, alimenta o mundo que o aceita sem queixas, mas ele, medíocre, mergulhado nesse êxito sem sobressaltos, acorda de um sono limpo para uma vigília onde uma sombra que nunca se deixa entrever vai aumentando cada vez mais, até mostrar sua verdadeira cara apenas no dia de sua morte. Mas aí é tarde para acordar.
A inteligência, ao contrário, é derrotada diariamente (pelo conformismo e pela preguiça e pelo obscurantismo), que não atrapalham a administração do progresso e os jogos de poder, e quando desiste de lutar, e cala-se dentro de um corpo murcho e doente, fatalmente condenado, ouve enfim – mas tarde demais – o reconhecimento hipócrita de que estava certa antes, o tempo todo. Mas já não lhe resta nem oportunidade para o alívio, que dirá para o sorriso.
A inteligência que fica é uma inteligência estuprada. Olha para o lado: vê então uma nova inteligência, inteligência porque nova. Que monta armadilhas. A maior delas: retira uma pedra do castelo, depois outra, e através do buraco espia o outro lado. Os condenados a não chegar até o lugar onde a consciência vigia são os primeiros a denunciá-la. A inteligência constrói seus próprios obstáculos: cada pedra que retira cai sobre sua cabeça.


Prazos

O tempo nunca chega na hora.



O cavador de poços

Fui eu quem cavou o poço do qual alguns tiraram água boa, outros água benta, e no qual ainda outros se afogaram.
Será minha obra benfazeja ou maléfica? Será minha essa obra?
Se o poço restasse só, sem nenhuma boca ávida, sem nenhum olho curioso, só poço sem testemunha, de que adiantaria tê-lo cavado?
Meus protegidos e meus exploradores completam o que fiz e o que deixei de fazer. Cavo poços, não sei fazer outra coisa. Nem eles, a não ser esperarem.
E há também os que me ignoram. Esses, cavam seus próprios poços.
Ainda bem: precisamos de poços.


Verdade sobre a colheita

A melhor flor do Paraíso, é preciso ir ao Inferno para buscá-la. (17/09/2008)

5 comentários:

Anônimo disse...

Paulo:

depois testas três séries de "Arestas, aparas, arte" dá para dizer que são o seu "Caderno H", para lembrarmos o também gaúcho Mario Quintana?

Ieda Conceição Passos, Nova Friburgo, RJ.

Anônimo disse...

Ieda:

agradeço não só a visita, mas também a leitura e, sobretudo, a comparação, que me orgulha. Mas, olha, não sei não. Quintana era um metafísico que entregava o inadiável pensar para o humor ou a saída lírica. Acho que tenho um tom mais grave, que me denuncia sempre. Vejo-me numa sintonia mais fina com, por exemplo, o argentino Julio Cortázar de "A volta ao dia em 80 mundos" ou "Último round", ainda que nesses livros-almanaque cortazarianos os apontamentos têm fôlego, não são simples pinceladas que é o que eu, por enquanto, estou fazendo. Porém, tudo certo: pode ir enchendo a minha bola que fico pra lá de contente. Beijo grande!

Anônimo disse...

Caro blogueiro:

nesse diapasão de realizar similitudes com outros autores, quero trazer à tona Kafka, um exemplar aforista e um criador de parábolas. Acredito que "O fazedor de poços" é bem kafkiano. Você acerto em cheio nesse trecho.

Lucas Bastos (Santo André, SP)

Anônimo disse...

Paulo, muito melhor esses textos curtos, com espaços pra correr o ar, pelo menos pra gente míope como eu. Quanto à sintonia com o velho cronópio, sinto falta daquela atmosfera entre melancólica e cômica. Abraço.

Ernani Ssó

Anônimo disse...

Paulo,

gostei muito do conto de setembro.

Beijo.

Joana Giacomazzi