terça-feira, 10 de junho de 2008

CÃO NO FRIO

Quem quer saber do menino que há 41 anos chegou a Porto Alegre? Quem quer saber do que lhe aconteceu? Escrevo para quem quer saber. Para mim, em primeiro lugar, não porque nosso natural, necessário egocentrismo (sem ele dificilmente eu produziria algo além de panfletos ou manuais) se satisfaça em acariciar o próprio ventre, imagem fácil e, por isso, enganadora, mas justamente por ser ego e autocentrado: exponho-o na nudez exata daquilo que ele especialmente desejaria esconder e/ou exibir. Não sou quem o lê. A tarefa, ingrata às vezes, é verdade, mas surpreendente, pertence ao leitor, e só a ele. E o leitor me flagra como eu desejaria me flagrar. Assim, só me resta pedir emprestados os olhos confiáveis do leitor. Que não os nega. E então posso ver.
Quem escreve está sempre cego sobre si mesmo e só pode enxergar a distância, o que, de alguma forma, não o habita, e por não habitá-lo desafia-o à compreensão. Caminha em direção à realidade estranha e cada passo é uma revelação, por menor que seja. Mas quando o mundo habitado – mundinho – representa o único espaço possível (o eu), dele não se saindo, nele se estando preso, ah, amigos e inimigos, sabeis o quanto o cativeiro nos aproxima desse enganador eterno: o narrador como narrativa, o autor como personagem, o eu como um “ele” (nunca como um “nós” porque aí cairíamos na generalização, inocente e criminosa). E não adianta nem mesmo a sua autopiedade, se ele não souber disfarça-la bem. Aliás, ela é perigosa. Em geral não aparece, e quando aparece não é de autopiedade necessariamente que se trata.
Dada a aproximação, visto de perto, cada vez mais de perto, mais de dentro, mais egocentrado, mais egocentrífugo, mais egolatrina (no mínimo mantendo o pudor de jamais cometer a egolatria), esse “eu” se espanta como ainda cresce, depois de tantos anos passados, e revisita o menino já morto e desenterrado e decomposto, a exigir que se parta do pó numa exumação rigorosa, científica, adivinhando ossos, carnes, aspecto (nem as fotos antigas são confiáveis), tentando lembrar a voz fina, o andar ligeiro, o pânico do desconhecido, o alumbramento com o desconhecido, a excessiva emoção sempre ao lado.
Esse menino começou tudo. Um menino assim. Parecido. Não tenho como apontá-lo com o dedo. Impossível achá-lo entre papéis, entre declarações de parentes vivos que o viram correr, soltando pandorgas em Livramento. Lembro, vagamente (e por isso, por ser vaga, a lembrança é livre, e, pela liberdade, intensa, disposta a aliar-se a outras emoções de agora, estranhas ao menino). Daí meu ego vaga, entre vivos e mortos, sobretudo eguns (que lembra “ego” na sonoridade mas quer dizer “mortos” no candomblé que minha mãe, sem saber direito, praticou). Eguns (e não “mortos”, expressão menos aplicável) devido à condição de espectros emparedados no tempo, dali saindo transfigurados, todos eles hoje vivos – mas outras pessoas, transformados que foram pela vida.
Eu, inclusive.
Por isso a necessidade de buscar o menino que já não há, que não posso alcançar. E remo, remo, contra a agitada e excessiva corrente verbal, numa prolixa navegação até achar um ponto (não sei se o acharei) onde possa parar e saltar e mergulhar até o fundo feito de areia quase imperceptivelmente sendo movida, eternamente, pelo céu compacto da água que nos afoga.
Volto à superfície para respirar. Sem o menino, não encontrado. Mas o evoquei como se pode evocar: de mil maneiras, todas elas inúteis. Todas elas urgentes.
O ego feito egum, destroçado nessa busca frustrada, retoma a cotidiana tarefa de refazer-se, cada vez enrodilhando-se mais ainda, como um cão no frio, querendo ficar aquecido enquanto não consegue compreender-se. (10/06/2008)

2 comentários:

Anônimo disse...

Paulo,
um bom texto também aquece o leitor.Mais, talvez não acredites mas, este menino está bem aqui, em cada texto, em cada verso.
Que bom pra nós que um dia este menino veio de Livramento.
Tua fã nº1
Joana

Anônimo disse...

Amigo:
o presente de um homem não existe sem seu passado sempre presente.
Parabéns tche!
Abraço
Marco Antônio