quinta-feira, 26 de junho de 2008

O SENTIDO E O DESEJO

Os amigos mais fiéis, que não deixam de freqüentar este blog, e os curiosos de plantão, cuja maior virtude (imbatível como virtude, a meu ver) é a inquietude sedenta em saber, não importa se para discordar depois, devem, imagino, debater-se – como tanta gente que me escreve e-mails (5.000 em um ano; ah se e-mail falasse, vendesse etc.) – acerca de temas recorrentes e básicos e, embora responsáveis por um certo rebaixamento no nível das discussões, vitais. São eles, os tais temas: a verdade e a mentira. E dessas duas raízes migram múltiplas vertentes, todas elas carregadas nas costas por dois personagens trágicos: o verdadeiro e o mentiroso.
Verdade: franqueza, coragem, sensatez.
Mentira: inconfiabilidade, covardia, cegueira.
Dei alguns exemplos, não necessariamente paralelos; não, se considerarmos o rigor como método, correspondentes em seu antagonismo.
Mas são dois temas ou, para simplificarmos, duas palavras que vão e voltam, insistem, incomodam – particularmente, me exasperam. Não sei quanto a vocês.
Com elas somos adulados – quando apontam a presença da verdade no que escrevemos, quando acham que a ficção que praticamos, por sua pretensa inventividade (como se trata da minha ficção, só posso usar o obrigatório "pretensa"), demonstra a) primeiro franqueza, no trato das situações cotidianas, b) depois coragem, no enfrentamento de circunstâncias mais espinhosas (a mediocridade, a solidão, a opção por um trabalho sem mercado, as perdas carregadas sem um grito de protesto, os amores precários e o sexo insuficiente ou desencontrado) e, por fim, c) a lucidez, típica do sensato, em reconhecer a impotência do real para nos empurrar para dentro dele mesmo, ou então o seu inverso, a truculência desse real fechado num sistema de correlações físicas onde nossa vocação ao abstrato só tende a quebrar a cara.
E se escrevo sobre isso, e se tento recriar tais instantes de engasgos de realidade boca adentro da mente retorcida tentando amparar-se nas pernas e nas mãos hesitantes, dizem-me: “não tens medo da verdade, e confio em ti.”
Já recebi essa manifestação generosa uma quantidade enorme de vezes. E concordei com ela. E discordei. Discordei porque o oposto, paradoxo, é verdadeiro.
Minto. Minto por instinto, por vocação, por necessidade (como um cão faminto fuçando a lata de lixo do coração humano, doente; vasculhando no cérebro humano, antigamente chamado de "alma", "espírito", e outras palavras das quais hoje é indigno. Ou menos ingênuo, talvez). Por isso minto, e o atalho da mentira serve-me para chegar, rápido, à verdade.
Mentira não como verdade negada, mas mentira como verdade em diagonal porque simplesmente a verdade não cabe numa caixinha, numa forma de linhas retas e previsíveis e de extensão modesta, numa linearidade a tornar qualquer um capaz de carregá-la no peito, com ou sem cachaça no bucho. “Afinal, o cara só fala as verdades, doa a quem doer.” Ora...
Não confundir sinceridade com verdade. Não conheço ninguém mais sincero que uma mula, que um mau escritor. Os maus escritores a-do-ram abrir o coração.
Sinceramente falando, acho o ser sincero um superficial, um apressado, um suicida, ou, o oposto, um homicida, um insensível, capaz de crueza digna de médico militarmente informando a um doente sem remédio – que até ontem ignorava sofrer de algo – que o sujeito tem os dias contados.
Sua franqueza é sua inconfiabilidade humana. Seu uso indiscriminado da verdade é cegueira. Sua inábil exigência de coragem por parte do paciente é covardia.
Tema amplo, como se vê. Desdobrável. Que se confunde e que troca, ironicamente, de lugar.
Quando escrevo poesia busco não o mundo como se o mundo fosse um ente constituído de forma exemplar. Exatamente por razão oposta, faço poesia para jogar contra um mundo que nega a transcendência, essa rotina miraculosa do poema quando ele acerta, quando ele fere a vida metida a apequenar o homem só porque ela, a existência no seu todo, sem um Deus para poder ser citado (eu, pelo menos, não o tenho), faz de um Nietzsche, por exemplo, quando ele era vivo, primeiro um professorzinho bizarro e depois um maluco complicado de se lidar.
Acima de qualquer verdade, o afeto. Que depende de mentiras para sobreviver e que dispensa coragens, caga pra sensatez quando ela ameaça torná-lo tão-somente um querer confortável e, por ela nos proporcionar tanta conveniência no trânsito do mundo, faz brotar a gratidão afetuosa que de nada vale como expressão afetiva.
Então o que resta? Muito. Muito o que discutir.
Tudo isso são sentidos, significados que se dá e se tira conforme o olhar, o enigma proposto – pequeno ou grande –, a urgência afetiva de encontrar uma resposta que nos salve do ressecamento. Para que encontremos, de fato, o afeto, efetivo.
Mas então esbarramos nesse auto-engano, o desejo. Na vontade irrefreável de desenhar o conceito, de contornar o traçado todo de lógicas que nos protejam, nos acomodem. Como desejamos arder na febre de ir além do já sabido porque sabemos que é quase nada, de tão pouco. E como desejamos um encontro doce com a paz de não precisar desse fogo demolidor que molda formas e idéias, e enquanto não se extingue (e não se extinguirá nunca, para o bem e para o mal), enquanto crepita, continuaremos à procura do sentido, quase sem sentir. Fazendo sentido ou não, construiremos sentidos absurdos e destruiremos sentidos brilhantes. Resvalando fácil nessas armadilhas arcaicas – feito as de pegar passarinho –, armadilhas que atendem por nomes como verdade ou mentira. E que dá pra dizer que são tudo a mesma coisa. Além delas é que a vida minimamente inteligente começa. (25/06/2008)

2 comentários:

Anônimo disse...

Caro blogueiro:

Bom, vamos ver se entendi, "seo" Paulo. Mais do que cativos da razão, a razão é cativa dos nossos desejos, anseios, e mesmo emergências. É isso? Esclareça, por favor. Ler o que o senhor escreve sempre me leva a pensar. Mas pensar também pode ser confundir-se, cair noutra armadilha. Refiro-me a pensar desse jeito, dessa forma que o senhor pratica. Pensar todo mundo pensa toda hora. Não tem como não pensar. Mas pensar a fundo... Eita! Parabéns pela sua profundidade. O diabo é que eu, como leitor, preciso ler um texto denso assim e, enquanto mergulho nele, necessito também de respirar.

João de Neves Mattos / Natal, RN

Anônimo disse...

Impossível ler Bentancur sem ficar sufocado(menos os infantis é claro).
O tema de hoje, noooossa foi loge heim?Bateu forte!
Mas, muito bom, alguém tem que fazer isso, menos mal que seja aqui(o resto fica para o terapêuta).
Beijo.
Joana.