Haja fôlego! Soprar sobre cem velas só o diabo, no meio do redemoinho. Com a ajuda do redemoinho. Pois é o que acontece com “Grande sertão: Veredas” (1956), para uma multidão de gente boa (e alguma má), o romance mais ambicioso e bem-realizado de nossa literatura. E isso que ela, a literatura, tem, do velho Machado, outro aniversariante por estes dias, “Dom Casmurro”, tem “Memórias póstumas de Brás Cubas”, tem... Bom, aqui o tema, agora, é Guimarães Rosa, que nasceu a 27 de junho de 1908 e, portanto, hoje estaria comemorando um século de existência! Cem anos. E a literatura do homem está novinha em folha.
Outro dia um amigo, mais inteligente impossível, honesto ao ponto de não cair na firula do beletrismo mesmo metido a vanguarda, muito menos ir atrás da reputação como verdade crítica, reclamou de Joyce e de Rosa. Comentou que eles escrevem de fora para dentro e não o contrário. Esquecem o miolo e, como um Deus na criação (imagem joyceana, e nem por isso menos óbvia) sopram seu foguinho e espalham labaredas pra tudo que é lugar. É um auê, ê, ê, etc. Meu amigo quis dizer, óbvio, que os caras estão mais preocupados com a performance do que com a história. Ou com a personagem. Só lhes interessa a linguagem e desta fazem uma espécie de vestuário à base de plumas e paetês.
Não vou discutir meu amigo, que continua sendo inteligente e que declarou estar a cada dia que passa mais próximo daqueles homens que, à luz das fogueiras contra o frio e iluminando suas cavernas, queriam a narrativa pura, sem intermediários nem desvios nem devaneios estéticos. Uma arte sem arte, entendem? Aparentemente sem arte. Entendo o que diz. E sei que está certo no que gosta. Mas isso não anula (ele não disse que anulava) outro tipo de solução.
Eu, por exemplo, nunca dancei, exceto uma valsa com uma de minhas filhas, Maria, quando ela tinha nove anos. Formatura das séries iniciais na escola. E não fumo um baseado há décadas. E não bebo (e penso, claro, em bebida de qualidade, em vinho argentino no inverno, em um uísque daqueles) há no mínimo uns dez anos. É desumano!
Só bebo água tônica porque, dizem, uma das propriedades do quinino é de brochar, isto é, “acalmar” o cara. Sou naturalmente ansioso, e essa ansiedade, que me mata, me estimula também, me ergue e me leva até onde a narrativa pura leva meu amigo. Simples: nossas necessidades não são as mesmas. E nem a literatura precisa ser sem deixar de ser boa literatura.
Simenon confessou uma vez que escrevia um livro todo e na primeira revisão cortava toda frase bonita. Deixava só aqueles que de fato funcionassem em favor da trama, das personagens. O Erico Verissimo, quando o visitei, a primeira vez, aos meus dezesseis anos, me disse que a prosa do Simenon era a melhor prosa francesa desde Montaigne. (Anotem essa. Meu amigo, acho, vai anotar.) O mesmo Erico, chateado com alguns críticos que reclamavam que ele “apenas contava histórias”, numa época em que Clarice Lispector (com licença!) e Guimarães Rosa (ave, palavra!) desfilavam saltitantes como os mais exuberantes escritores brasileiros, declarou, entre ressentido e irônico, “não tenho talento verbal”. Cabe o ressentimento, sabe a ironia. Mas isso não destitui o talento verbal de quem escreve “aquela coisa” chamada “Água viva” ou o Rosa de “Meu tio o Iauaretê”, um conto cujo protagonista e narrador é um homem-onça, cada vez mais onça, perdendo a palavra e narrando, paulatinamente (desculpem a expressão, o advérbio, mas estou me homenageando, participando da festa, Paulo que sou), com palavras-ruídos, palavras-rosnados, palavras-gemidos, palavras criadas pelo Rosa não para se exibir, mas para não trair a personagem e não perder o fio da história.
Foi um criador de enredos, alguns incríveis – como “A terceira margem do rio” –, como qualquer grande contador de histórias. A literatura possui diversos elementos: trama, personagem, linguagem, para começar. Aí vem espaço (cenário), atmosfera (derivação deste), e, sim, tempo, tempo no qual o escritor, quanto mais brilhante for, deita e rola nessa “ambiência abstrata” (a temporal), indo e voltando. Coisas para uma Virgínia Woolf, por exemplo.
Mas sinto que me perco. É fácil se perder nessa seara. Guimarães Rosa tinha dezenas de cadernos nos quais anotava palavras de todas as procedências. Era um lexicógrafo também. Um erudito do vocábulo. Se fosse só isso, ia ser um chato de galochas diante do qual teríamos que engolir sua enorme cultura. Mas já no primeiro livro, “Sagarana”, de contos, num deles, “O duelo”, abre sua história com essa maravilha em ritmo e em jeito, novo e jamais podendo ser acusado de fabricação estilística só pela vaidade de dar um drible a mais (cito de memória, sem conferir): “Toríbio Todo era seleiro por profissão. Tinha pêlo nas narinas, chorava sem fazer careta. Palavra por palavra, era papudo, vagabundo, vingativo e mau. Mas no começo desta história ele estava com a razão.” E a história envolve traição, assassinato – e por engano! Guimarães Rosa canta escrevendo, pia como passarinho quase a cada frase, mas não é pela inocente presunção de achar que lhe basta a exaustiva e sempre constante pesquisa de vocabulário, do modo de vida do jagunço no sertão das Gerais (Minas-Goiás, oeste brasileiro, numa faixa onde há seca e onde também existe mata rasteira e, de árvore, pouco mais que buritis, aliás, a mais alta palmeira do País). Tratou de recriar isso tudo, esse quase nada (“nonada”) que ele manuseou como quem constrói uma catedral – sempre contando histórias, legitimamente arrancadas daquele mundo ermo, remoto, quase da idade da pedra, um pouco depois... –, em páginas até hoje impecáveis e imbatíveis (se se tratasse de uma competição; ainda bem, não é. Rosa admirava escritores com projeto estético bem diferente do dele, até o oposto: eis a questão).
Cem anos, hoje! E outros cem se passarão e ele nunca terá, pesando em seu estilo, esse incômodo pó das épocas, depositado em cima da linguagem de que se utilizam os escritores de seu próprio tempo.
Nesse sentido, Guimarães Rosa foi um extemporâneo. Daí chegar aos cem anos como se tivesse nascido ontem. Ou fosse irmão de Homero. (27/06/2008)
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2 comentários:
Maravilhoso, Paulo.
"Sertão. Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Viver é muito perigo..."
(Guimarães Rosa, em Grande sertão:Veredas.)
Paulo: Guimarães Rosa é o mago do sertão e da linguagem da Literatura Brasileira Universal. Dizia(Carlos Drummond de Andrade) Sopramos, nós as cem velinhas com nosso mestre. Começando com quatro contos que escreveu para a Revista "O Cruzeiro", donde ganhou cem contos de reis.Em 1934, inicia sua carreira diplomata. Quando retorna ao Brasil, faz uma viagem a Mato Grosso,após escreveu uma crônica reportagem criando o personagem "Manuelzão", inspirado no senhor Maunel, (matogrossensse, vivo até hoje).
Ei Paulo e os demais leitores: João Guimarães Rosa viveu apenas 54
anos de idade! Mas nos deixou obras imortais como: "SAGARANA"(1946), "CORPO DE BAILE" e "GRANDE SERTÃO: VEREDAS"(1956). Em 1967, tornou-se imortal da Academia Brasileira de Letras, três dias antes de morrer. Reescreveu a língua portuguesa brasileira. Sendo um escritor por pura necessidade.
"Grande Sertão: Veredas",é uma das obras mais universais da literatura brasileira.Ele( escritor) usa elementos para você ir para o mundo interno dos personagens.É indagação metafísica do bem e do mal.Transforma o mundo numa linguagem transcedental.
"Assim é o sertão:ora particular, pequeno e próximo;ora universal e infinito, pois "o sertão é o mundo" ou, melhor ainda, "o sertão é dentro da gente". Por isso, logo na abertura de Grande Sertão: Veredas o autor nos situa diante do problema:
"O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucúia. ..."
Ainda para salientar a poesia, o ritmo e as aliterações de sua linguagem, transcrevo um trecho do conto "O Burrinho Pedrês", em que o autor narra a caminhada da boiada, intercalando quadrinhas populares cantadas pelos vaqueiros:
"As ancas balançavam e as vagas de dorsos, das vacas e touros, batendo com as caudas, mugindo no meio, na massa embolada, com atritos de couros, estralos de quampas, estrondos e baques, e o berro queixoso do gado junqueira, de chifres imensos, com muita tristeza, saudade dos campos, querência dos pastos de lá do sertão...
'Um boi preto, um boi pintado,
cada um tem sua cor.
Cada coração um jeito,
de mostrar o seu amor.'
Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando... Dansa doido, dá de duro, dá de dentro, dá direito... Vai, vem,volta, vem na vara, vai não volta, vai varando...
'Todo passarinh' do mato
tem pio diferente.
Cantiga de amor doído
não carece ter rompante...'"
(ROSA,João Guimarães. In: Sagarana.15.ed. Rio de Janeiro, J. Olympio,1972. p. 23-4.)
Paulo, falar assim de Guimarães Rosa, me fez lembrar de meu, já falecido, avô materno. Ele seus irmãos foram boiadeiros. Transportavam boiadas do Rio Grande do Sul(São Nicolau, Missões)para as Minas Gerais. Cantavam quadrinhas de boiadeiros e vaqueiros.
Maira Beatriz Engers (Professora de Literatura,poetisa,escritora- Porto xavier/Santa Rosa-RS)
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