segunda-feira, 29 de setembro de 2008

HÁ CEM ANOS MORRIA MACHADO DE ASSIS

“A vida é boa” ele disse, em alto e bom som, para quem o pudesse ouvir no sobrado da Rua Cosme Velho, 18, enquanto suas forças iam se extinguindo.


Cronologia comentada

21/06/1839 – Nasce no Morro do Livramento, no Rio de Janeiro, filho de agregados, o pai era filho de escravos recém libertos. Pintor de paredes. A mãe, branca, era lavadeira. No mesmo ano, seis meses antes, nascera Casimiro de Abreu, futuro autor de As Primaveras, e nelas, o poema “Meus Oito Anos”: “Oh! que saudades que eu tenho/ Da aurora da minha vida,/ Da minha infância querida/ Que os anos não trazem mais !”, publicado quando Machado faria 20 anos e trabalhava para Paula Brito.

1845 – Perde a irmã, Maria, de quatro anos. E, talvez perda maior: a madrinha e protetora, Maria José de Mendonça Barroso. Aqui há controvérsias. Morta tão cedo, como se pode inferir que o papel da madrinha teria sido decisivo na salvação material e intelectual do menino. Não foi à toa que ele vendeu balas fabricadas pela madrasta e aprendeu francês numa padaria.

1849 – Morre-lhe a mãe. As raízes se soltam. Com ela, o pai morre um pouco, ou se desvia, o que dá no mesmo.

1854 – Primeira produção que pode ver impressa. O poema “Soneto”, no Periódico dos Pobres, a 3 de outubro. Quase nunca citado. Três meses depois, a 15 de janeiro de 55, num periódico de reputação, Marmota Fluminense, sai o poema “Ela”, tido como sua real estréia. Não foi.

1856 – Ingressa na Imprensa Nacional, como aprendiz de tipógrafo. Lá conhecerá Manuel Antônio de Almeida, que o ajudará muito. Almeida é autor de um livro que não faz grande sucesso num ambiente de românticos sem humor, mas sem dúvida é, daquele período, das poucas coisas que sobreviveram. Certamente isso terá causado algum impacto positivo em Machado.

1860 – Entra em cena o jornalista. E o comediógrafo. Que não pararão, com idas e vindas, entre a imposição do contista – a produzir até o apagar das luzes – e a cada vez maior consistência na carreira do romancista. Mas deve ao jornalista a prática e um público e ao comediógrafo a reputação de vôos mais altos no início. Promessa que cumpriu.

1861 – Morre Manuel Antônio de Almeida. Sai de cena o segundo protetor. Mas logo não precisará mais deles. Machado de Assis, escrevendo sem parar e, paradoxalmente, rigoroso no projeto e na execução, com uma obra que é, mais que sólida, renovadora porque não se ancora no já feito, arrojada nas proposições temáticas e formais, terá apenas na esposa outros braços estendidos.

1860-63 – O comediógrafo mostra as unhas. Aparadas. Sua primeira peça: Hoje Avental, Amanhã Luva. E logo: Desencantos, O Caminho da Porta e O Protocolo (saem num volume, O Teatro de Machado de Assis, no mesmo ano). Quase Ministro, também de 63, sai em separado.

1864 – Inicia colaboração que marcará época. No Jornal das Famílias, muitos de seus contos saírão durante mais de uma década. O que lembra a fase do argentino Jorge Luis Borges em El Hogar, nos anos 1930.

1864 – Sai seu primeiro livro. Crisálidas, poemas. A crítica vasculhou em vão, nesses poemas derramados (mesmo com versos regulares), alguma pista do Machado que sobreviveu à própria morte. Ficasse só nos poemas, e não o teríamos lembrado. Não deixa, no entanto, de configurar, essa observação, uma injustiça. O processo do artista é longo e irregular, como o de maciça maioria dos artistas, mesmo os grandes. Aos 25 anos era praticamente impossível estabelecer autonomia estética num meio onde criadores fadados a serem esquecidos antes de morrer ditavam as regras. Ele não as seguiria em breve. Mas era preciso esperar

1866 – Desembarca do navio, que a trouxe de Portugal, Carolina Augusta Xavier de Novais, quatro anos mais velha que ele e amiga de Camilo castelo Branco e de outros escritores portugueses.

1869 – Casamento com Carolina. Residem, primeiramente, na Rua dos Andradas. Cinco anos depois, muda-se para a Rua da Lapa. Em 1875, para a Rua das Laranjeiras. O casal busca o abrigo que os fortaleça.

1870 – Edição de Contos Fluminenses e Falenas (poemas). Nos contos, uma evolução na prosa que se fazia então. Na poesia, nada de novo.

1872 – Realiza seu romance inicial, Ressurreição. Já traindo a tradição romântica, coloca o casal, dois protagonistas, num jogo contido onde há mais embate que a exaltação das certezas do desejo mútuo.

1873 – Entra para o funcionalismo público, no Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, e lança Histórias da Meia-Noite, segunda incursão no conto.

1874 – Segundo romance, A Mão e a Luva. Estréia como folhetinista. Depois, no mesmo ano, o romance sai em livro. Guiomar, moça segura de si, de origem humilde, vê a chance de ascensão social pelo casamento. Três são os pretendentes. O fiel Estevão, tratado no entanto com certo desdém pelo narrador. O óbvio, oco e desimportante Jorge, o mais parecido com Guiomar, mas sem charme, naturalmente. E o ambicioso Luis Alves, determinado, com planos políticos e sociais. Apesar desse cenário que a escola romântica não aprovaria, fica evidente a escolha de Guiomar por Luis Alves. A união dos dois é tão certa como a mão e a luva. O cético Machado já dá as cartas em sua fase “romântica”.

1875 – O poeta dá mais um passo. Sai Americanas, seu terceiro livro no gênero. Antecipando uma pausa lírica que durará 26 anos.

1876 – Helena, terceiro romance da primeira fase do autor, vem a público. Talvez o mais frágil porque Machado nele não se detém – como, ao contrário, sempre foi sua marca – no detalhamento psicológico das personagens. É a menos machadiana de suas ficções: o enredo domina tudo. Desde o forte início, com a morte de um homem poderoso, o surgimento de uma suposta filha, Helena, que ele tivera com uma amante, a paixão – recíproca – entre Helena e Estácio, o irmão da moça, até o desfecho surpreendente. O que parece uma ameaça de incesto terá uma reviravolta. Amores paralelos (por Helena, da parte de Mendonça, e por Eugênio, suposto irmão da moça, da parte de Eugênia, prometida desde a infância ao filho do homem poderoso, rico) e interesses de ascensão social, esses sim marca recorrente no universo ficcional de Machado fazem de Helena um roteiro que se insere no corpus de sua obra, mas o tom com que tal roteiro se mostra abre mão das nuances características do escritor, sempre a criar armadilhas e dissolver qualquer possibilidade de evidência. O enigma de Capitu não é um capítulo isolado em sua criação.

1878 – Encerra o ciclo romântico com Iaiá Garcia. Não à toa nesse mesmo ano publica seu célebre ensaio contra o naturalismo de Eça de Queirós em O Primo Basílio. Talvez o mais bem acabado romance da primeira fase. Como se fosse a fronteira entre os jogos afetivos infindáveis e as questões morais e suas derivações a apontar outra concepção de literatura, que se dará dali a dois anos. Em Iaiá Garcia temos a sombra constante do amor entre Jorge, moço rico, e Estela, de origem pobre. A mãe do rapaz, viúva rica amiga do também viúvo Luís Garcia, pai de Iaiá – na verdade Lina –, sabe do interesse do amigo maduro pela moça. Trata de afastar o filho, convencendo-o a alistar-se na Guerra do Paraguai. Depois dá um dote à Estela e a convence que Luís Garcia, um bom partido, pacato e caseiro, é o melhor rumo para a vida da moça. Jorge também era amigo do pai de Iaiá, e confidencia-lhe, quando Luís Garcia já está casado com Estela, dos verdadeiros motivos de sua ida ao Paraguai. Omitindo, por respeito, a identidade da moça que a mãe não queria que ele desposasse. Antes do retorno do rapaz, morre-lhe a mãe. Jorge retorna. Passa freqüentar a casa de Luís Garcia e naturalmente cruzam-se ele e Estela, sempre havendo tensão no encontro entre ambos. Iaiá, muito próxima do pai, conhece-lhe a fundo e percebe a perturbação de Estela nessas horas. Sobretudo quando o pai mostra à esposa as cartas do amigo confessando seus amores proibidos pela mãe, sem citar o nome da pretendida. Na volta Jorge trouxe um amigo, Procópio, que logo se interessa por Iaiá. Faz de Jorge seu confidente, na busca de alguma chance com a filha de Luís Garcia. No entanto, querendo resguardar o pai de uma grande decepção, Iaiá decide-se casar-se com Jorge e, para isto, tenta conquistá-lo, apesar do sentimento de repulsa que o rapaz lhe causava até então. Contando com seus dotes, acaba por noivar com o moço. Entretanto, antes do casamento, morre o velho Luís Garcia. O plano da heroína perde o significado, e Iaiá desmancha o noivado. Mas os dias mostram que, de fato, ela agora está apaixonada por Jorge. Procópio Dias, o pretendente rejeitado, fortalece as suspeitas da moça, insinuando relações amorosas entre Jorge e Estela. Esta, descobrindo o que levou Iaiá a romper o noivado, convence-a de que suas suspeitas não têm fundamento: tudo há muito se resumia às lembranças do passado. Reaproximam-se os noivos e Estela serve-lhes de madrinha no casamento. Após isso, muda-se para São Paulo, onde vai trabalhar na escola de uma amiga. Ainda o Romantismo exige de Machado de Assis respostas, mas a resposta, cada vez mais, é tipicamente machadiana.

1878/79 – Séria enfermidade nos olhos. Passa longa temporada em Nova Friburgo, RJ, em busca de recuperação. Tempo de renovar-se. Muitos biógrafos apontam esse episódio de sua vida como a fronteira entre a primeira fase e a segunda, que vem logo em seguida.

1880 – Tu, só tu, puro amor, peça em homenagem ao terceiro centenário da morte de Camões (1525?-1580). Resume-se ao papel de homenagem. O excessivo psicologismo, no caso, não se adéqua à cena e menos ainda à odisséia relacionada ao episódio camoniano. O teatro é o gênero onde Machado menos acertou. Não à toa só voltará a publicar duas peças, as derradeiras, 26 anos mais tarde.

1881 – Ano-marco na vida do autor. Sai Memórias póstumas de Brás Cubas, seu romance mais original, difícil de definir. Espécie de rapsódia, à qual o autor não voltará nos livros seguintes, mesmo atingindo em alguns nível semelhante de excelência. Algo impossível de se extrair do livro, para começar: uma sinopse. Basta dizer que quem narra é um defunto, que começa o livro no dia de sua morte e a narra, num resumo simplificado, de trás para diante. A literatura brasileira nunca mais seria a mesma.

1882 – Sai mais uma coletânea de contos, já com marcas inconfundíveis da maturidade: Papéis avulsos. O volume abre com "O Alienista", uma novela de 90 páginas que muitos chamam de conto, e que está entre as criações máximas do autor. Para coroar o livro, destacam-se ainda "Teoria do medalhão", "A sereníssima república" e "O espelho", um dos contos mais estudados de Machado.

1884 – Machado e Carolina mudam-se para a casa definitiva, o sobrado na rua Cosme Velho, 18. Nesse mesmo ano sai Histórias sem data. O contista consagra em definitivo o escritor: só neste volume encontram-se "A igreja do Diabo", "Cantiga de esponsais", "Singular ocorrência", "Galeria póstuma", "Capítulo dos chapéus", "Noite de almirante" e "As academias de Sião".

1888 – É nomeado Oficial da Ordem da Rosa por Dom Pedro II. Uma semana após a proclamação da Leia Áurea, libertando os escravos, Machado, avesso a “excessos” públicos, desfila em carro aberto.

1891 – Sai Quincas Borba, segundo romance do seu trio maior (completado com Dom Casmurro) de narrativas longas do autor. O livro dialoga com o Memórias póstumas... A começar pelo personagem homônimo, amigo de Brás Cubas e a quem este seguia como um exemplo de saber, sobretudo por sua filosofia, no Quincas Borba explicada: o Humanitismo. Além disso, o “pensador” – a ironia machadiana nos leva a desconfiar de que sua filosofia seja mero pretexto para nos passar a perna ou, mesmo, que ele seja um alucinado – tem um cão a quem deu seu próprio nome. Quando morre, deixa uma herança em dinheiro para o amigo Rubião, desde que este cuide do cão. O título alude ao filósofo “louco” ou ao animal de estimação? É do pensamento de Quincas Borba, o homem, a frase famosa: “Ao vencedor, as batatas.”

1896 – Sai um de seus mais importantes livros de contos, Várias histórias. Basta que se diga que nesse volume reúnem-se "A cartomante", "Uns braços", "Um homem célebre", "A causa secreta", "Conto de escola" e "Um apólogo". Funda a ABL – Academia Brasileira de Letras e é eleito seu primeiro presidente a 15 de dezembro.

1897 – Sílvio Romero publica o mais notável – pela infelicidade – estudo sobre um grande autor na história da crítica brasileira. Chama-se Machado de Assis, simplesmente, e é a primeira e, ao mesmo tempo, mais enfática resistência à obra machadiana. Acusa aos demais críticos de superestimarem o autor, em quem vê apenas “O estilo de Machado de Assis, sem ser notado por um forte cunho pessoal, é a fotografia exata do seu espírito, de sua índole psicológica indecisa. (...) Vê-se que ele apalpa e tropeça, que sofre de uma perturbação qualquer nos órgãos da linguagem. Machado de Assis repisa, repete, torce e retorce tanto suas idéias e as palavras que as vestem, que deixa-nos a impressão dum tal tartamudear. Esse vezo, esse sestro, tomado por uma cousa conscienciosamente praticada, elevado a uma manifestação de graça e humour, era o resultado de uma lacuna do romancista nos órgãos da palavra”. Diversos trechos revelam o tom preconceituoso de Romero, levando em conta a origem pobre do autor, a gagueira, a timidez, e o fato de ser mulato, como determinantes de uma impossibilidade.

1899 – Outro ano que marca a vida de Machado. Sai Dom Casmurro, romance que, na forma, retoma a narrativa até certo ponto linear de antes de Memórias póstumas... Trata-se de um dos três livros mais estudados das letras nacionais. Só sobre Dom Casmurro, ambígua história de uma aparentemente evidenciada traição, pode-se formar uma biblioteca média de produção crítica nos quase 110 anos de seu surgimento. Também publicado nesse ano, Páginas recolhidas confirma que o contista chegou ao auge há duas décadas. No volume, não bastassem "O caso da vara", "Idéias de canário" e "Filosofia de um par de botas", integra o conjunto "Missa do Galo", seu conto mais discutido.

1901 – Talvez sob o impacto do novo século, Machado faz um balanço de sua poética. Publica seu quarto e último volume de poemas, Ocidentais, e igualmente reúne toda sua produção no gênero, em Poesias completas.

1904 – Sai seu penúltimo romance, Esaú e Jacó, considerado, junto com o próximo, obra crepuscular, uma espécie de queda no projeto estético machadiano. Inevitável. Já tinha feito mais do que todos os que o tinham antecedido – e talvez do que os pósteros. E era um ano que se adivinhava amargo. Em outubro, morria Carolina, que durante 35 anos o acompanhara em tudo, sendo até mesmo sua secretária e revisora. Fortes dores no estômago, agravadas por uma receita equivocada de um farmacêutico, precipitaram o fim por causas que, então, não eram diagnosticadas.

1906 – Publica seu último livro de contos, Relíquias de casa velha, sendo que ali promove uma miscelânea, abrindo o volume com seu melhor poema, “A Carolina”, e logo em seguida com uma narrativa breve que também se inclui entre suas melhores: "Pai contra mãe". Os outros 41 textos, alguns pendendo à crônica, a maioria contos mesmo, recolhem o que ficou pelo caminho, textos esparsos na imprensa, saídos entre 1874 a 1894, reunidos em ordem cronológica.

1908 – Vem à luz seu derradeiro romance, Memorial de Aires. Em 29 de setembro, uma grave infecção intestinal e uma úlcera na língua debilitam seu estado de saúde a ponto de fazê-lo fechar os olhos pela última vez, já madrugada. Muita gente o acompanhava em casa. Não aceitou quando lhe ofereceram um padre para a extrema-unção. “Seria muita hipocrisia.” (29/09/2008)

sábado, 27 de setembro de 2008

PITACOS

O título geral desta seleção de breves textos foi surrupiado de meu primo Alexandre Ribeiro, que escreve bem pra caralho (como mais um primo meu, aliás, e que, como ele, faz questão de esconder o próprio talento). Mal de família, vocês entendem.


Faltam 2 dias!

Na segunda-feira, 29/09, completa-se um século inteirinho que o Sr. Machado de Assis abandonou o próprio corpo à sorte dos vermes que logo, logo roeriam as frias carnes de seu cadáver. Enquanto seus contemporâneos sobreviventes e as gerações futuras teriam para sempre uma literatura pra lá de viva, à disposição deles, leitores, aferrados a uma arte verbal capaz de roer – como quem não quer nada – também a nossa moral e os nossos péssimos costumes.


Dica de leitura urgente

As confissões do homem invisível, de Alexandre Plosk, é um caudaloso romance recém-lançado pela Bertrand Brasil (391 páginas, R$ 49,00). Nem parece literatura brasileira. Está tudo lá: Maupassant, H. G. Wells, alguns cientificismo que lembram a vigília dos obsessivos protagonistas de Edgar Allan Poe, e, principalmente, o estilo Plosk, único, sem antecessores e – duvido! – continuadores na tímida literatura nacional. Escrevemos bem, sim; mas pensamos com muito medo, indo pouco além da sobrevivência dos nossos umbigos. Não sabemos contar histórias e, muito menos, pesadelos intermináveis nos quais o real suplanta o quase naturalismo da má-consciência burguesa. Plosk nos livra de tudo isso: oferece diversão, angústia, assombro, novidade, viagem no tempo, no espaço, sem psicologismos previsíveis, e com narradores decididos e atormentados num nível acima da média, o que daria ótimos filmes. Não pelo (muito bom, sim) Fernando Meirelles, mas por gente de Hollywood, como os Irmãos Cohen ou até o Woody Allen. Brasileiros sofrem de cegueira para tamanha imaginação.


Dica de filme

Como a última vez em que fui ao cinema o chato do Glauber Rocha ainda estava na onda (é... só vejo tevê a cabo. Não é preferência, é falta de tempo mesmo para enfrentar uma saída, o tempo de espera no cinema, e o retorno: escrevo a Odisséia nesse intervalo todo), indico no canal 81, MGM (Metro-Goldwyn-Mayer), o longa de 1994 Romance entre amigos (“What Happened Was”, literalmente O que aconteceu foi...), dirigido e estrelado pelo Tom Noonan, que contracena com Karen Sillas, e que entre quinta-feira e sexta, ontem, passou três vezes. Passará outras, é só ficar de olho.
O filme são os dois atores, e só. O mais impactante (aliás, uma peça de teatro filmada) é o ritmo marcadamente arrastado, truncado, em que palavras, emoções e ações parecem travar na hora H. Se é que existe alguma hora H nos 91 minutos de duração da história. Que história? Jackie (Karen Sillas, que está ótima, como o parceiro e diretor), solteira além de “uma certa idade” – mas ainda atraente –, é uma secretária em um escritório de advocacia. Vive uma profissão e uma vida medíocres. Convida Michael (Noonan), colega de trabalho, numa sexta-feira, para jantar no apartamento dela. Quem sabe role algum clima… Pois a absoluta ausência de clima (estampada na atuação impecavelmente inexpressiva dos dois) revela, paradoxalmente (a desesperança é o avesso do desespero pela esperança), que tudo pode acontecer. Quase ao final de um jantar monótono, tenso diante das supostas possibilidades que jamais decolam, Jackie revela que fará aniversário dali a dois dias, e que resolveu antecipar a festinha. Só para os dois. Ele se sente pressionado. Mas, no fundo, é um homem pressionado – independente daquela situação. Trata de se mandar. Quando ela começa a recolher o bolo que nem comeram, as bebidas que nem chegaram a abrir, Michael, já na porta, começa a falar (enfim!) e o que fala nada revela além de seu cotidiano tão precário quanto o dela, esvaziado de qualquer chance. Nessas horas em que a fala de um cala a do outro (jamais ocorre a interação do estilo pingue-pongue), emerge da vastidão deserta e (nunca gélida) morna de um mar onde jazem afogados, à espera, sempre à espera, a solidão mais crua que já presenciei encenada.
Por fim, o desabafo do parceiro é apenas o monólogo elíptico de um estranho. Jackie ousou ainda revelar: “gosto de você”. É pouco para tanto isolamento, instaurado em cada um. Michael, tendo revelado sua existência sem-graça, vai embora. Jackie começa a apagar as luzes. Eu aplaudi. Na frente da tevê, comovido, inquieto, aplaudi. (27/09/2008)

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

ENQUANTO O TEMPO TENTA PASSAR INCÓLUME



E já que ninguém gava...

Zeca gava. Domingo, 28/09, sai na revista Época, na seção "Mente aberta", um artigo-relâmpago meu sobre dois livros do meu autor de cabeceira, o argentino Julio Cortázar: A volta ao dia em 80 mundos e Último round, ambos editados pela Civilização Brasileira (que no Brasil edita toda a obra de Cortázar), cada um deles em dois voluminhos de se levar apertados contra o peito, feito uma colegial apaixonada. São contos, artigos, ensaios, poemas, e centenas de imagens. O que o autor chamava de "livro-almanaque". Não seria uma forma antecipada de blog? Originalmente saíram em 1967 e 69, respectivamente. Cortázar, que amava Júlio Verne, era um visionário mesmo, a exemplo de seu mestre.


Faltam 4 dias!

Contagem regressiva para se marcar (relendo os livros, claro, e não com fogos de artifício) os cem anos, não da morte do cidadão Joaquim Maria Machado de Assis (21/06/1839–29/09/1908), mas um centenário que uma obra de qualidade quase inexplicável foi sua herança, deixada a quem estiver disposto a conferir – e bem tratada, diga-se de passagem.


Legítima efeméride

"Efeméride" é uma palavra pra lá de anacrônica. Bem... A Academia Paulista de Letras andou homenageando Paulo Bonfim, lembram (os mais velhos, digo) de Praia de sonetos e outros ós e ôs que um distraído como o Guilherme de Almeida andou incensando? Pois Bonfim é o atual Príncipe dos Poetas Brasileiros (apelo de novo à vossa memória: lembram do Olavo Bilac, o primeiro de todos a receber nobiliárquico título?), ocupa a cadeira 35 da dita academia, completará 82 anos um dia depois do Machadão completar 100 anos de morto, e, sim, está vivo, o homem, vivo! E eu achando que Paulo Bonfim, Paulo Setúbal e outros Paulos cujo sobrenome agora me foge à memória estivessem mortos. É possível que estejam. Na literatura, obviamente. Mas não era disso que falávamos?


Personagem não chora, não gargalha

Semana estranha. De repente me vejo, em oficinas de redação criativa, debatendo até a exaustão o fato de que há um excesso de personagens se desfazendo em lágrimas, gargalhando até não poder mais. Alertei aos autores de semelhantes excessos: na vida, que não tem o menor senso estético, chorar pode ser fundamental (além de inevitável), livrando, sobretudo aos homens, de possíveis ataques cardíacos; gargalhar é uma das coisas mais contagiantes – supondo-se que a piada seja boa mesmo. Porém, na literatura, o diabo sempre se apresentando nos detalhes, chorar tem 83,6% de chances de esvaziar o efeito dramático de uma situação que, sim, levaria qualquer um ou a maioria às lágrimas, mas, uma vez omitidas no texto, criam a tensão emocional decisiva para que o leitor, este liberado para tais excessos, reaja como reagir. Imagine-se um personagem às gargalhadas. O motivo de tal reação, ficcionalmente falando, tem de ser muito bem justificado, criado de forma irretocável. Sem uma atmofesra extremamente propícia, tais gargalhadas nos deixarão, frente às páginas, sem-graça, achando aquilo tudo, senão gratuito, exagerado, constrangidos talvez. Em suma: os personagens que pintem e bordem, e aos leitores que sobre toda a histeria do mundo. Observação: claro, personagens choram e riem, está mais do que óbvio. Mas em situações ante as quais o leitor nem discute, fica inclusive pensando: "puta que o pariu..." Última observação: o tema é amplo, naturalmente, e não é numa nota que irei esgotá-lo. (25/09/2008)

sábado, 20 de setembro de 2008

A MULHER QUE NOS DEU AS COSTAS

Flagrada na intimidade mais doce, aquela que parece anteceder uma posse (a sonhada posse masculina), a fêmea figura freqüenta a mente e a paleta de muita gente – Rafael, Goya, Renoir, e esses três são apenas alguns nomes centrais de uma prática de séculos e de centenas de artistas. O ítalo-brasileiro Eliseu Visconti (Villa di Santa Caterina, Giffoni Valle Piana/Itália, 1866 – Rio de Janeiro/RJ, 1944), em Dorso de mulher (68cmx41cm, sem data), trai sua predileção pelo esteticismo de Degas, diluindo aí a antiga poesia vaporosa de Renoir, poesia ausente nesta tela, mas marca fundamental do impressionismo em cujas luzes muito da pintura de Visconti se banha.

Estávamos na passagem do século XIX para o XX (não sabemos em que ano a tela foi pintada), entre o umbral do novo (agora velho) século e a década de 20, os ares da art nouveau lavando a pesada, densa luz do impressionismo que ficara para trás. O pontilhismo acenava de perto. O divisionismo dos neo-impressionistas, típico daquele tempo, fazia com que a cor estivesse sendo definitivamente perturbada, perdendo para sempre a rígida placidez dos tons clássicos.
Mas Visconti não trai a altiva intimidade dessa mulher que nos dá as costas. Ou melhor, que não nos nota, imersa na sua serena nudez, sem o langor renoireano, sem o movimento elegante de quem pede um espelho, tocada por uma luz que morre nela.

Acostumamo-nos a ser levados por essa displicente apresentação do corpo feminino: a lassidão de quem se estende, levemente erguida, levemente deitada. Convite e impedimento. A diferença, claro, não está nas mulheres, nem mesmo nas épocas (cuja nudez sempre antecipa o futuro), mas no estilo dos pintores, isto é, nos pintores, e seu olhar de macho, num primeiro momento amestrado, e num segundo, vitorioso pela mão civilizadora da arte. Todos – e não é preciso ser Fragonar ou Rubens – estacam ante a visão e ali ficam, mortificados, incapazes de dar um passo à frente sem antes gravar para sempre a imagem que os feriu.

O impressionismo briga com o fotográfico, afasta-se levemente do figurativo e, de certa forma, antecipa o abstrato, mergulhando na sede de luz, no susto ante o fulgor do mundo, ante a auréola nem santa nem demoníaca, mas pretensamente natural, num exagero que banha as formas e nos fecha um pouco os olhos como se um sol acendesse tudo. Num corpo não seria de se esperar esse facho, esse clarão, essa cor móvel, cheia de cintilações, que corusca com um calor úmido e ameaça falsear o que se vê. A luz então conhece a sombra e mais tarde busca um equilíbrio onde ela não é o elemento principal, ou melhor, ainda é, mas discretamente utilizado.

Visconti recupera em seu tempo a cena doméstica, a verdade sem o excesso lírico, a pele iluminada até onde somos capazes de ver, sem as ilusões pictóricas, visualmente retóricas. Como se uma toalha tivesse enxugado aquelas costas. Toalha que a própria mulher usou, sem a nossa miserável ajuda. (20/09/2008)

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

ARESTAS, APARAS, ARTE 3

O homem condenado

A inteligência cria tantas armadilhas quanto a mediocridade.
A mediocridade leva o homem ao deserto espiritual. A inteligência, ao inferno espiritual.
A mediocridade causa dependência, mas compensa com o fácil convívio social. A inteligência vive da surpresa, cria todo o tempo, mas torna-se impotente num mundo que se transforma só por fora. O medíocre corre todo o tempo, alimenta o mundo que o aceita sem queixas, mas ele, medíocre, mergulhado nesse êxito sem sobressaltos, acorda de um sono limpo para uma vigília onde uma sombra que nunca se deixa entrever vai aumentando cada vez mais, até mostrar sua verdadeira cara apenas no dia de sua morte. Mas aí é tarde para acordar.
A inteligência, ao contrário, é derrotada diariamente (pelo conformismo e pela preguiça e pelo obscurantismo), que não atrapalham a administração do progresso e os jogos de poder, e quando desiste de lutar, e cala-se dentro de um corpo murcho e doente, fatalmente condenado, ouve enfim – mas tarde demais – o reconhecimento hipócrita de que estava certa antes, o tempo todo. Mas já não lhe resta nem oportunidade para o alívio, que dirá para o sorriso.
A inteligência que fica é uma inteligência estuprada. Olha para o lado: vê então uma nova inteligência, inteligência porque nova. Que monta armadilhas. A maior delas: retira uma pedra do castelo, depois outra, e através do buraco espia o outro lado. Os condenados a não chegar até o lugar onde a consciência vigia são os primeiros a denunciá-la. A inteligência constrói seus próprios obstáculos: cada pedra que retira cai sobre sua cabeça.


Prazos

O tempo nunca chega na hora.



O cavador de poços

Fui eu quem cavou o poço do qual alguns tiraram água boa, outros água benta, e no qual ainda outros se afogaram.
Será minha obra benfazeja ou maléfica? Será minha essa obra?
Se o poço restasse só, sem nenhuma boca ávida, sem nenhum olho curioso, só poço sem testemunha, de que adiantaria tê-lo cavado?
Meus protegidos e meus exploradores completam o que fiz e o que deixei de fazer. Cavo poços, não sei fazer outra coisa. Nem eles, a não ser esperarem.
E há também os que me ignoram. Esses, cavam seus próprios poços.
Ainda bem: precisamos de poços.


Verdade sobre a colheita

A melhor flor do Paraíso, é preciso ir ao Inferno para buscá-la. (17/09/2008)

domingo, 14 de setembro de 2008

ARESTAS, APARAS, ARTE 2


Autocrítica

Shakespeare sabia tudo de Ben Johnson e nada de William Shakespeare.


Os cachorros

A obra, como um carro, corta a estrada, vêm os cachorros – o público –, e latem, como se fossem morder o metal blindado contra sua curiosidade de gengivas escuras.
A obra, como um carro, corta a estrada, estaciona nas livrarias, há latidos nos jornais, há rosnares, babas de fome por outra coisa, e logo desistência, a comprida língua de fora pelo fôlego curto, o rabo entre as pernas, o carro longe, esquecido.


Não perguntem ao autor

O homem termina mais uma de suas peças. Lê novamente o que acabou de escrever, francamente incomodado. Mais que as dúvidas habituais que assaltam os que pensam e produzem, em regra pressionados por prazos, o espírito do homem é tomado de um tormento já rotineiro: novamente vê no que criou a marca do excesso, do imperfeito.
Relê tudo com uma atenção desconsolada. Lá estão, bem claros, o enredo improvável, cheio de episódios de exceção, os personagens descontrolados, neuróticos a um passo do inverossímil, e suas falas então, literárias em demasia, de uma profundidade só cabível a um artista, não a um homem ao qual a arte não elegeu.
Sente-se incoerente esse homem que escreve. E, mais que incoerente, falho. Aceita a incoerência (não é ela moeda corrente em suas obras?), assim como aceita o descontrole emocional, o ridículo nos atos das criaturas que põe em cena, o despropósito de suas decisões, a natureza quase bestial de algumas, quase divina de outras. Aceita isso, sim, mas aceita como aceitamos um ritmo cego que nos toma e nos carrega e logo que ele acaba saímos em outra direção.
E tudo isso que o homem escreve é feito numa linguagem que pinga, ressuma, reverbera. Muita música, muita imagem, muita ação, muita legenda. O homem sente-se francamente cansado. Cansado de tudo. Sabe que errou miseravelmente em seu projeto estético. Perdeu desde a primeira linha a possibilidade do equilíbrio. Qual seu destino?
Evidente: cair. Cair do mais alto sonho até a mais baixa realidade. O mundo é impiedoso, disso ele sabe. Que glória poderá esperar? Nenhuma. Claro que nenhuma. O consolo é o relativo sucesso mais imediato – por enquanto ele está vivo e é isso o que mais importa – que seu trabalho faz junto ao público, vulgar, como se sabe.
Quando acaba o espetáculo, ele volta para casa, e logo já bola outra peça descabelada, outro exagero, outro conjunto de vilanias, ridículos, incongruências, únicos sinais que lhe acenam e depois dos quais ele duvida que tenha chegado ao ponto certo.
Um dia morrerá, não se ilude, tudo terá acabado, mas as dívidas não se acumularão, alguma herança material restará, e se seu nome – William Shakespeare – tiver sido varrido da face da Terra, ele não estará presente para lamentar esse resto de silêncio. Até porque concordaria com ele.


O grande consolo

Shakespeare, como a maioria de nós, não sabia o que estava fazendo.


O necessário

É preciso fazer para saber o quanto falta.


O prêmio

Se a coragem é insensata, se o risco é suicida, levam consigo a vida (este prêmio) e a entregam à morte, esta sim sem sentido.
Se o medo é seguro, se o recuo nos mantém na sobrevida, quando a morte chegar – mesmo que demore –, só aí trará um sentido para o que antes não tinha nenhum.


Pensar, esta indelicadeza

Filosofar nada mais é do que enfim esticar os pés da inteligência herdada no berço, herdada mas que não pode ser exercitada em convívio.


Trabalho

O trabalho nos trabalha.


Rotina

Há um enigma enorme na obstinação da rotina.


Tempo mínimo

Leitura é tarefa mais infinita que o amor. Um dia o amor esgota. Um dia o amor aplaca. Um dia o amor desama. E custa a se renovar. E quem amou duas vezes na vida, ou três, já amou muito e pode dar-se por satisfeito. Mas ler...
Imagino três coleções apenas, três súmulas do conhecimento humano e da arte: a enciclopédia espanhola Espasa-Calpe (em mais de cem volumes), a Biblioteca universal de obras célebres (em cerca de 50 volumes) e Vidas ilustres, de Plutarco, que chega a uns 30 tomos. Só esses três monumentos (após cuja leitura poderíamos nos dar por satisfeitos e prontos para olhar o mundo com um mínimo de consciência) levariam mais de trinta anos para serem lidos. Só três coleções! Imagine-se os 200 autores inevitáveis, obrigatórios, os dicionários a serem consultados com vagar, os idiomas necessários para que não acabemos tristemente monoglotas, ilhados numa só língua. Eis o cálculo para um homem passar por esta vida sem ter sido cego diante do supremo prazer, o saber: 300 anos para ler o básico. (14/09/2008)

ARESTAS, APARAS, ARTE

Cuidado com certas modéstias

Modéstia, em alguns casos, é talento modesto.


Advertência

Obra que é obra não tem espelho. 1) Não pode ser imitada; 2) O próprio autor, ao buscar repeti-la, fracassa. E só lhe resta então partir para algo inteiramente novo. Aliás, por fazer exatamente isto é que ele destrói qualquer possibilidade de espelho e constrói a obra. Abandona-se a cada livro, órfão de si mesmo; e diante do espelho desejado (fácil e resumidor) nada o reflete, condenado como um vampiro que deve beber o sangue de todos, mas jamais o seu.


Legado

Anos e anos tentando, e fracassando como um miserável sem sol. A obra não lhe vinha, não de forma aceitável. Aliás, vinha-lhe a obra, sim, mas em forma de condenação: sua derrota cotidiana, o peso terrível de acumular fracassos. Faltava-lhe, talvez menos que engenho, paciência. Sua vida tinha sido até então aquela marca inapagável do insuficiente. E perto dele só ficavam os que não desejam obra alguma, os que aceitavam o silêncio vazio.
Até o dia em que de repente ele achou a direção certa, e fez o que sempre sonhou, e acertou, ah, acertou, sem nenhuma dúvida acertou. E quis ficar quieto, quando terminou de criar, abraçado a um resto de rancor feliz por enfim ter acertado. Imaginou finalmente pertencer-se.
Porém, o primeiro homem que passou por perto teve a atenção despertada pela obra, e interessou-se, e logo outro, e outro, e outro. E em pouco tempo muitos estavam querendo aquilo para eles. E pegaram o que ele achava que lhe pertencia. E, antes mesmo de transformarem a obra em outra coisa (ele já o pressentia), levaram-na para bem longe. E só lhe restou começar tudo de novo, órfão do que criara, reiniciando o doloroso ritual para que nascesse outro filho ou obra, que também lhe seria arrancado, se se fizesse atraente, e deformado bem longe dos seus braços.


Consagrados tentam (em vão) ler os novos

Os jovens escritores, inseguros, carentes, afoitos, não desejam ler os mais velhos, experientes e consagrados escritores. Não desejam mas deveriam. Ao contrário, querem que os maduros empreguem seu pouco tempo em ler suas experiências, suas tentativas, suas promessas. Os escritores maduros, por sua vez, esforçam-se para achar tempo para ler os que estão começando. Os jovens deveriam poupar-lhes tempo, ao invés de roubar-lhes a preciosa e rara disponibilidade. E deveriam, eles sim, jovens, passar a maior parte do seu tempo lendo aqueles que deixaram de ser jovens há muito. Mas quem está começando quer mesmo é mostrar-se, ao invés de ver. E quem é visto não precisa mostrar-se.


Problemas de geografia

Melhor ser um escritor brasileiro mais ou menos do que um maravilhoso escritor sul-rio-grandense. (10/09/2008)

sábado, 6 de setembro de 2008

ATÉ OS LOBOS SE ABATEM

Fausto Wolff, nascido em Santo Ângelo, em 8 de julho de 1940, morreu nesta sexta-feira, 5 de setembro (seria ridículo, por sua trajetória, cair numa data cívica: safou-se por dois dias), no Hospital São Lucas, em Copacabana. Dizem algumas agências que às 20h05min, outras, que às 21h (fica mais redondinho, né?). Falando em versões, atenção, internautas, alguns sites dão a data de nascimento como 17 de outubro, vá lá se saber por quê. Está no site do próprio Fausto, 8 de julho! Fora internado no último domingo – setembro tinha chegado, nada prometedor –, com hemorragia intestinal. O resultado é que entrou em estado comatoso e daí não saiu. Em cinco dias o grave quadro de insuficiência respiratória minou-lhe todas as resistências, se é que alguma havia. Os obituários falam da companheira, a psicanalista Monica Tolipan e de duas filhas, que deixa. A crítica, que nunca lhe deu muita bola, uma hora vai ter de se deparar com três maçudos referenciais não só de nossa época, a de Fausto, mas de várias épocas, uma vez que ele fez uma costura da história do mundo em A 1002ª noite (Bertrand Brasil, 2005). Os outros dois, são, primeiro, À mão esquerda (lançado em 1996, pela Ed. Civilização Brasileira, foi saudado à época como legítimo “romance de geração”, a geração que atravessou os anos 60-70). O terceiro volume a cutucar a fingida (duvido: a ignorância do establismenth, seja ele de que ordem for, inclusive cultural, pela natureza cínica, o faz cego e, assim, amplia-lhe o grau de desconhecimento, sem precisar fingir) é Olympia (Ed. Leitura, 2007), onde ele repete a estrutura cronística-aforística-fabular-colcha de retalhos de A 1002ª noite. Não é fácil acompanhar tais livros tanto pela erudição destilada sem alarde (vire-se, leitor!) quanto pela linguagem sem modos e, ao mesmo tempo, sem forçar a barra para impressionar. Fausto nunca cometeu literatices e nunca fez apenas jornalismo em sua ficção. Soube elevar o jornalismo à categoria de gênero de reflexão e a literatura que praticou sempre fez questão de esfregar sua cara na lama da história da civilização. Passou 40 anos escrevendo loucamente, publicando loucamente, mas como isso se deu a léguas do mundo acadêmico, e, além disso, produzindo ficção um tanto híbrida, tornou-se um lobo uivante (imagem, aliás, de seu blog), cujo saudável perigo – o de expor-nos e às nossas pusilanimidades e preguiças – parecia residir longe de nosso confortável condomínio, de onde saem as páginas que vão compondo a história da literatura que ficará para os futuros estudantes do curso de Letras. Fausto Wolff ainda não está nestas páginas por razões óbvias, extra-literárias. Mas às vezes a morte tem esse paradoxal poder de, mais que ressuscitar, fazer nascer (como a Lima Barreto, entre tantos exemplos) artistas que atingiram a plenitude estética em vida e o reconhecimento, só após a última pá de cimento úmido na catacumba de um cemitério. (06/09/2008)

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

AFAGOS NUM TEMA BONITO E GRAVE

Uma outra ciência

Todavia, o amor – essa verdade que dispensa verdades –, dobra a inteligência, torna-a novamente criança, constrói-se pela paciência, pelo perdão, pela espera, por uma aparente inocência que na verdade é a coragem de avançar pela oferta sem a garantia de receber. Quem ama admite, deserdado, deixar uma herança.


Cuidados

Te conhecer foi o primeiro segundo; te perder foi o segundo segundo; e no terceiro a história começou. Riso fácil, lágrima fácil, perguntas fáceis, respostas fáceis – viver, a teu lado, ficou fácil. Mas viver é difícil – amar num mundo sem amor mais ainda –, e aos poucos uma dúvida, duas dúvidas, dúvidas dúvidas dúvidas: pousaram corvos no nosso colo. Como espantá-los? O amor luta e se perturba, perturbação maior porque amorosa.


Um assunto pra lá de batido

O amor não é assunto que se contente em receber legendas, em ser apenas fruto de comentário. O amor quer realizar-se, e cada ser humano clama por amor como clama de fome e sede.
O amor, como toda grande paixão, convive em si o pecado e o perdão. E possui muitas faces, todas elas intensas e capazes de vestir a máscara da deformação. Portanto, cuidado com o amor! Quando parece amor, muitas vezes não é; quando não parece, é. E estes são apenas dois de seus momentos paradoxais. O amor adora imitar a si mesmo também, posando de ser amor por sê-lo, porém sendo sempre um pouco (e este pouco é muito) diferente.
Às vezes monstro imperturbável, a exigir do amante toda espécie de fogo para alimentá-lo. Às vezes ternura infinita, espécie de comoção dadivosa diante do filho gerado. Às vezes olhar fraterno a ver um espelho frente ao amigo. Às vezes saudade que arranca lágrimas e com elas molha a planta amarga que cresce na distância. Amor... Nos torna corajosos, ridículos, heróis, condenados.
Um perigoso limite separa as várias formas de amar. E é lenta a arte de aprender a ultrapassar esses limites. Como lento é o caminhar por essa vereda tortuosa, cheia de sinais e enganos. O amor ao próximo multiplica-se em tantas variações, que chamar de desejo é certo; chamar de irmandade é certo; chamar de piedade é certo; chamar de elevação do ser, embora pareça uma demasia, também é certo. Incertos são somente os acenos amorosos, que em regra falam uma linguagem que só o amor em sua plenitude sabe decifrar, e o homem sob a força do amor observa perplexo, sem saber se existe uma resposta.


Continuando...

Amor é quando enfim os homens se comunicam plenamente, e as palavras e os gestos agitam-se entre eles mais como espectadores do que tradutores.


Pergunta

Você não passar por aqui? É como se o caminhão do gás, o lixeiro, o carteiro não passassem. É como se essa dor não passasse.


Perseverar

Perseverar é, em última instância, crer. Espécie de fé posta em ação, perseverar é somar a espera de quem acredita com a obra de quem insiste porque sabe que um só dia nem a Deus bastou.


Ascensão

O corpo de Matilde, estendido, rompe com a vazia planura do lençol. Surpreende-me, e a tudo, e o vento soca a vidraça, querendo entrar. Mas sou só eu quem está ali e pode ver. E vejo. Meu pau reage de imediato, feliz. E digo para ele, para mim mesmo, atônito, deslumbrado, e orgulhoso: “Levanta-te, glória minha, levanta-te, saltério e cítara” (Salmos, 56, 9).


Fanatismo

Há uma grave seriedade, uma concentração de fanáticos na hora do sexo. Mesmo não acreditando no parceiro.


Condenação do belo

Livre de toda rejeição, perdeu-se em definitivo.
Escolhido, não pôde escolher-se. E só lhe restava então, paciente – sem nem a desculpa do grito da revolta por ter sido esquecido (ó suprema oportunidade) –, engolir calado o beijo de todos, surdos para as palavras que ele parecia não possuir. (06/09/2008)

VAMOS LER QUINTANA?

Mario Quintana é daqueles nomes que, uma vez transformados em símbolo de uma cultura, dificilmente recuperam para o trânsito habitual das discussões o registro inaugural que gerou tal símbolo. Traduzindo: obra produzida, o artista consagra-se pela via mais fácil da caricatura, e a obra mesma fica à espera de uma leitura que nunca vem.
Quintana virou poema de Manuel Bandeira, de Drummond, de dezenas de outros poetas menos importantes. Virou personagem de si mesmo (todos somos, mas ele mais do que todos), Anjo Malaquias, tríade de poeta-humorista-filósofo, vivendo sempre na remota região das nuvens, parente daquela espécie definida por Julio Cortázar como el gran comedor de mosca, modesta imagem a descrever a distração a serviço da genialidade.
Mas, e a obra? Foi dela que isso tudo veio, e pouco se vai a ela, contentando-se o público a relações amistosas e tímidas tipo “que simpático e divertido velhinho língua-de-trapo!” Lá longe, no tempo, vão se distanciando de nós A rua dos cataventos, Canções, Sapato florido, Espelho mágico e O aprendiz de feiticeiro, seus cinco primeiros livros, pedra inaugural e última de um conjunto lírico que mais tarde ainda daria irretocáveis momentos como Apontamentos de história sobrenatural (1976), porém já totalmente solidificado e auto-suficiente desde 1951 (data da publicação de Espelho mágico).
Prova desse “esquecimento” de leitura efetiva é a afirmação, já em 1978, de Ivan Junqueira, em seu livro À sombra de Orfeu: “A crítica literária brasileira – às vezes estranha ao próprio conceito de crítica – jamais se ocupou como devia desse imenso poeta que é Mario Quintana”. A frase, aliás, é citada logo na abertura de um importante ensaio, Mario Quintana: As faces do feiticeiro, de Paulo Becker, numa co-edição PUC/Editora da UFRGS (1996, comemorando os 90 anos do poeta, se vivo fosse, morto dois anos antes). O volume mapeia propositadamente apenas os cinco livros iniciais do poeta. A tese de Becker, poeta também, é que nesse quinteto original residem essência, forma, gênese, evolução e cristalização da obra de Quintana.
O ensaio, por sua consistência, por suas qualidades tanto de percuciência crítica quanto de método, não só deve ser recomendado, mas sobretudo torna-se inadiável exatamente pelo panorama hoje desenhado – o de um leviano comodismo diante das possibilidades de discussão que os livros do poeta propõem.
Exigido pela pressão de uma lírica apressadamente modernista, cujo valor dos versos pagava tributo (e caro) aos ventos provocadores da época (década de 30), Quintana estreou noutro tom: com A rua dos cataventos, por exemplo, escolheu o soneto, praticamente aposentado desde a virada do século; enveredou para um tipo de simbolismo tardio, só que nada tardio, já que a ele (ritmos lânguidos, intimismo, imagens de uma rica espiritualidade) somou conquistas estéticas posteriores, num claro sincretismo lírico, costurando duas ou mais escolas.
A vida toda tentaram dar-lhe um rótulo, em vão. Não era possível. Extemporâneo, jamais prestou-se ao papel de epígono ou de clone de uma literatura acostumada a ecos e pouco mais que eles. Este o motivo, talvez, do silêncio crítico, da preguiça de análise, da paupérrima bibliografia sobre sua obra. Como classificar Quintana sem lê-lo com a atenção devida, suficiente para se saber que a partir dele uma nova – e única – trilha na poesia brasileira começa?
Num registro clássico, de aparente passadismo, ele incorporou cores, temas, ritmos novos, logrando versos únicos, pessoais (não no plano do restrito, e sim do estilo único). Somou humor, filosofia (sua poesia é basicamente epigramática) e uma melancolia piedosa com o mundo todo e consigo mesmo. Mas, poeta maior, convida a cada linha a desconfiarmos, a reinaugurarmos o mundo, a viajarmos incessantemente ainda que sem armas e bagagens.
Poeta ao desabrigo, se dispõe, naturalmente vestido de ironia. A maior de todas seria ser lembrado, mas não por seus poemas. Evitemos esse crime lendo-o de fato. (03/09/2008)

A REPÚBLICA DE OMBROS LARGOS

Você conhece Arístocles, famoso atleta? Não? Então o apelido dele – que significa “ombros largos” – lhe deve ser bem familiar: Platão (428-348 a.C.). Pois é do autor dos Diálogos (26 capítulos, suma de sua obra) que se fala aqui, no caso de um dos mais célebres deles, A República.

O livro, dividido em dez partes, é uma pequena utopia, escrita entre 384 e 377 a. C. Na construção de um sistema ideal, Platão traça um paralelo político-moral. Para a classe à qual ele destina o poder supremo (magistrados e filósofos), a razão é a palavra-chave; para os que garantirão a segurança dessa república (os guerreiros), a coragem é a marca moral; para aqueles cujas atividades envolvem a produção e o comércio (artesãos, homens de negócios) são destinados os instintos básicos: a sensualidade, os apetites.

Essa utopia é severa. Sisuda, bem-comportada e exige que a educação encaminhe-nos para a bravura antes de tudo. Cuidado com os poetas, como Homero e Hesíodo. Poesia e música devem ser fiscalizadas. É um regime pesado, que oprime os ombros dos cidadãos que acaso sonharem com alguma liberdade (a utopia platônica é no mínimo polêmica, abolindo propriedade, casamento, os filhos sendo afastados das mães e educados pela comunidade; o Estado é o pai e todos os cidadãos formam uma única família).

No quesito educação, o que seria ensinado aos jovens, até os vinte anos, são a agilidade e o brio de um soldado e, por exemplo, em música, marchas militares estimulando a emoção patriótica.

Há contradições nessa utopia. Se os poetas dela foram banidos, Platão escreve como um poeta, e sua filosofia constrói antes por imagens do que por argumentos (sem falar da forma adotada, o diálogo, deliciosamente eficaz num gênero em regra sem sabor). Um dos momentos altos de A República é o livro VII, "A alegoria da caverna", onde prisioneiros numa gruta ignoram o mundo lá fora, confundindo as sombras projetadas no fundo com fatos e coisas reais.

Mas o tema central da obra é a justiça, como chegar a ela, sem a qual todo julgamento é falho e toda realidade fica sob suspeição. (30/08/2008)

A FILOSOFIA DEPOIS DA FILOSOFIA

A obra de Luc Ferry, em seu conjunto, aponta para uma nova filosofia
porque para uma nova função filosófica: não apenas descrever o sentido da vida,
mas achar na existência a sabedoria de melhor aproveitá-la, livre de dogmas.

Luc Ferry não matou Deus. (Quantos já o haviam matado antes!) Menos, ainda, o ressuscitou. Ressuscitou, sim, ao homem, que sempre aspirou ao sagrado. Sempre. Mesmo aqueles, numeroso contingente, que resistiam à idéia de qualquer religião. Religião envolve culto, imagem externa à consciência. O sagrado é um estado pleno no qual mesmo o ateu mais convicto deseja experimentar. O Budismo mostra isso. Luc Ferry recupera tais momentos no pensamento através dos séculos, e, levando questões vitais da filosofia, transfere-as para a vida cotidiana.
Se não se aplicam à vida, são questões meramente retóricas. Evidente: a vida de que fala Ferry é uma vida acima do que tem recebido tal nome, sem merecê-lo. O presente merece – e precisa – da transcendência sem para isso jogar fora conceitos que, aparentemente inoculados de um moralismo vicioso, mereciam apenas uma nova oportunidade. Um novo olhar. Luc Ferry examina, sem nenhuma espécie de a priori, isto é, sem pagar pedágio (o mais caro: o da nossa liberdade) aos que o antecederam pensando as mesmas questões.

Em A sabedoria dos Modernos, que escreveu em conjunto com André Comte-Sponville, em 1997, num sistema ágil de perguntas e respostas que povoam capítulos onde estão setorizadas dez questões para o nosso tempo, Luc Ferry e seu interlocutor exploram a fundo, sem hesitação – e, muito menos, sem retórica desviante –, questões decisivas, diagnosticando nessas questões dois caminhos para a filosofia contemporânea: como ser materialista e como ser humanista, simultaneamente. Óbvio: de tal indagação nascem e se multiplicam, sem cessar (filosofar é a permanência dessa transformação que avança à medida que cada ilusão se esboroa), aspectos elementares que envolvem ética, moral, a liberdade como um mistério, um bem, uma libertação para se chegar aonde a ausência dela não chega: o território multifacetado da vontade, as duas racionalidades, os paradoxos de uma humanização que inclui, inclusive, a crueldade.

Esse livro é o mais amplo e aprofundado estudo (independente da decisiva, quase antagônica – embora convergente –, mediação de Comte-Sponville. Mediação não. Nem Luc nem André se prestam para fazer eco um ao outro. Antes, ao buscar completar o pensamento do co-autor, ampliando-no, provocam-no, tornam o que foi resposta em uma nova pergunta. A sabedoria dos modernos é trabalhar, enfim, com a presença invisível do Absoluto até mesmo no homem precário, e, claro, no nada precário.
Ferry alerta: a filosofia está na moda. Cuidado. Pensar por si mesmo é uma condição que não existe; ou que só vem depois de muita prática e exercício (como em qualquer área) através dos principais pensadores dos últimos 2.000 anos. Não se trata de erudição. 90% pode ser deixado de lado. Mas a amplitude desses 10% constitui uma bibliografia sem a qual nossa voz não domina o idioma que poderia nos traduzir.


Sucesso para mais de 15 minutos

O que é uma vida bem-sucedida? – Ensaio, publicado cinco anos depois, ainda mostra um Luc Ferry que, embora se aproxime aos poucos do diálogo com uma maioria, não dispensa os referenciais filosóficos que tornam o pensar como gênero obra para poucos. Os temas não são áridos. Dizem respeito a qualquer um, intelectual ou vendedor de sapatos. A diferença entre “vida boa” e “vida bem-sucedida”. Um passeio, em linguagem condutora, isto é, sem o peso excessivo de uma redação que parece mais de compêndio (e que Ferry tanto critica) do que de um homem falando a outro. Naturalmente, de forma profunda, com exigências de um texto bem-escrito e alguma leitura anterior, a fortalecer a recepção.

Mas isso é o mínimo. E desse mínimo o autor parte para, não o máximo (quantitativo), mas o melhor possível. A confusão entre a performance (exigência social permanente, já instituída no coração da família) e a sabedoria em viver bem. Muito além do êxito, reflexo externo de ações, e provisório, o homem deseja, no fundo inconfessável “tão-somente” o bem-estar – difícil de definir, uma vez que é composto de inúmeros condicionantes, internos e externos. Luc Ferry o define, como filósofo do presente: uma frágil felicidade, que vem e vai, a confirmar, em frações separadas no tempo (nos diversos ciclos que ao homem é dado enfrentar), uma trajetória pessoal que não tem razão alguma para afundar.


Deus à nossa imagem e semelhança

Talvez o livro mais radical de Ferry seja O Homem-Deus ou O sentido da vida, lançado há um ano. A religião não perdeu por esperar. Se houve, através da história da Igreja, a humanização do divino, através de um Cristo misturado à multidão, morto entre ladrões, como um qualquer, há agora a imperiosa necessidade de divinizar o humano. O homem vive, desta forma, a confusão do novo estágio, onde o amor é sua experiência concreta de transcendência. Onde a morte é a presença do não-sentido. O sagrado até então conhecido se esvai. A vida tem prazo curto, e pede, então, mais do homem. E o confuso território dessas duas imagens – um Deus já cansado e um Homem que se instaura, enfim, como entidade suprema de si mesmo – é o espaço aberto onde uma nova humanização pode florescer e um sentido para a vida pode ser revelado: um sentido onde o principal incluído seja o próprio homem. Talvez o único.

Sucesso de vendas na França (terra dos filósofos, principalmente após a II Grande Guerra), Aprender a viver – Filosofia para os novos tempos (best-seller no Brasil por seis meses em 2007) é uma pequena e grande história do pensamento. Pequena por eleger apenas cinco momentos culminantes na história das idéias; grande porque Ferry traduz o que parecia intraduzível. Aos apressados é bom avisar: não se trata de um O mundo de Sofia (Jostein Garder) para adultos. A começar, pelo texto-síntese de Ferry, ao contrário do de Garder, que é arrastado. Depois, o dinamarquês fez ficção; Ferry faz ensaio.

E por quê, perguntarão muitos, ensaio de fundo filosófico terá tido tal êxito comercial? Porque 1) a filosofia hoje é uma resposta eficaz a apelos lamentáveis de fundo místico ou de auto-ajuda; 2) Luc Ferry mostra que filosofar não necessita de ferramentas inacessíveis ao dia-a-dia. Pelo contrário: o francês convence público em geral e críticos mais exigentes de que o pensamento acerca das questões mais cruciais e milenares, sobretudo se acompanhadas da parceria de gênios que em vinte séculos se debruçaram com método e paciência sobre elas, nos ajudam a compreender os temas mais comezinhos e os mais espinhosos de nossa vida. Tanto um caso (o do apelo místico) como outro (o da linguagem inacessível) serão desmentidos. Para melhoria – pela iluminação sem dogmas nem rigores insustentáveis – da existência do homem. (27/08/2008)

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Obras de Luc Ferry lançadas no Brasil

A nova ordem ecológica: a árvore, o animal e o homem. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Editora Ensaio, 1994.

A sabedoria dos modernos, em parceria com André Comte-Sponville. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Livraria e Editora Martins Fontes, 1999.

O que é uma vida bem-sucedida? – Ensaios. Tradução de Karina Jannini. Difel, 2004.

Aprender a viver – Filosofia para os novos tempos. Tradução de Vera Lúcia dos Reis. Editora objetiva, 2007.

O Homem-Deus ou O sentido da vida. Tradução de Jorge Bastos. Difel, 2007.