sábado, 9 de agosto de 2008

MISTÉRIOS DA CRIAÇÃO LITERÁRIA 5


Quem não gosta de descobrir? Quem pode descobrir se não vê? Quem pode ver se não escuta? Quem pode escutar se não fala? Quem pode falar se não lê?
Na leitura está o caminho de uma série de mistérios. Continuamos aqui uma série sobre os mistérios da escrita criativa, da criação literária. Criação que nos ajuda a criarmo-nos enquanto seres cheios de mistérios.

V

Dois breves diálogos, quase dois minicontos, pocuram refletir sobre o artista e seu perfil fugaz e irônico. O escritor é sempre uma figura inclassificável, frágil e forte – como qualquer um.

Um livro que não poderia ser escrito

– Não há o que eu não escreva!
Quem se vangloriava era o Elizeu, inchado como um garnizé. A Bruna assombrada:
– Qualquer tipo de livro?
– Qualquer – confirmava o Elizeu.
– Até poesia?
– Ih, isso é fichinha...
– Rimada?
– Rimada.
– Metrificada?
– Metrificada.
– Cheia de imagens e símbolos?
– Cheia de imagens e símbolos.
Estava ficando monótona aquela conversa. Elizeu até se condoeu da modéstia da exigência da Bruna. Poesia! Isso é coisa pra quinze minutos, vinte. Crônica também é rápido, é só bate-papo. Conto demora um pouco mais, digamos, umas duas horas. Sabe como é, a situação, o clima.
Tinha uma coisa que ele nunca tentara: romance, mas romance é um troço deste tamanho. Mais de cem páginas, um monte de personagens, um monte de cenas, diálogo pra mais de metro – a Bruna nem ia lembrar que existe romance.
Só que a Bruna lembrou.
– E um livrão assim, tipo ...E o vento levou?
Pô, o catatau da Katherine Mitchel tinha oitocentas páginas.
– Aquela chorumela? Tá louca, mulher!
– E daí, você faz ou não faz?
– Ah, não, um desses eu não faço... – tartamudeou.
Bruna sorriu, compassiva.
Elizeu reagiu, ferido de morte.
– Não faço porque não quero, só por isso. Já imaginou quanto poeminha e quanto continho eu ia deixar de fazer só por causa de um negócio arrastado assim?
– Quer dizer que não posso esperar um romance de você?
– Não! – Elizeu estava vermelho, mais um pouco e se descontrolaria.
– Que pena...
Elizeu saiu apressado, sem nenhuma pena da Bruna.


A namorada e o escritor

A namorada lê o que o escritor escreve e estremece.
– Quanta bandalheira! E você não é bandalho...
Continua:
– Quanta loucura! E você não é louco...
E arremata:
– Quanta crueldade! E você não é mau...
– Sou um escritor – ele responde –, e um escritor é uma espécie de ator completo, até de um super-homem.
– Que faço eu – pergunta ela, preocupadíssima –, tão vulnerável contra tantos poderes? (09/08/2008)

MISTÉRIOS DA CRIAÇÃO LITERÁRIA 4


Quem não gosta de descobrir? Quem pode descobrir se não vê? Quem pode ver se não escuta? Quem pode escutar se não fala? Quem pode falar se não lê?
Na leitura está o caminho de uma série de mistérios. Continuamos aqui uma série sobre os mistérios da escrita criativa, da criação literária. Criação que nos ajuda a criarmo-nos enquanto seres cheios de mistérios.

IV

Qual a receita, qual o segredo da ficção? Existe essa receita, esse segredo? O leitor nem quer saber, quer logo a ficção que o seduza, a história que o comova. Mas o escritor quer saber. Quer e tenta e parece que.... Nosso colaborador Anthero Luz conta uma história e com ela nos revela se o escritor compreende ou não o mistério de sua arte, quais os ingredientes que a compõem.

“O escritor Alaor é sério pra burro. Não quer conversa fiada. Passa as madrugadas na internet, as manhãs na biblioteca do pai, desembargador aposentado, e durante a tarde ele debulha para uma página em branco impotente todos os dados que acumulou. Cruza-os, relaciona-os, uma informação levando a outra, e outra a outra, e assim por diante. Alaor não quer conversa fiada, por isso pratica o alterofilismo mental, sustentando um conhecimento cada vez mais concreto, com fatos, figuras, teses mais do que respeitáveis. O diabo é que um crítico, de quem sempre falaram bem a Alaor, e ao qual Alaor pediu socorro acerca de seu mais recente romance, perguntou: “romance? Cadê as personagens?”
Alaor apressou-se: “mas e o deputado, e o senador, e a mulher do senador, e o cientista, e o professor, e?” O crítico o interrompeu: “personagens se movem, gesticulam, suam, vagam, mais perdidos que encontrados dentro de um romance. O que você faz é listar uns nomes, umas ocupações, e mencionar situações em que essas figurinhas carimbadas se pronunciariam. Isso é só tema, pretexto, ponto de partida. Você não chegou a começar a fazer arte, Alaor, parou antes.”
Alaor é um sujeito do qual se pode dizer tudo, menos que não seja sério. “Tem um monte de idéias interessantes na história.”
“Mas não tem história”, devolveu o crítico.
“Mas e o enredo que montei?”
“Montou, Alaor, montou. E enredo é um troço pra lá de complicado. Deve ser a parte mais invisível da ficção, aquela que, quando o leitor foi ver, já aconteceu. Tudo, aliás, deve ser invisível, os personagens sendo o que são sem o autor gritar para mostrá-los. A trama se desenrolando sem trama alguma, uma cena levando a outra, com suavidade. Ou com sobressalto, que se há de fazer, mas um sobressalto do qual até o autor se ressente.”
“Mas tem tanta frase inteligente no meu livro.”
“E o que isso tem a ver com ficção?”
“Mas aí fica meio confuso...”
“Nada melhor que a confusão para revelar um caráter, um drama.”
“O perigo, caro crítico, é o escritor cometer muita conversa fiada.”
“Literatura é conversa fiada.”
“Eu sou sério demais”, advertiu-o Alaor, ofendido já, e orgulhoso da própria seriedade.
“A diferença é que arte é forma; e você, que só vive das idéias, é formal.”
“Não, não, não!”, horrorizou-se Alaor. “A literatura não pode ser tão superficial...”“Num certo sentido, é bastante. Vive de olhar demoradamente a superfície, onde bóiam sinais remotos de algo que se agita no fundo – e nunca será revelado.” (09/08/2008)

MISTÉRIOS DA CRIAÇÃO LITERÁRIA 3


Quem não gosta de descobrir? Quem pode descobrir se não vê? Quem pode ver se não escuta? Quem pode escutar se não fala? Quem pode falar se não lê?
Na leitura está o caminho de uma série de mistérios. Continuamos aqui uma série sobre os mistérios da escrita criativa, da criação literária. Criação que nos ajuda a criarmo-nos enquanto seres cheios de mistérios.

III

Morto o autor, se gostamos dele, queremos mais. Porém, cabe a pergunta: devemos querer? Morto, não terá ele concluído sua obra? Por que não nos entregarmos a simplesmente relê-lo. Pronto: reler é a forma mais aperfeiçoada de ler. Chega. O defunto já esfriou, não quer publicar mais. Simplesmente porque não produz mais. Mas hoje costuma-se desenterrar até bilhetes para o gerente de banco do escritor e querer dar à luz esses bilhetes como se fossem, porque assinados por quem são, obra a se considerar. Um crime. Nosso colaborador Anthero Luz reflete sobre esta questão polêmica:

“Morre fisicamente o escritor, célebre pela qualidade de sua obra. Imagina-se que a posteridade lhe será grata, reconhecendo seus méritos e povoando as décadas vindouras de ecos do aplauso que ele conheceu em vida. Entretanto, um professor de literatura mais afoito burla a vigilância precária da viúva e arranca das mãos hesitantes da mulher páginas que o autor desejaria enterrar consigo. Está feito o crime.
Um mês depois de morto sai em edição de luxo a primeira besteira no conjunto da obra do autor, até então cuidadíssima. Quer o tal professor, a exemplo do mau-exemplo Max Brod, impedir que caia no esquecimento o que o autor quis assim. Max Brod teve sorte, o Kafka inédito de fato valia a pena, mas foi uma exceção, a regra é o defunto ter razão, e o que deixou sem a luz do público de fato merecer tal escuridão.
Fizeram isso com Fernando Pessoa depois de morto, cujo “baú inesgotável” de obras-primas efetivamente deu obras-primas, mas também muita bobagem, como O Livro do desassossego, que nunca deveria receber a atenção que a maioria do material escondido mereceu. Com Pessoa tinha um atenuante, como com Kafka: o autor foi exigente além da sensatez, e realmente escondeu o ouro. Mas o normal é o autor esconder aquilo que não desejaria mesmo que lessem.
Morte feliz a daquele escritor cujo último livro publicado em vida é, sim, o último livro de sua bibliografia. E os seguintes não passem de homenagens de terceiros, clubes de leitores, associação de críticos, enfim, essa outro espécie de desdobramento, cá pra nós, lamentável, mas pelo menos com o honestidade de ostentar a assinatura de gente viva que pode ser responsabilizada pelos próprios erros. Morto o autor, leva para o túmulo a paz de enfim ter descansado. Isso quer dizer simplesmente que agora não escreverá mais. Nunca mais. E não publicará mais. Nunca mais. O que já estava, ficou. O que não aconteceu com ele, não pode mais acontecer. A obra precisa ser dele para depois ser nossa..” (09/08/2008)

MISTÉRIOS DA CRIAÇÃO LITERÁRIA 2


Quem não gosta de descobrir? Quem pode descobrir se não vê? Quem pode ver se não escuta? Quem pode escutar se não fala? Quem pode falar se não lê?
Na leitura está o caminho de uma série de mistérios. Continuamos aqui uma série sobre os mistérios da escrita criativa, da criação literária. Criação que nos ajuda a criarmo-nos enquanto seres cheios de mistérios.

II

O que é a obra? Que condições a propiciam e o que exatamente a anuncia? Como pode ser reconhecida? Fomos buscar auxílio junto a um valioso colaborador, que fez questão de afirmar que “obra que é obra não tem espelho”. E, advertindo-nos, “não perguntem ao autor”, mandou-nos a seguinte história:

“O homem termina mais uma de suas peças. Lê novamente o que acabou de escrever, francamente incomodado. Mais que as dúvidas habituais que assaltam os que pensam e produzem, em regra pressionados por prazos, o espírito do homem é tomado de um tormento já rotineiro: novamente vê no que criou a marca do excesso, do imperfeito.
Relê tudo com uma atenção desconsolada. Lá estão, bem claros, o enredo improvável, cheio de episódios de exceção, os personagens descontrolados, neuróticos a um passo do inverossímil, e suas falas então, literárias em demasia, de uma profundidade só cabível a um artista, não a um homem ao qual a arte não elegeu.
Sente-se incoerente esse homem que escreve. E, mais que incoerente, falho. Aceita a incoerência (não é ela moeda corrente em suas obras?), assim como aceita o descontrole emocional, o ridículo nos atos das criaturas que põe em cena, o despropósito de suas decisões, a natureza quase bestial de algumas, quase divina de outras. Aceita isso, sim, mas aceita como aceitamos um ritmo cego que nos toma e nos carrega e logo que ele acaba saímos em outra direção.
E tudo isso que o homem escreve é feito numa linguagem que pinga, ressuma, reverbera. Muita música, muita imagem, muita ação, muita legenda. O homem sente-se francamente cansado. Cansado de tudo. Sabe que errou miseravelmente em seu projeto estético. Perdeu desde a primeira linha a possibilidade do equilíbrio. Qual seu destino?
Evidente: cair. Cair do mais alto sonho até a mais baixa realidade. O mundo é impiedoso, disso ele sabe. Que glória poderá esperar? Nenhuma. Claro que nenhuma. O consolo é o relativo sucesso mais imediato – por enquanto ele está vivo e é isso o que mais importa – que seu trabalho faz junto ao público, vulgar, como se sabe.
Quando acaba o espetáculo, ele volta para casa, e logo já bola outra peça descabelada, outro exagero, outro conjunto de vilanias, ridículos, incongruências, únicos sinais que lhe acenam e depois dos quais ele duvida que tenha chegado ao ponto certo.Um dia morrerá, não se ilude, tudo terá acabado, mas as dívidas não se acumularão, alguma herança material restará, e se seu nome – William Shakespeare – tiver sido varrido da face da Terra, ele não estará presente para lamentar esse resto de silêncio. Até porque concordaria com ele.” (09/08/2008)

MISTÉRIOS DA CRIAÇÃO LITERÁRIA 1


Quem não gosta de descobrir? Quem pode descobrir se não vê? Quem pode ver se não escuta? Quem pode escutar se não fala? Quem pode falar se não lê?
Na leitura está o caminho de uma série de mistérios. Começamos aqui uma série sobre os mistérios da escrita criativa, da criação literária. Criação que nos ajuda a criarmo-nos enquanto seres cheios de mistérios.

I

Quem é o escritor? O que faz com que ele escreva? Fomos buscar na literatura portuguesa algumas vozes que dessem conta dessa resposta difícil, quase sempre paradoxal.

“Eis tudo – obstinação. Ela nos une e nos diferencia, e nos prende por laços invisíveis. Não conheço outra forma de encontrar termos para nos definir. (...) Crença humilde porque regressa ao princípio, e produzindo uma teia sem pensamento como a aranha, no entanto tem a ambição parente das coisas criadas por Deus, porque se radica na intuição de que a palavra, mesmo caótica, quando pronunciada em voz alta, adia indefinidamente o fim.” – Lídia Jorge.

“Só enquanto escrevo é que geralmente vou sabendo o que de fato desejava escrever. Daí decorre um acentuado gosto (...) pela aventura, tanto das palavras como dos seres. O que mais me importa é partilhar com os outros o conhecimento (que também julgo ter certa invisibilidade) do real. Ou, pelo menos, a ilusão desse conhecimento.” – David Mourão-Ferreira.

“Para o escritor tudo é diverso. Porque o imaginário não está só nele e nos livros que escreve – e sim também em quantos os lêem e vivem. Além disso, nenhum escritor consegue revelar duas vezes o segredo das coisas que materialmente não existem. Por isso mesmo não saberei descrever a essencialidade, o espírito, o sentido do irrepetível, a voz extinta das personagens e dos livros que comigo navegaram o tempo e depois se extinguiram na vida e no mundo dos meus leitores. De tudo o que escrevi, sobram-me suspeitas, noções elementares, grandes desejos astutos, murmúrios que estão para o tempo como o ato de ter escrito pode estar para o destino eterno da literatura.” – João de Melo.

“A arte é um absoluto porque fala não à nossa razão mas à emotividade que não discute. Ela opera-se e determina-se como a verdade, a qual assenta não em operações racionais – como nunca assentou – mas no que chamei um dia o nosso ‘equilíbrio interno’ onde se decide quase tudo o que à vida importa. As razões são a sobra do que nesse equilíbrio se decide, para um protocolo da nossa sobrevivência.” – Vergílio Ferreira.

“Aquele que me habita e escreve, vive uma espécie de treva. Quase nada sabe da sua própria escrita. Menos ainda falar dela.” – Al Berto (o nome é esse mesmo, moçada).

“O melhor dum escritor é ser razoável no entendimento, comum no convívio, justo no aconselhar, benigno no julgar e sempre alerta perante as glórias. (...) Também não é bom ser austero demais, nem culto, que pareça solidão fingida. (...) Arregaço as mangas, não para escrever um livro, mas para me acotovelar com a multidão.” – Augustina Bessa-Luís.
(09/08/2008)

terça-feira, 5 de agosto de 2008

CULTURA BRASILEIRA E CULTURAS BRASILEIRAS



Há Brasil na cultura?

A cultura de um país com as particularidades do Brasil só pode ser considerada em um sentido plural, resultado, como Alfredo Bosi diz (“Dialética da colonização”, Companhia das Letras, 1992), “de um processo de múltiplas interações e oposições no tempo e no espaço”. Quando se fala em cultura brasileira imagina-se algo absoluto, ou quase. No entanto, é preciso compreender – incorporando à nossa leitura da realidade, mesmo que voltada ao recorte da Cultura – os elementos econômicos, sociais e, claro, culturais que constituem a identidade própria (nossa) e dos outros, enquanto sujeitos sociais que interagem no processo histórico, a partir da sua condição de gênero, raça e classe.
Uma operação complexa, em resumo, que passa por evitarmos algumas armadilhas como, principalmente, a do amordaçamento de vozes que brotam naturalmente em nossa periferia (nem por serem marginalizadas, vozes menos nossas).
A dimensão histórica não é unidimensional. Desdobra-se, curva-se diante de tantas épocas (cinco séculos) e tantos poderes, muitos deles organizados para solapar uma identidade nacional e simplesmente transplantar uma do país colonizador ao país colonizado.
Assim, é preciso, em cada texto que lemos, em cada música que escutamos, em cada filme que vemos, etc. (no caso de produtos nacionais) qual Brasil se manifesta e, sobretudo, se de fato há ali, resistindo, uma manifestação brasileira.
Um exemplo é Lima Barreto, brasileiríssimo em tudo. E desse esforço de romper com uma dicção lusitana em nossa literatura (dicção que prevaleceu até o ocaso do século XIX) nasceu a Semana de Arte Moderna, um capítulo à parte na resistência contra uma versão em falsete da literatura portuguesa e/ou francesa, influentes de tal forma no Brasil de então, que os modernistas – e, antes deles, Lima Barreto – resolveram botar pra quebrar, partindo pra gíria, pros fatos históricos mais imediatos, sacudindo o verniz do discurso tradicionalmente acadêmico e misturando à sua fala a fala “inculta” do povo, com piadas em forma de versos, sintaxe às vezes estropiada, neologismos em número elevado como forma de resistir.
Esse tipo de resistência tem um século, quem sabe mais. Ainda hoje resistimos, e tal esforço não é o sacrifício isolado de um país de Terceiro Mundo. Está aí a França, a esfregar no insidioso processo da inserção de palavras inglesas em seu dia-a-dia o equivalente no idioma francês para objetos, seres e situações.
Desta forma, cabe a pergunta: quanto há de Brasil em nossa cultura?
Muito, é a resposta. Muito se formos buscar o país certo na cultura certa. Há, inevitavelmente, incertezas no processo cultural, e nessas regiões de incerteza habitam obras, artistas, manifestações de fato postiças. Aí não encontramos Brasil algum. Ou, de alguma forma, encontramos um Brasil esquálido, subserviente.
Que, com um pouco de otimismo, vira Brasil aos poucos.
Do rock de garagem, colado no rock inglês ou norte-americano, passa-se a um roque que progressivamente adquire cor local. E que encontra seus temas no caos urbano REAL de nossas metrópoles.
Da música sertaneja, há trinta anos tributária da música country e do faroeste hollywoodiano, passamos aos poucos a um auto-reconhecimento com a “infiltração” cada vez maior da cultura nativa da região Centro-Oeste.
Apesar de tudo.
Tudo.
Porque o processo de assimilação de uma cultura alienígena foi fácil, sem defesa, propagado por uma política imperialista que pôs o país e seu povo a serviço do invasor (não há outra palavra para isso).
Desta forma, encontrar PELA PRIMEIRA VEZ em quase 500 anos a cara do Brasil, o jeito do Brasil, seu falar e sua filosofia, seu viver e seu sentir, seu dizer e seu estar, seu ser, em suma, tem sido uma aventura muitas vezes paga com a vida, como é a trajetória de heróis culturais que viveram num isolamento típico de sacrificados.
Guimarães Rosa, brasileiríssimo, só foi saudado como gênio, num primeiro momento, porque ninguém o entendia. Afinal, escrevia como que num dialeto – o dos vaqueiros do sertão das Gerais, linguagem à qual Rosa acrescia sua inventividade lingüística.
Ao mesmo tempo, escritores como Valdomiro Santana, no norte, e Simões Lopes Neto, no sul, tinham que esperar quase um século para serem lidos e compreendidos. Valdomiro ainda não foi. E o gaúcho Simões Lopes Neto começou a ser reconhecido quarenta anos depois de sua morte.


Diante da TV

A perda da dimensão histórica é uma morte simbólica pior que muita morte real. Um genocídio, na verdade, que atinge um enorme contingente de espectadores diante de um artefato artístico (um filme, uma novela, uma música, um quadro, um livro). O que ocorre é que a obra de arte, comprometida com o meio no qual é veiculada (meio devedor do mercado, mercado soberano sem uma política cultural saudavelmente mediadora), essa obra de arte busca a facilidade e a superficialidade. Essa facilidade se traduz na pressa com que é produzida essa obra, e essa superficialidade se traduz na forma com que a obra não mergulha fundo na realidade do país onde está sendo produzida.
Daí que diante de tal obra, como pode o fruidor potencial de tal “arte” reencontrar-se nela? Primeiro, porque ele estará ausente como personagem e como tema. Não sendo agente histórico (porque foi alienado dessa história, já que alienou-se dela e nela), fica à margem do que é discutido na obra. Aliás, não há discussão. A obra serve tão somente para requentar preocupações remotas de uma outra terra que governa a terra onde o espectador mora. No nosso caso, temas caros aos Estados Unidos, visão norte-americana de relacionamento com o mundo e com os povos, arte norte-americana, e arte de segunda categoria mesmo lá, é bom que se diga.
O espectador não percebe que está sendo traído. Pior, que estão roubando-lhe o país diante dos próprios olhos. Pior: que o estão emudecendo, tirando-lhe a voz que seria igual à do vizinho, por exemplo, e os personagens que ele assiste não falam, nem como ele, nem como o vizinho. Falam como quem?
Ora, como falam figuras convenientes à política exercida pelos países dominadores. Sem contestação, sem visão crítica, sem reconhecer minorias, sem reconhecer diferenças, sem admitir a enorme diversidade cultural entre os povos e até dentro de um mesmo povo, como é o caso do Brasil.
País-continente, como ficou consagrado, porque sua extensão territorial e sua divisão em regiões lhe dá a característica plural de ter no mínimo umas cinco realidades bem específicas, especiais, autênticas, e merecedores do melhor registro, seja ele estético ou histórico. A realidade do litoral. A do pampa. A do sertão. A da floresta amazônica. A das metrópoles. Esta classificação é só uma possibilidade. Aí teríamos cinco culturas dentro de uma mesma cultura.
Porém, há mais possibilidades. O que seria uma riqueza, e é. Mas o processo cultural, assimilacionista, abre mão dessa riqueza e a substitui pela pobreza do discurso hegemônimo do capital estrangeiro internacional, que aqui aporta e aqui discursa. Temos os ouvidos alugados.
Outra possibilidade de classificação: a cultura do rico, da classe média e do miserável. Três culturas. Outra: a erudita e a de massas. Duas culturas. E certamente poderemos encontrar outras classificações, por etnias (embora seja um caminho perigoso, chegando ao racismo).
A verdade é que irônica e perversamente há uma trilha na História que nos desviou do único rumo aceitável, o que nos leva ao coração de nós mesmos: um povo desigual, num país desigual, com florestas e mar, com algumas das maiores cidades do planeta e vilarejos perdidos no fim do mundo, e que pode e deve dialogar consigo, ou monologar, se for o caso. A realidade de São Paulo. A de Ouro Preto. A de Uruguaina. A de Fortaleza. A de Belém. Temos aí, por certo, cinco registros bem diversos. Cinco ilhas. Que ficaram isoladas no imenso arquipélago brasileiro, condenado a ouvir uma só voz, muitas vezes num outro idioma, enquanto tantas vozes murmuram tantas histórias vindas de tantas bocas que logo se calarão. De desesperança, se não for de fome. (06/08/2008)

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

SEM CHANCE

Tá, tá, tá. Viver? Viver assim tipo o cara acreditar que a vida é uma coisa tão grande e importante como a palavra e-xis-tên-cia? O pessoal leva fé, não é não? Pois vejo um aviso prévio nisso tudo. Que vida que nada. Isso é coisa pra (desculpe o mau jeito) trouxa. Trouxa que é – vá lá! – esperto. Mas dessa esperteza eu me canso, tenho um desânimo que só vendo. Vida? Sei o que é, nada que se possa chamar de importante. Sei, sei. Roupa boa, saldo no banco que não te dê vergonha de dizer na frente dos colegas. Pois é, e os colegas. Cada um tem o seu ritmo, dizem. E tu te fodes enquanto eles se arrastam, saem para fumar no corredor, bebericar café de duas em duas horas, ir no banheiro, mijar ou retocar a maquiagem, sei lá quantas vezes. Vida é pra idiota, que se alegra com bobagem; pra louco, que é louco mesmo e enxerga o que quer ver; pra filho-da-puta, que só vai chorar pela mãe quando ela estiver morta. E, cá pra nós, não será por ela, será por ele. E ele não vai perceber que chorar por ele será por ela. Enfim, complicado demais pra essa gente demasiadamente ocupada em escalar a montanha social, alta. Como é alta, meu Deus do céu, aqui debaixo eu vejo. Vida é isso. Nada. Ou uma bosta que aparenta muito. O que é pior que nada, porque além do oco de sentido da coisa tem a pretensão de ser mais do que é. E eu não quero nada com a vida, entende? Não entende? Como não entender que alguém não queira nada com a vida? Não falo daquela, nos livros de ciências naturais, de zoologia, de botânica, de física, de astronomia. Falo da vida que arranjaram agora pra todo mundo consumir, a vida dos shoppings, das sextas e sábados à noite das baladas, dos domingos à tarde em estádio de futebol, dos churrascos de fim de semana apertando família que mente que é unida quando o que os une é uma cadeia de dívidas, favores em troca de outros piores, mais caros, um elo venenoso, criança sendo respondida com indiferença, impaciência ou com a alegria bestial dos que subestimam a imaginação infantil. Vida. Sei. Ouço sobre isso desde que nasci. Passei dos cinqüenta. Tenho tido que aturar essa merda de papo sobre a crise da meia-idade. Se fosse verdade, eu já tinha crise aos quinze. E tinha. Quem não tem, sendo capaz de ver ao menos um palmo além do nariz? Levei umas três décadas para descobrir isso: um homem é só uma máquina de enganar imbecis, inclusive a si próprio, produzindo risada e excreções fácil, fácil, ou uma máquina fria de subir ao pódio dos resultados que, afinal, são o que conta para falarem do sujeito enquanto ele respira e anda pelas ruas. Anda pelas ruas? Nananinanão. Rua está proibido. Viu o Rio de Janeiro? Viu São Paulo? Rua é para Catuípe, Veranópolis, Não-Me-Toque. Rua de fato é aquela que tem calçamento limpo, sem obstáculos, e árvores e gente passando e se cumprimentando sem pressa em perímetros urbanos de no máximo 30.000 habitantes. Mais que isso vira praça de guerra. Ou já vai virar, espera o próximo noticiário. Vida é pra fazer da mulher um poço de esperança com uma figura mitológica falecida, o Amor, esperança lançada na direção de um sacripanta, o homem cada vez mais infantilizado. Vida é pro homem virar no que é, um felino competitivo ou um relaxado cagando e andando para tudo, menos para ele mesmo, e isso quando no fundo ele não está, de fato, se lixando para absolutamente tudo, ele incluído. É caso para desistir? É claro que sim. Mas aí passaram os anos; há filhos na roda, sobretudo filhos; tem ex-mulher querendo te pôr na cadeia; tem ex-mulher querendo te pôr de novo na cama; tem ex-mulher, e pior que ex é sempre a atual, que custa mais caro, mais do que podes pagar. Vida, vida mesmo, era uma facada de prata do sol na água do açude quando se tinha sete anos. O açude hoje é um areião brabo de onde não se tira nada. O sol, com o furo da camada de ozônio, tá nos matando, que nem a bomba de Hiroxima, só que bem devagarinho. A lua virou piada desde 1969 quando os americanos foram lá e enfiaram uma bandeira listrada no cu daquelas rochas e ficaram dando pulinhos na nossa cara. Vida. Sei. (04/08/2008)