Há Brasil na cultura?
A cultura de um país com as particularidades do Brasil só pode ser considerada em um sentido plural, resultado, como Alfredo Bosi diz (“Dialética da colonização”, Companhia das Letras, 1992), “de um processo de múltiplas interações e oposições no tempo e no espaço”. Quando se fala em cultura brasileira imagina-se algo absoluto, ou quase. No entanto, é preciso compreender – incorporando à nossa leitura da realidade, mesmo que voltada ao recorte da Cultura – os elementos econômicos, sociais e, claro, culturais que constituem a identidade própria (nossa) e dos outros, enquanto sujeitos sociais que interagem no processo histórico, a partir da sua condição de gênero, raça e classe.
Uma operação complexa, em resumo, que passa por evitarmos algumas armadilhas como, principalmente, a do amordaçamento de vozes que brotam naturalmente em nossa periferia (nem por serem marginalizadas, vozes menos nossas).
A dimensão histórica não é unidimensional. Desdobra-se, curva-se diante de tantas épocas (cinco séculos) e tantos poderes, muitos deles organizados para solapar uma identidade nacional e simplesmente transplantar uma do país colonizador ao país colonizado.
Assim, é preciso, em cada texto que lemos, em cada música que escutamos, em cada filme que vemos, etc. (no caso de produtos nacionais) qual Brasil se manifesta e, sobretudo, se de fato há ali, resistindo, uma manifestação brasileira.
Um exemplo é Lima Barreto, brasileiríssimo em tudo. E desse esforço de romper com uma dicção lusitana em nossa literatura (dicção que prevaleceu até o ocaso do século XIX) nasceu a Semana de Arte Moderna, um capítulo à parte na resistência contra uma versão em falsete da literatura portuguesa e/ou francesa, influentes de tal forma no Brasil de então, que os modernistas – e, antes deles, Lima Barreto – resolveram botar pra quebrar, partindo pra gíria, pros fatos históricos mais imediatos, sacudindo o verniz do discurso tradicionalmente acadêmico e misturando à sua fala a fala “inculta” do povo, com piadas em forma de versos, sintaxe às vezes estropiada, neologismos em número elevado como forma de resistir.
Esse tipo de resistência tem um século, quem sabe mais. Ainda hoje resistimos, e tal esforço não é o sacrifício isolado de um país de Terceiro Mundo. Está aí a França, a esfregar no insidioso processo da inserção de palavras inglesas em seu dia-a-dia o equivalente no idioma francês para objetos, seres e situações.
Desta forma, cabe a pergunta: quanto há de Brasil em nossa cultura?
Muito, é a resposta. Muito se formos buscar o país certo na cultura certa. Há, inevitavelmente, incertezas no processo cultural, e nessas regiões de incerteza habitam obras, artistas, manifestações de fato postiças. Aí não encontramos Brasil algum. Ou, de alguma forma, encontramos um Brasil esquálido, subserviente.
Que, com um pouco de otimismo, vira Brasil aos poucos.
Do rock de garagem, colado no rock inglês ou norte-americano, passa-se a um roque que progressivamente adquire cor local. E que encontra seus temas no caos urbano REAL de nossas metrópoles.
Da música sertaneja, há trinta anos tributária da música country e do faroeste hollywoodiano, passamos aos poucos a um auto-reconhecimento com a “infiltração” cada vez maior da cultura nativa da região Centro-Oeste.
Apesar de tudo.
Tudo.
Porque o processo de assimilação de uma cultura alienígena foi fácil, sem defesa, propagado por uma política imperialista que pôs o país e seu povo a serviço do invasor (não há outra palavra para isso).
Desta forma, encontrar PELA PRIMEIRA VEZ em quase 500 anos a cara do Brasil, o jeito do Brasil, seu falar e sua filosofia, seu viver e seu sentir, seu dizer e seu estar, seu ser, em suma, tem sido uma aventura muitas vezes paga com a vida, como é a trajetória de heróis culturais que viveram num isolamento típico de sacrificados.
Guimarães Rosa, brasileiríssimo, só foi saudado como gênio, num primeiro momento, porque ninguém o entendia. Afinal, escrevia como que num dialeto – o dos vaqueiros do sertão das Gerais, linguagem à qual Rosa acrescia sua inventividade lingüística.
Ao mesmo tempo, escritores como Valdomiro Santana, no norte, e Simões Lopes Neto, no sul, tinham que esperar quase um século para serem lidos e compreendidos. Valdomiro ainda não foi. E o gaúcho Simões Lopes Neto começou a ser reconhecido quarenta anos depois de sua morte.
Diante da TVA perda da dimensão histórica é uma morte simbólica pior que muita morte real. Um genocídio, na verdade, que atinge um enorme contingente de espectadores diante de um artefato artístico (um filme, uma novela, uma música, um quadro, um livro). O que ocorre é que a obra de arte, comprometida com o meio no qual é veiculada (meio devedor do mercado, mercado soberano sem uma política cultural saudavelmente mediadora), essa obra de arte busca a facilidade e a superficialidade. Essa facilidade se traduz na pressa com que é produzida essa obra, e essa superficialidade se traduz na forma com que a obra não mergulha fundo na realidade do país onde está sendo produzida.
Daí que diante de tal obra, como pode o fruidor potencial de tal “arte” reencontrar-se nela? Primeiro, porque ele estará ausente como personagem e como tema. Não sendo agente histórico (porque foi alienado dessa história, já que alienou-se dela e nela), fica à margem do que é discutido na obra. Aliás, não há discussão. A obra serve tão somente para requentar preocupações remotas de uma outra terra que governa a terra onde o espectador mora. No nosso caso, temas caros aos Estados Unidos, visão norte-americana de relacionamento com o mundo e com os povos, arte norte-americana, e arte de segunda categoria mesmo lá, é bom que se diga.
O espectador não percebe que está sendo traído. Pior, que estão roubando-lhe o país diante dos próprios olhos. Pior: que o estão emudecendo, tirando-lhe a voz que seria igual à do vizinho, por exemplo, e os personagens que ele assiste não falam, nem como ele, nem como o vizinho. Falam como quem?
Ora, como falam figuras convenientes à política exercida pelos países dominadores. Sem contestação, sem visão crítica, sem reconhecer minorias, sem reconhecer diferenças, sem admitir a enorme diversidade cultural entre os povos e até dentro de um mesmo povo, como é o caso do Brasil.
País-continente, como ficou consagrado, porque sua extensão territorial e sua divisão em regiões lhe dá a característica plural de ter no mínimo umas cinco realidades bem específicas, especiais, autênticas, e merecedores do melhor registro, seja ele estético ou histórico. A realidade do litoral. A do pampa. A do sertão. A da floresta amazônica. A das metrópoles. Esta classificação é só uma possibilidade. Aí teríamos cinco culturas dentro de uma mesma cultura.
Porém, há mais possibilidades. O que seria uma riqueza, e é. Mas o processo cultural, assimilacionista, abre mão dessa riqueza e a substitui pela pobreza do discurso hegemônimo do capital estrangeiro internacional, que aqui aporta e aqui discursa. Temos os ouvidos alugados.
Outra possibilidade de classificação: a cultura do rico, da classe média e do miserável. Três culturas. Outra: a erudita e a de massas. Duas culturas. E certamente poderemos encontrar outras classificações, por etnias (embora seja um caminho perigoso, chegando ao racismo).
A verdade é que irônica e perversamente há uma trilha na História que nos desviou do único rumo aceitável, o que nos leva ao coração de nós mesmos: um povo desigual, num país desigual, com florestas e mar, com algumas das maiores cidades do planeta e vilarejos perdidos no fim do mundo, e que pode e deve dialogar consigo, ou monologar, se for o caso. A realidade de São Paulo. A de Ouro Preto. A de Uruguaina. A de Fortaleza. A de Belém. Temos aí, por certo, cinco registros bem diversos. Cinco ilhas. Que ficaram isoladas no imenso arquipélago brasileiro, condenado a ouvir uma só voz, muitas vezes num outro idioma, enquanto tantas vozes murmuram tantas histórias vindas de tantas bocas que logo se calarão. De desesperança, se não for de fome. (06/08/2008)