Obra que é obra não tem espelho. 1) Não pode ser imitada;
2) O próprio autor, ao buscar repeti-la, fracassa. E só lhe resta então partir
para algo inteiramente novo. Aliás, por fazer exatamente isto é que ele destrói
qualquer possibilidade de espelho e constrói a obra. Abandona-se a cada livro,
órfão de si mesmo; e diante do espelho desejado (fácil e resumidor) nada o
reflete, condenado como um vampiro que deve beber o sangue de todos, mas jamais
o seu. (24/03/2013)
domingo, 24 de março de 2013
domingo, 17 de março de 2013
UM AMOR SIMPLES
A namorada pobre não veio ao
encontro porque choveu e ela não tinha sombrinha, porque fez frio e ela não
tinha casaco, porque dormiu demais e não havia celular nem sequer relógio-despertador em sua casa.
A namorada pobre não tem casa.
Um dia dorme numa amiga, outro, numa tia. Como
localizá-la?
A namorada pobre aparece poucas vezes, e tem mais fome do
que desejo. (17/03/2013)
segunda-feira, 11 de março de 2013
A TESTEMUNHA
Neste mês eu vi 678 acidentes de
motos, carros, ônibus, caminhões. Eu vi 439 traficantes e policiais trocando
tiros, 202 assaltantes trocando tiros com seguranças de banco, 198 pais
espancando filhos pequenos, 112 homens agredindo suas parceiras, os mais pacíficos
verbalmente, 93 empresários desviando dinheiro alheio para contas que de
fantasma só têm o nome porque são concretamente suas, 76 erros médicos gerando
morte ou graves sequelas, 62 homens estuprando de meninas a velhinhas, 51
suicídios, 38 mães abandonando recém-nascidos em portas de hospitais,
condomínios ou mesmo em lixões. E, numa tarde onde o sol custava a se pôr,
testemunhei um homem grisalho lendo um livro de poemas, tão distraído –
transportado eu diria! –, que fiquei ali, um tempo enorme, acompanhando a cena,
e ele mergulhado naquilo num banco de praça, em plena rua à luz do dia.
Confesso que o fato me deixou completamente consternado. (11/03/2013)
quarta-feira, 6 de março de 2013
OBRIGAÇÃO
Entro na empresa para mais um expediente. Poderia chamá-lo
de “pausa de ser”, mas não se deixa de ser nunca, e no entanto a pausa é
necessária, vital, porque imposta uma vez que vem a um preço alto quando
quebrada (as hierarquias, o mirrado cânone constituinte). Interrompo-me por
fora sem me interromper por dentro. Só assim para evitar constrangimentos,
conflitos e até violências coletivas. Tudo isso ocorre de qualquer jeito, mas
em segredo, em mim mesmo. Somos dois agora: eu e... – vá lá! – o eu que os
colegas me supõem. Esse eu sobrevive por mim e, de certa forma, sou-lhe grato.
Mas a verdade é que um não suporta o outro. (06/03/2013)
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