Deixe de lado qualquer amargura nessa constatação. Qualquer ressentimento. Leve-a para casa (se estiver na rua) ou pra rua (se estiver em casa). A ausência é uma presença constante, repetitiva, insistente, invencível.
Um grande cara, capaz de arrancar gargalhadas do sujeito mais cara-fechada do mundo, o tradutor Jorge Ritter, culto, inteligente e outros bababos, me escreveu há 48 horas; “não li Guimarães Rosa nem Kafka! Não é a fudê isso?...” Claro que é a fudê! É muito engraçado. Tem que ter coragem de, além de resistir a lê-los, não os tendo lido, confessá-lo. Jorge é o que os apressados chamariam de um “bonachão”. Eu o acho um talento do humor escrachado, até aquele limitezinho onde o mau gosto não passa a ponta da unha. Mas que ele bate forte onde mais dói – “nosso estilo”, “nossa seriedade” –, ah, bate; e depois, seus e-mails (hijo de una gran madre que te parió, jorgito!) poderiam muito bem virar livro irresistível, capaz de derrubar qualquer respeito que se possa ter de nós mesmos e da condição humana, sobretudo o auto-respeito...
Cito o Ritter porque este tema, sendo anti-Ritter, por oposição, lembra ninguém menos que ele. O Jorge é um dos que me mandam e-mails e dizem “pára com literatura, pára com essa cachaça”. Pero no lo creo... Se ele está falando sério, é porque estou a quilômetros de atingir o nível de um Cortázar. Se ele não está falando sério, então está tudo bem: devo continuar escrevendo e o Jorge é o Jorge de sempre, querendo testar o nosso equilíbrio – em regra, quase nenhum.
É sobre a ausência, que em post anterior erigi como um desejo, uma falta a partir da qual nada pode ser minimamente inteiro em mim, uma saudade, em suma, mesmo metafísica, ainda que parta da condição concreta e desesperadora de uma pessoa estar mais que distante, inalcançável.
Ausência é tema seminal. A possibilitar-nos um olhar em várias direções, e tantas são as ausências que detectá-las é, dos atos cotidianos – desculpem o paradoxo –, talvez o mais presente.
Sim, onde estás, obscuro objeto do desejo, complexo e febril, que não domino?, e que me tornas refém desse vazio onde por mais que tudo compareça, pessoas e coisas e cenas, sem ti por perto acabam por tornar-se um mundo em ruínas, um pequeno (porque só se trata de mim) apocalipse.
Dele, sem ti, não me ergo. E impossível torna-se retomar as tarefas, quais sejam elas, mesmo as urgentes.
Ausência é, por exemplo, sendo eu um escritor, não poder dedicar-me à literatura porque não vivo de rendas e, pena de aluguel, não me sobra tempo para escrever o que preciso, humanamente, escrever (escrever de aluguel não é humano, é o bicho escarvando no latão atrás de comida). E então acumulam-se em mim presenças de poemas, de contos, de novelas, até mesmo de e-mails extensos e urgentes, porém um conjunto todo – a assombrar-me – que exige sua hora, minha atenção, e ao qual sou obrigado a abandonar sob pena de abandonar-me, já sem mim, pena de aluguel.
Vendesse o que quero vender (sim, Ritter, imagino tua acidez já saltitando à beira do gramado), e ser pena de aluguel seria a glória. Mas, sabem, não é a isso que me refiro: refiro-me à ausência de todos os temas e formas e idéias e personagens que me provocam, me desafiam, me encantam e deles não posso cuidar porque outros textos que nada têm a ver comigo são contratados antes disso tudo (minha vida!) e pagam – mal, mas pagam – as contas e então destes eu cuido e de mim eu me descuido. Eis a ausência maior.
A partir dela todas as outras derivam. E vão em direção ao limbo, me arrastando sem que eu possa me defender, escapar. Daí, Jorge, esse “chorrilho”, esse derramamento – de um tipo de sangue ao qual, para minimizar, damos o nome de palavras. (01/07/2008)
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6 comentários:
Questão de ordem! Fui citado! Ou melhor acusado de ser um réles "anti-cenas"!
A minha posição é muito clara: sou um ex-escritor, ou melhor, um "escritor anônimo", daí minha verve afônica.
Estou a 3 meses, 5 dias, 3 horas e 5 minutos sem escrever. Graças a Deus! Esses dias comi um giz no chão duma sala de aula, tal o desespero. Não é fácil.
O que eu quero é ajudar o Paulo a sair dessa. Esse blog então vai acabar com ele! O Paulo sabe que pode contar comigo. Força, amigo!
J Ritter
Paulo,
muito interessante falares de alguém que não conhecemos mas, ao contrário dos grandes nomes da literatura, está bem aí,não quer mais escrever e não escreve, dá um "pé" no mundo,em todo mundo.Figuraça!
Teus textos cada vez melhores.Eu de plantão.
Abraço
Joana Giacomazzi
Olá,Paulo.
Tenho acompanhado todos teus textos agora estou com tempo.
Estou gostando muito.Estarei sempre aqui como uma fiel leitora.
Mirna Azevedo
Cruz Alta-RS
Oi, Paulo, conheço bem essa ausência. A falta de mim que a escrita provoca sempre que estou no trabalho.
Bj, Adrienne Myrtes
quanta poesia num texto!
não só "quanta poesia" mas, quanta verdade,quanto sentimento.Lindo!
Lucia Helena Z.
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