Um texto de ficção pode sobreviver de várias coisas. Só o cenário já pode dar conta do recado, um cenário que não serve apenas como locação, mas é presença forte, trama e personagem da história, porque vai além de pano de fundo e sufoca tudo, serve mais que de moldura, serve como movimento, ação, presença.
Só o cenário, em geral posto em segundo plano pelos escritores. Quem se preocupa mesmo com cenário é cenógrafo, é o teatro, é o cinema, é o quadrinista. Escritor quer contar uma história, desde Aristóteles, que recomendava isso em sua Poética. E uma história, mesmo boa, fracassa se não for vivida por bons personagens, isto é, seres vívidos.
Daí chegamos ao meu tema neste instante: o personagem.
Nunca sei quem ele é. Preciso de mim mesmo, de minha experiência e da experiência daqueles com quem convivo, experiência de vida que dá substrato, essência real ao personagem a ser criado. Criado?
No meu caso, dificilmente crio, isto é, invento. Descubro-o simplesmente. Vou avançando muito devagar, não invadindo o sujeito de súbito – que é para não assustá-lo e ele inventar de se retrair e eu perder a preciosa oportunidade de, afinal, descobrir quem é o cara.
Parto, como estava explicando, de alguma experiência humana que revele um caráter, uma generosidade, uma mesquinharia, uma coragem, uma fobia, mais um tipo físico que fique em pé, isto é, que se sustente, seja convincente, cuidando (é meu jeito) de não torná-lo, pelo desenho, uma caricatura.
Se dessa mistura de elementos (jamais selecionados a priori, e sim, sempre a partir da situação criada ou do tipo necessário para vivê-la) surgir alguém, ótimo. Ótimo não, menos é inaceitável. Tem que ser alguém, ou seja, um ser verossímil, quase de carne e osso não fosse feito apenas de palavras.
Eis meu personagem, que só conheço depois da última página, não antes. E muitas vezes – na maioria, devo dizer – nem depois da última página.
Meu irmão de fato, porque acaba vivendo coisas que vivi, ou quase vivi, ou sonhei viver, ou temi viver, ou escutei que alguém viveu, ou nada disso mas o empurrei para algo que alguém de que tomei conhecimento viveu ou poderia perfeitamente ter vivido.
Desta forma, meu personagem é um duplo (meu irmão gêmeo) e um estranho (não o controlo nem o compreendo e, por isso mesmo, por causa dessa incompreensão, preciso acompanhá-lo passo a passo e, como já disse, termino a história às vezes sem entendê-lo). É por essa razão que ele pode funcionar. Pelo risco que conscientemente assumo em tratá-lo como se nada soubesse dele, sabendo tudo.
Por contraditório que isso pareça, não é. Sei tudo porque fui eu quem escreveu tudo. Mas minha descrição desse personagem em regra é feita mais de perguntas, de dúvidas, de tateios através dos quais vou deixando (tenho escolha?) que o personagem faça o que bem entender. E é aconselhável que ele possua essa suprema liberdade de aparentemente não ter sido criado por mim. Ele DEVE ser cria de si mesmo, seguindo exemplos extraídos da vida sem as facilidades que a vida dá (refiro-me a essas execráveis simplificações que só existem fora da literatura, pelo menos fora da boa literatura, já que a má literatura imita a vida como ninguém, não quer ir muito fundo mesmo).
Meu personagem, em suma, é um pobre diabo e um ser à beira do abismo, uma alma que se contorce entre as forças opostas que o jogam de um lado a outro, forças invisíveis para ele e, pior, para seu deus também – eu, cuja existência ele ignora; eu, que ignoro essas forças também.
Ou, claro, meu personagem pode ter todas as certezas que não tenho, toda a força que não pude encontrar. Nesse caso, trata-se do estranho que mencionei.
Meu personagem, em resumo, não é meu. (22/07/2008)
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8 comentários:
Interessante... Eu já havia lido uma declaração do Jorge Amado, tem uns 20 anos, na qual ele afirmava que não mandava nos personagens, que os personagens que mandavam nele. Achei aquilo tudo balela. Não me convenceu. Agora você vem com o mesmo ponto de vista. Bem, os argumentos são mais convincentes. Depois de ler seu texto, concluí: não foi a questão do personagem que não engoli, o que não engoli mesmo foi o jeito Jorge Amado de ser. Muito bonzinho, muito espontâneo, mas... Bem, o tema não é o baiano, mas o personagem, esse estranho. Para o leitor (esta a minha ótica) ele é sempre um estranho. Mas a gente que vê o livro só depois de pronto sempre fica achando que o escritor sabia de tudo desde o início e que controla totalmente os seus protagonistas e coadjuvantes. Esse espaço que você dá, me parece, "soltando as rédeas" das ações dos seres que povoam suas histórias, esse espaço é bastante produtivo, não tenho dúvida. Fiquei com uma pulga atrás da orelha: mas sendo assim, o personagem não frustra você muitas vezes, fazendo o que não devia e não fazendo o que devia?
Breno Lazzari de Palma / Campo Grande, Mato Grosso do Sul.
me ocorreu uma associação com os replicantes do filme "blade runner".
"quase" pessoas, mas com iniciativa própria.
será? apenas meu humilde pitaco.
j ritter
Paulo,
quem conhece teus livros...
Personagens, e que personagens crias:Olegário(Olegário e as letras),Fernanda(A legião),Walter,Jairo...(A ilha)- "A solidão do diabo".Não vou citar mais, leiam e avaliem.
"Bodas de osso":poemas que se imagina o personagem,que nos imaginamos personagens,para sorrir ou chorar.Amo teus poemas!
Com este texto nos dá uma idéia de como eles surgem...
Gostei muito.
Beijo
J.G.
E quando nos sentimos personagens em nós mesmos? Queria saber escrever e olha que não seria autobiografia...
Abraço
Tudo bem, os textos estão muito bons mas e o POETA, por onde anda?Tenho notado que não tens postado novas poesias.
Será que até um poeta já anda sem poesia? Ah, não faz isso com teus leitores...
Abraço
Lúcia Helena Martins
Personagens exemplificam as nuances de uma mente confluida. pensamentos regurgitados. argumentos definidos ou indefinidos,seres teimosos ou obedientes... Poderia passar o dia todo explicando do que compõem esses seres. Somos deuses que ditam seus destinos.
Ótimo texto Bentancur.´
Jeff Negromonte
E agora, como é que eu fico, eu, leitor crédulo com os autores a quem sempre entendi como donos sem discussão das suas histórias e de todos os ingredientes que as compõem? Então, caro blogueiro, queres dizer que o autor pode até mesmo ser vítima de sua criação!? Foi o que entendi... Parece que não estou exagerando. Tudo o que você escreveu dá a entender isso. Escrever, neste caso, é um perigo! (E para o próprio autor, que ironia.)
Polêmico e revelador, esse texto.
Guilherme Lemos de Arruda. Juiz de Fora, MG.
Paulo,
para comentar ou "ilustrar", teu texto "MEU PERSONAGEM, MEU IRMÃO?", afirmo do quanto o personagem nos toma,nos devora com versos de Fernando Pessoa e,( comemorando seus 120 anos):
XIII
"Fantasmas sem lugar, que a minha mente
Figura no visível, sombras minhas minhas
Do diálogo comigo.
XV
Do eterno erro na eterna viagem,
O mais que [exprime] na alma que ousa,
É sempre nome, sempre linguagem,
O véu e capa de uma outra cousa.
XVII
Paro à beira de mim e me debruço...
Abismo...E nesse abismo o Universo,
Com seu tempo e seu 'spaço, é um astro, e nesse
Alguns há outros universos, outras
Formas do Ser com outros tempos, 'spaços
E outras vidas diversas desta vida..." ( Primeiro Tema- O MISTÉRIO DO MUNDO)
Percebo tu, escritor, parado à beira de si, debruçado no personagem.
Abraços
Maira B. Engers (Professora de Literatura- Porto Xavier- Santa Rosa/ RS)
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