Acordo, estremunhando, consciente o suficiente para não estranhar o mundo. O corpo ainda não me pertence, e embora poucas vezes eu tenha tido total domínio sobre ele (nem mesmo na mais absoluta lucidez: o corpo manda, sólido e imprevisível, e eu, sem perceber, obedeço-lhe como um bêbado que é carregado pelas ruas por um delegado, ou então, bem diferente, segue, tomando todos os cuidados, os passos reféns de uma criança). Sou do meu corpo, que é meu e que, também, obedece-me, no entanto de uma maneira diferente, de uma forma um tanto estranha para situação tão cotidiana, até mesmo banal: não tenho o mínimo controle daquilo que se processa tão naturalmente. Mas, enfim, recém estou acordando, bocejo, os olhos ainda ardem da noite profunda na qual caí como quem sucumbe numa espécie de vago prazer da própria precariedade, na qual submergi como quem mergulha fundo, por prazer e necessidade, na qual desapareci de mim próprio para reaparecer tantas vezes em quantos sonhos tive nessa noite, travestido em geral de um homem um tanto assemelhado a mim porém muito, muito diferente no que fez, no que pensou, no que sentiu.
Para ser franco, mais parecido comigo do que eu seria capaz de confessá-lo em público. Na verdade, mais fiel aos impulsos que, acordado, amputei. Por pudor, por impossibilidade social mesmo. Por medo. Por desconforto simples e elementar em praticar a aventura de uma plenitude que no cotidiano não se dá porque o cotidiano nos exige urgências mais imediatistas e de mais fácil execução e mais previsíveis e incapazes de sacudir o testemunho alheio.
A sensação, para ser sincero, para ser 100% sincero, é a de que permaneço dormindo. O dia todo. A semana. Os meses. Os anos.
Quando acordarei?
Às vezes acordo-me, e, acordado, sou tomado de súbito e irrefreável desejo de acordar a quantos puder acordar. E meu elemento para semelhante ato, tão radical, não são as mãos, não se constitui nalgum gesto que sacuda o corpo (também normalmente adormecido) do outro. Não. São as palavras que me vêm e me tomam e ganham o espaço, seccionam o tempo, fundindo o presente entre antes e depois do que foi dito, e já não há, depois do que foi dito, a mínima chance de alguém (eu ou o outro) manter inalterada a aparentemente inalterável realidade.
Isso, claro, quando eu “digo”. Quando a palavra não nasce e ali fica, inerte, em estado de dicionário, e sai de mim como poderia, num primeiro instante, nascer: fria ou morna ou indolente ou tão pouco disposta que não seria exagero chama-la de indisposta, de preguiçosa, de omissa, submetida tão-somente à sua natureza de ferramenta.
Quando eu “digo”, eu desloco a palavra que escolhi – mesmo na pressão/opressão da hora –, e ela me empurra, ou me abraça, e empurra ou abraça a quem estou então tentando comunicar algo. Não simples comunicação no restrito e mirrado âmbito dos significados antecipadamente esperáveis e aceitos, não; mas no movimento um tanto vertiginoso daquilo que se parece com a dança, com o tropeço, com algum golpe, e que causa choque, ou menos: surpresa; ou mais: comoção tão ampla que brota em quem ouve a lágrima, o sorriso, o revide, a gargalhada, o silêncio de quem calou não por consentir, mas por sentir, ou então a resposta, gesto gêmeo ao meu, para o que fiz, dizendo-me com a mesma força que empreguei ao dizer o que eu disse.
Ah, palavra que me acorda, que acorda quem está junto a mim, pessoa à qual me dirijo. Que, assim, acorda ao mundo, e o real já não consegue, de jeito nenhum, fingir que é apenas a construção física de uma civilização que empregou unicamente técnicos, capazes só de erigir na calculada disposição das coisas tácteis outras coisas tácteis.
É nessa hora que o dia – o dia que será lembrado, o dia em que algo efetivamente dar-se-á –, é nessa hora que tudo acontece. A compreensão, a aproximação, o afeto, a verdade até ali adiada e finalmente expressa e libertando a ambos, o falante e o ouvinte, de alguma mentira ou de alguma inaceitável omissão sustentada durante tanto tempo pela seca, pela pobreza verbal, pelo mirrado ser que, sem palavras, pouco mais é que um animal com os dias contados e a glória máxima de unicamente respirar sem o êxtase que a consciência desse poder – a respiração – lhe daria.
Despertado pela palavra, não preciso esperar as duras ordens da realidade. Consigo, afinal, tomar posse de mim mesmo, chegar próximo a quem for capaz de me escutar, ser tão mundo quanto o mundo, ser mais mundo que o mundo. A partir da instauração do meu verbo, esse mundo, esse entorno, quase que somente torna-se cenário para essa personagem – eu! – acontecer e virar crônica, poema, conto, lenda, notícia, pessoa a ser lembrada porque escutada, gente, ser que supera o risco mortal de não ser, tornando-se mais que um sujeito daqueles, dos de sempre, unicamente civil (ou servil, dá no mesmo).
A palavra me tira da condição de mudo. E me mudo porque ganho casa, teto, chão.
E ganho pátio, ganho, no caos urbano, a liberdade de ir e vir, sabendo dar os dribles fundamentais, na ocasião adequada, no desaforado ataque da cidade constituída de veículos e edificações que me ameaçam com o esmagamento ou – o que quase é o mesmo – a distração.
E de posse dela, que me possui e, por isso, me impede de ficar possesso, de tornar-me efígie rotineira de um processo amplo em tamanho e confusão, salva-me do mínimo, do nenhum, da ausência doentia quando não há beleza ou significado, transito – mais que pela cidade – por mim mesmo, e, através de mim, retomo meu corpo to-tal-men-te acordado, tão agudamente lúcido que desta vez a cidade se abre em cada canto, em cada brecha, e tudo é passeio ou atalho para o mais importante e o mais importante não é o que tem pressa mas o que é, efetivamente, importante, dotado de sentido e amplidão.
Tudo agora é gigantesco. E nem precisa ser. Leio tudo. O mundo real deixou de ser um obstáculo, um adversário, uma adversidade, uma advertência. O mundo real passou a ser legível.
Sua complexidade, antes emaranhado, agora é abertura translúcida para que eu não tropece e ande como quem voa – mesmo parado, mesmo simplesmente olhando. Vejo, então, com os olhos de quem lê, e meu olhar, educado pela mais intensa e luminosa das orientações, dirige-se para aonde quer que seja, municiado de uma capacidade de traduzir o mundo até então – quando não lido – feito unicamente de ruínas ainda não acontecidas, porém, por acontecer.
A palavra, como a comida, pode estar no lixo, e pode ser encontrada numa valise de luxo: o livro. Busco-a ali, na valise, onde ela costuma sobreviver com mais qualidade, mais nuances, mais riqueza, mais chances de me dar o que preciso: a mim mesmo e aos demais no que têm de melhor – seu segredo, inconfessável a não ser por meio delas mesmas, as palavras.
No lixo também residem, e me servem num primeiro instante para que eu as recicle, as devolva para onde vieram, as evite, as aponte aos que, inadvertidamente, poderiam pegá-las e, com elas, promoverem o combate que só serve para desler o mundo, confundir com barulho a preciosa chance da música verbal que vai além da música fonética. Esta, um grunhido; aquela, a opulenta harmonia melodiosa que nós empresta mãos para pegarmos partes inteiras do universo captável. Mãos que a palavra “mãos” não consegue representar, não traduz. “Mãos” que em essência são poderosas lentes, de longuíssimo alcance, e com elas atingimos regiões remotas, inacessíveis até o dia em que ainda não dispúnhamos de tal música, de semelhante manancial, onde brota uma luz ferina, reveladora, feita a partir do verbo.
Verbalizar a partir do que vem do lixo, do que vem do descaso do acaso, verbalizar municiado com o chumbo envelhecido, envilecido com o que sobra de sons e somas de vocábulos puídos pelo trânsito cansado e cansável de quem fala porque não sabe que pode dizer mesmo calado – verbalizar assim é o urro do agonizante animal sem a notícia de sua iminente morte.
(Mesmo vivo, o conjunto de órgãos protegido pela ossatura e esta pela pele e pêlos sentir-se-á como se sente um rato tentando atravessar um banhado.)
Porém, alívio!, há o livro e, quase lívido, eu o pego e o abro e ele me abre e nos embrenhamos nessa floresta onde fauna e flora revelam, a cada avanço, novos espécimes e formas e reações e forças e relações. Valise onde o luxo só se protege para ser mais belo e mais legítimo e me proporcionar novas chances de crescer por dentro, de ir mais fundo até o que anteontem chamavam de “alma” e ontem de “espírito” e hoje de “mente” e num semelhante repositório colher o que eu possa, o que calha, o que não cala e até o que, calando, se mostra latente à procura de uma cara feita de fonemas, morfemas, vocábulos e no entanto não os encontra e por isso fica ali, aguardando a hora de sua captura, de sua salvação.
No livro estou mais só do que nunca – considerando a convivência vulgar, aquela com quem nada me dará que não seja violência – e, ao mesmo tempo, estou acompanhado como jamais estive, tão próximo de mim que quase me vejo muito além do espelho, essa superfície lisa e fácil e pobre.
No livro encontro a ferramenta para edificar o sonho que a noite me rouba do dia, incapaz, o pobre, com suas luzes excessivas e intermitentes e seus ruídos mais excessivos e mais intermitentes, de enxergar. No livro encontro o remédio para aplacar a apatia que a doença da imaginação ausente instalou e quase faz meu coração adormecer frente a desafios e fascínios, encontro o remédio que acorda-me do sono esvaziado ou do pesadelo que vaga entre uma desorientação e outra. No livro encontro a arma que irá matar a preguiça, que irá exterminar a fragilidade de minhas argumentações contra o que as desafia, mesmo sem arma alguma.
Ler é questão de saúde. De saúde mental. Saio do livro, repleto de palavras e frases e parágrafos e histórias e idéias e sentimentos e sensações e música, saio dele e vou direto a todos os lugares que desejar. A começar, vou direto a mim mesmo.
Descubro-me acordado.
Descubro-me.
Descubro que posso encobrir-me quando isso for essencial.
Descubro que posso encobrir os que se descobrem no frio do mundo.
Descubro que posso descobrir os que encobrem seu frio para melhor o espargir sobre o mundo, sobre mim.
Desprezo esse frio, essa frivolidade.
Ler é um ato generoso.
Traz-me a grandeza de dar-me, dar um ser a mim, que dele tanto necessito, e ao mundo, que pode conviver em paz e confiavelmente com quem lhe dirá o que pode dizer um homem que convive amorosamente com as palavras, corajosamente com as palavras, honestamente com as palavras, civilizadamente com as palavras.
O mundo, que elas me desenham, é um mundo que faz sentido e ao qual desejo. O mundo que as palavras recortam e reproduzem e transfiguram e imitam é um mundo incalculável e jamais restrito.
Um mundo com palavras, sobretudo com as palavras que habitam o livro, as palavras fascinantes, limpas e penteadas e maquiadas na medida certa, esse é um mundo no qual me reconheço, ao qual pertenço e é nele que me torno humano.
Um mundo sem elas, sem tais palavras adequadas e convidativas com seu sortilégio; um mundo sem palavras que carreguem um mundo, sem a oportunidade de narrativas a evocar vários mundos; um mundo desprovido de verbo, um mundo que dispense o dicionário, que ignore gibis, filmes, livros, ah, ignoto deserto no qual eu vagaria a esmo sem sequer poder escrever meu epitáfio. E um morto sem epitáfio é um morto sem sepultura, é um morto sem identidade, é um morto sem nada, nada, nada, nem mesmo a morte – essa tragédia derradeira que ainda contém algum elemento de odisséia, de aventura, algum significado que só as palavras alcançam. E sem elas, sem elas eu seria, morto, menos que um morto. Nem isso. Menos que a palavra “isso”. Nada. Eu nem teria nascido. (03/07/2008)
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7 comentários:
Otimo texto Bentancur. Mais uma obra de mestre que merece ser lido e refletido por muitos. Parabéns!!!
Jeff Negromonte
bom texto paulo... e quanto ao mais abaixo tb te digo... jamais fui a paraty nem nunca vi um buriti... não nos vemos desde a bienal de 2006 em sp e soube que saiste da bertrand...por gentileza ou por real interesse vc manifestou interesse em receber alguns originais meus... vc não estando mais lá existe alguém a quem se possa enviar ???mantenha contato e conheça meu blog roxão...abs
ricardo soares
ps.tô morando mais no rio que em sp
Paulo,
estamos sentindo tua falta.
Tomara que seja só uma falta temporária, gostamos muito dos teus textos.
Volte logo,
Beijo.
Joana Giacomazzi
Caro blogueiro,
francamente, relendo esse texto, longo, no espaço que ocupa e na pretensão (acho que bem atendida), desconfio entender tua ausência por uma semana. O cara escreve um artigo assim e cai exausto, você não acha? Acha sim!
Eu acho. E por isso fiquei esperando. Tem valido a pena.
Arthur Demócrito de Moura - Santa Maria, RS.
Paulo,
acabo de ler "A Palavra Desenha o Mundo" e o que posso lhe dizer é que me parece um maravilhoso exemplo de stream of consciousness que poderia se estender num romance de seiscentas páginas sob uma epígrafe tirada de Enzo Paci: "Nunca estamos completamente acordados, assim como não estamos jamais num sono completo", ao que ele acrescenta: "Durante o sono, a linguagem fala pelos sonhos. No estado de vigília, a linguagem fala com palavras de uma cultura" etc. Você parece ter encontrado um corredor (daqueles de Kubrick em "O Iluminado") depois daquele seu notável poema "Despertando" (de "Bodas de Osso): "Mal amanhece o dia/ largo a minha fênix/ volto à vaca-fria". A vaca-fria, aqui, é substituída por um jorro de logos spermatikós. Sua mente, liberada pelo surto criativo, funciona como esses filmes de animação em que o sujeito traça uma porta na parede da prisão e sai por ela, sem limitações, mais, de espécie alguma. Deu-me tal prazer sua leitura, companheiro, que fiquei, aqui, dizendo "quero mais".
W. J. Solha, autor de "História Universal da Angústia", João Pessoa, PB.
Paulo:
Ao ler "A Palavra Desenha O Mundo",onde você diz: "Acordo, estremunhando, consciente o suficiente para não estranhar o mundo." Vejo o escritor tomado de "insights" perturbados por não menores pesadelos, que contaminaram (continuam contaminando os grandes sonhos e as utopias correspondentes substituídas por distopias, em que o fracasso da humanidade é considerado conseqüência necessária do autoritarismo, sistema inequívoco de a razão enloqueceu. O terrível 1984(1949) de George Orwell marcou o nosso imaginário ao longo de toda a segunda metade do século XX, sem falar na figura grotesca do inseto em que Kafka metamorfoseou o homem sem horizontes, vítima indefesa do cotidiano absurdo (A metaforse foi escrita em 1912...) Não estamos, necessariamente, acordados, é natural e, não o é chegarmos a um estágio de indiferença, a um estado de auto-anestesiamento para evitar sofrimentos por novas decepções após (afinal, inúteis) investimentos intelectuais, ideológicos, estéticos, afetivos, verbais. Há nas tuas palavras um tanto de anestesia, o homem marcado pela akedía (em grego significa literalmente indiferença). Não se quer alardar uma coragem espartana, mas indicar apenas que o corpo falante, a carne plena de linguagem não tem muita dificuldade em continuar na palavra, aconteça o que acontecer. O verbo ocupa anestesia a carne, a palavra bíblica diz: "A palavra se fez verbo e o verbo se fez carne".
É alentador, revelador quando diz: "Despertado pela palavra, não precisa esperar as duras ordens da realidade. Consigo, afinal, tomar posse de mim mesmo." Que tenhas muitos jorros de spermatikós(W.J.Soalha), permitindo-lhes vida, vida plena, meu caro escritor.
Abraço Maira B. Engers (Professora de Literatura, escritora)
aquela parte do "outro eu" me lembrou de um livrinho teu que me deste, quando eu ainda devia ser meio criança. Era de um menininho, no contexto não me lembro se de Platão ou Aristóteles... E olha que faz tempo que eu li, hein! nem tinha muito costume de ler naquela época, pra ver como coisa boa a gente não esquece.
E também já escrevi sobre as palavras, mas algo mais enxuto - redação de cursinho pré-vestibular. Mas enfim, adorei o post. é sempre bom falar sobre palavras.
Beijo
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