O trabalho de criar histórias, ou de simplesmente (aliás, nada simples) achar um jeito de contá-las a todos, é pouco compreendido. Vejam essa cena descrita por Moacyr Scliar:
“O vizinho olhava o escritor que estava sentado, quieto, no jardim, e perguntava: Descansando, senhor escritor? Ao que o escritor respondia: Não, trabalhando. Daí a pouco o vizinho via o escritor mexendo na terra, cuidando das plantas:
Trabalhando?
Não, respondia o escritor, descansando.”
Secreta e silenciosa labuta a do homem que busca desenhar em palavras o mundo que está diante de nós, que nos acena, até mesmo com gritos, ou que, sutilmente, nos toca, e frente ao qual muitas vezes, ainda assim, sem esse retrato perfeito realizado pelo escritor, não escutamos, não enxergamos, não nos sentimos tocados por esse mundo, que é de outro e é, também, o nosso. O mais secretamente nosso.
Tenho mais que um rosto no qual uma voz, produzida por minhas cordas vocais, fabrica um som comandado por uma mente que busca sentido através desse som. Tenho uma voz que possui uma personalidade, e é em qualquer cenário que essa voz ecoa, para poder dizê-lo, ao tal som, desejando ser música (se se trata de poesia), poder dizer-me nele, poder dizer-nos, confissão feita de puro afeto ou coragem para o indispensável reconhecimento, realização suprema.
A partir desse registro, todos podem saber o que acontece, não apenas comigo, mas, de fato, o que acontece. E se não todos, EU fico sabendo. Pelo menos, eu. O que, na minha opinião, não é pouco.
Lembro que, recém alfabetizado, eu já imaginava como as palavras eram: algo que me fazia mais que apenas um corpo. Se simplesmente ditas, representavam (para mim, menino incorrigivelmente curioso e de ouvido sedento) um acontecimento. Imaginem ditas de forma especial. Essa forma eu fui encontrando à medida que crescia – nos contos de terror, nas histórias de aventura, nos poemas de amor ou metafísicos, nas frases caprichadas, musicais, que às vezes eu flagrava na boca de um parente, de um padre, de uma professora.
Percebi, bem cedo – que sorte a minha! –, que as palavras eram como semente, como água, como carne, como oxigênio.
Descobri o tesouro: salvei-me de ser somente um homem condenado aos azares da vida. Diante desses azares, se eles acontecessem, eu buscaria respostas, buscaria, através das palavras, consolo, compreensão frente ao pior, calma e controle ante o melhor (que até o melhor pode nos perturbar).
Entendi, menino ainda, que meu idioma era minha verdadeira pátria, e que o chão onde eu pisava podia, sim, livrar-me da queda, mas seria a minha língua que daria meu rumo.
Quando perdi minha mãe (nesta terça-feira, dia 29, completam-se seis anos), até naquela hora as palavras me salvaram, me deram um pouco do colo que ela já não podia me dar. A literatura, então, toma o lugar materno e me embala, continua a me ajudar a crescer, sempre, junto com a vida que mesmo nas perdas renasce um pouco.
Uma vez um jornalista me perguntou: “o que sentes pelos livros?” Respondi: “gratidão! São meus pais também. Me criaram e me ajudaram a viver, junto com meus pais de carne e osso.”
Eis o poder das palavras, eis o amor das palavras. Eis o seu papel miraculoso.
Quem lê, descobre que pode viver muitas vidas numa vida só.
Quem lê, percebe que um livro foi escrito por uma pessoa muito, mas muuuuito especial. (Evidente: refiro-me aos livros escritos com mais engenho que vaidade.) E que essa pessoa escreveu seu livro como quem pega o melhor de si e o oferece ao mundo.
Devemos ser gratos a quem escreve. Devemos ler tudo o que for possível lermos, escolhendo temas e linguagens de nossa preferência. Não como uma obrigação, mas como um remédio, porque saber salva.
Como uma ferramenta, porque saber constrói.
Como uma voz que se incorpora à nossa e faz com que possamos falar não apenas como um homem solitário, mas como toda a humanidade. (27/07/2008)
Assinar:
Postar comentários (Atom)
10 comentários:
Paulo, nunca vi ninguém tratar a palavra assim, com uma intimidade... Você é poeta quando escreve prosa, é pensador, é educador, é cronista, é uma porção de coisas mostrando o caminho das pedras. Como leitora e como educadora, parabenizo-o pelo trabalho.
Elisa M. Moura, Florianópolis.
Impossível, depois de ler o que escreves, segurar o entusiasmo que nasce pela idéia de pegar um livro e jogar-se nele como quem se joga numa aventura de vida e morte. Força de expressão, amigo. Vida, e só vida. Obrigado!
Aldo Couto Mello – Caçapava do Sul, RS.
Sr. Paulo:
Sem dúvida, é um trabalho secreto, esse, o de ilustrar-se ao máximo. Mas que devia ser público, e extendido a todos. Quem sabe um dia... Seu blog já é uma forma de tornar esse processo complicado e demorado um pouco público.
Júlia Lopes Cintra, Nonoai, RS.
Ei, Paulo, você fala que o trabalho de contar histórias é pouco compreendido. ERA. Depois da série de textos que você tem colocado em seu blog sobre ler e sobre escrever, duvido que alguém ainda não compreenda como é que funciona a química escritor e livros.
Eloi Balbino (Caxias do Sul, RS)
Caro blogueiro:
este blog às vezes nem parece blog. Quer dizer, as pessoas têm uma idéia de que blog é meio como mural, cheio de notinhas, posts que se lê num zás e pronto. Que bom que seu modo de proceder neste espaço é bem diferente. Você corre atrás do fio dágua (estou tentando achar uma imagem que lhe mereça) que acaba, no fim, redundando em rio, rio de palavras no qual você se banha e, ficando aí, no cyberespaço, é rio onde podemos também nos banhar. Quem gosta de ler (quem disse que só há boa leitura nos livros?) pode aproveitar essa oportunidade que você nos oferece.
Emílio Moisés Novaes - Recife, PE
Você está fazendo deste blog um verdadeiro diário de idéias e também um confessionário que serve a todos os que amam a palavra e precisam dela para andar pelo mundo menos despedaçados, menos incompletos. Lemos você e a gratidão é imediata.
Marilena Viegas, Fortaleza, CE.
Bentancur:
Você está fazendo desse seu blog um verdadeiro curso, uma oficina, um mapa através do qual, quem acompanha cada postagem sua, cada texto, pode se sentir guiado através do território acidentado e fascinante da literatura. Uma espécie de Manual Imprevisível de Prática Literária. Muito bom!
Breno Lazzari de Palma / Campo Grande, Mato Grosso do Sul.
Paulo,
lendo "O Trabalho Secreto de Ver Além", fizestes eu retomar uma frase minha num evento para ampliação do acervo da Biblioteca Pública de Santa Rosa: " Quando tentaram impedir que meus pés me levassem ao mundo, os livros, a poesia, a literatura, "a leitura" puseram o mundo aos mweus pés." Assim tu, me refugio nos livros e nas palavras. Acredito que o livro nos entrega o segredo das coisas, dando-nos liberdade. A literutura contém a síntese das contradições.
Querido, é um trabalho secreto, quão, para o escritor as aparências importam pouco; um simples gesto, um pequeno barulho servem para reavaliar uma existência espiritual.
Paulo, tua entrega à palavra cabe,talvez, no poema "Desencanto":
Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.
Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai gota a gota, do coração.
E nestes versos de angústia rouca,
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.
-Eu faço versos como quem morre.
(Manuel Bandeira)
Abraços
Maira B. Engers (Professora de Literatura - Porto Xavier - Santa Rosa/ RS)
Paulo:
Acabo de ler no seu site, no link ALGUMA POESIA, seu poema "Destinatário", que, além do prazer dos encontros consonantais - escrevo. palavras
gravata. creio. crio.
Crivo,cravos, Cristo obra e cobrar - permite a sensação poética que também nos provocam os quadros de Edward Hopper, sempre com tal solidão que, parece, nem o pintor estava presente para registrar as próprias visões. Assim, no que você diz \"Só eu me escrevo\", \"só eu me creio\", \"só eu me crio\" e \"só eu me leio\", produz efeito semelhante, pois - é claro - eu o estou lendo e, portanto, a solidão que você flagra - verdadeira no que a descreve - é falsa no que a leio.
W. J. Solha - autor de "História Universal da Angústia", João Pessoa, PB. Email: wjsolha@superig.com.br
Nossa! Que post maravilhoso! Como uma apaixonada pelas palavras,pelos livros fiquei fascinada com cada linda desse texto. Achei muito interessante a história contada pelo Sclyar. O escritor trabalha pensando, imaginando, criando. Para mim não há nada mais fascinante que a arte de escrever.
Fiquei muito feliz com a sua visita lá no Mar Azul e mais feliz ainda em saber que apreciou o meu humilde blog. Obrigada! Espero que volte outras vezes para mergulhar nas águas azuis de lá. Um abraço!
Postar um comentário