terça-feira, 1 de julho de 2008

LONGE DE PARATY

Não estou em Paraty. Nunca estive lá. Jamais vi um buriti. Não conheço o sertão das Gerais exceto pela prosa descritiva de Guimarães Rosa. Não canto, no meu canto, aqui, e, próximo à avenida Assis Brasil, minha terra sem palmeiras e sem sabiás gorjeia o guinchar dos carros. Não o dos carros guinchados. Ontem à noite um vizinho entrou aqui com o filho de um ano e quatro meses, gripado – o menino –, com sede, com fome, o vizinho também com fome Tinha batido na mulher, tinha apanhado da mulher – mulher que estava numa festa enquanto ele buscava o filho no maternal, depois que saiu do serviço e que a chamou de "vagabunda" quando ela entrou em casa, cuidadosa, perto da meia-noite. Desandaram alguns movimentos de sonoridade agônica como os da "Sinfonia Fantástica" de Berlioz num apartamento de um quarto onde cinco pessoas nada dividem exceto o mesmo teto. Recebi o vizinho, com piedade e prostração, enquanto lia as últimas da festa literária de Paraty ou, conforme a grafia oficial rigorosa considerada após 1971, Parati. Uma guria de 26 anos (santo de casa faz milagres), tendo trabalho como copidesque e variantes em duas grandes editoras, estréia com dois livros ao mesmo tempo publicados por duas grandes editoras. E já está lá, cheirando ainda a leite, em Paraty, lugar de Luis Fernando Verissimo, cenário por onde passaram Saramago, J. M. Coetzee, Ian McEwan, e, neste ano, Alessandro Baricco (leiam “Seda”, sobretudo as moças, dos 18 aos 81!) e um alemão que tá me impressionando, o Ingo Schulze.
Mas o alemão que mais me impressionou foi o meu vizinho, segurança do hospital quase em frente de onde moro, menos de três salários mínimos por mês, querendo continuar um casamento que talvez nem tenha começado nunca. Apanhou e bateu – não necessariamente nessa ordem –, desceu do terceiro andar agarrado a um cano, fugindo dos brigadianos que a mulher chamara na noite de sexta-feira, porque, no mínimo, afinal, ela ganha mais do dobro do que ele recebe e ser chamada de “vagabunda” só porque foi a uma festinha enquanto o marido chegou mais cedo com o filho e os outros dois adolescentes que ela teve com outros dois amores que o passado mandou embora são acidentes naturais de uma vida que prefere dançar do que vigiar.
“Ela é ligeira”, ele me confessou, com lágrimas nos olhos. Levei alguns segundos para entender. “Enquanto estou ocupado nalguma tarefa ela já presta atenção em outro.” Moça curiosa, ora. Moça cheia de amor para dar (lembrei de um filme dos anos 1960, “A Filha de Ryan”). O vizinho, afinal, aceitou um café. Bateram na porta. Era a vizinha acompanhada de dois brigadianos. Queria ter certeza que ele não entraria em casa. Ele levou medo. Podia ser preso? Não, não podia, se se comportasse bem, se baixasse a crista e fosse embora. “Vou para onde? Preciso de um banho! Durmo na rua?” Os pais (ele tem 35 anos) moram a 120km do trabalho. Talvez nesta noite durma no serviço mesmo. Não deve ter amigos.
Abraçou-me, quando foi embora: tinha de aceitar que a mulher não mais o queria. Pareceu, naquele instante, um menino de um metro e oitenta. O filho, até então sorridente, brincando com minha filha de oito, começou num berreiro de puro desespero, esperneando, dizendo “mãe, mãe, mãe!” Uma vizinha, amiga da mãe, agradeceu-nos e o levou. Os brigadianos garantiram que estava tudo bem se o vizinho pegasse suas coisas e sumisse. A mulher não queria mais nada mesmo. Não com ele. Não são casados legalmente mas viveram juntos cinco anos. Isso envolve processo, juiz, bens, guarda do filho, perdas, perdas, perdas.
Quando meu apartamento reencontrou o silêncio, parecia que eu estava numa outra dimensão, noutra região, que minha vida tinha mudado completamente. Que eu nem era mais escritor, nem me chamava Paulo, nem tinha fome, nem sede, nem vontade de falar. Como se eu fosse alguém que nunca tivesse ido a Paraty, esse tipo de evento feito de excessivo merchandising e nenhum espaço para as vicissitudes humanas que, afinal, são o grão da terra onde brota a verdadeira literatura. (02/07/2008)

8 comentários:

Anônimo disse...

belíssimo texto
excelente crítica social

a verdadeira literatura contempla as viscitudes humanas, transfigura-as, não nasce delas, mas da alma e da técnica do artista

parabéns!

Anônimo disse...

Realmente a vida nunca imitou a arte.
Tá aí. Que arte é capaz de retratar uma realidade dessas, vivida num repente, sem esperar?
Até um criador de histórias pode ser surpreendido pela realidade.
É isso aí amigo, a vida!

Anônimo disse...

Paulo,

já me senti sufocada lendo "Frio" ou "A solidão do diabo" mas este texto, por ser real...ufa!!!
Que realidade, que ficção, que tudo!

Abraço

Joana Giacomazzi

Anônimo disse...

O autor como personagem de uma história real.
Ótimo texto.

S.R.Santos

ofício olhar disse...

Paulo, que belíssimo texto, a d o r e i - "Não divivem senão o mesmo teto" é muito lindo isso! E todo o resto...

Anônimo disse...

O artista é o que vê. Mais: É o que escreve. E se o que vê, é o que escreve, não há duvida, que há um escritor em algum lugar.

Otimo texto Paulo, Parabéns!

Jeff Negromonte

Anônimo disse...

Paulo:
Esse texto ficou muito bom mesmo. Parabéns! Só que eu percebi que a história não era real.Isso foi um pouco frustrante.
Pessoalmente, nunca conheci um homem assim tão vitimizado. Não estou sendo irônica. O que conheço mesmo é a violência contra mulher. O texto ficaria impecável se cuidasses desses detalhes psicológicos, dando maior verossimilhança à história.
Mas confesso que achei muito, muito bem escrito.
Parabéns!
Abraço,
Frederica Almeida

Anônimo disse...

Paulo,
tocante, o texto "Longe de Paraty". Há muita sensibilidade e muita competência lingüística, sobretudo narrativa. Se o homem apanhou, se ele bateu, quem sofreu a violência, ora, isso é mesmo o que menos interessa. O que faz a grandeza do texto é o discurso somado ao sofrimento humano (sem essa de masculino ou feminino). Ah, sim, a literatura não copia a realidade, nem é esse seu propósito. Parabéns, meu irmão!!!


Menalton Braff – SP. Escritor, autor de “A Muralha de Adriano”, romance.


11 de Julho de 2008 08:21