Meu post de sábado, o primeiro, “Incorrespondências”, gerou um efeito forte mas meio óbvio.
Todo mundo pulou os dois parágrafos iniciais. O primeiro, a opor um único voluminho do certeiro Flaubert a uma biblioteca inteira escrita pelo espumante Coelho Neto, espécie de repolho verbal das letras. E avisando, ironia e tortura anunciada: lesse o francês impecável, teria de ler o brasileiro opulento como um barril em páginas. Ninguém mencionou a danação de conviver com três horas de paraíso e pagar com anos de leitura, esta sim, da mais pesada. Coelho fornicou nas letras graúdas como um coelho: mais de cem ficções a esmo. A vida não é justa, sabemos. Não seria no mundo da leitura (não só as obrigatórias) que haveria equilíbrio. Para cada cem porcarias, uma maravilha. Aritmética pura. Percentual sensato.
O segundo parágrafo, que ninguém comentou, era uma variante do primeiro. Escolha, se for capaz. Pode ler esse prodígio que são as quinze páginas de “A Construção”, conto de Kafka, mas para tanto é preciso estar socialmente habilitado. Isso significa que terá de passar pela prova de fogo de aturar (suplício dos suplícios) os diários completos de Josué Montello, 5.000 páginas – ou 4.000, que diferença faz? O cara não pode deixar de travar contato com Kafka, que lhe muda a vida, e então passa um ano e alguns meses ligando o cérebro no automático para atravessar os quilômetros de páginas impressas do maçante, desinteressante e infatigável Montello. Duro preço para, afinal, o que vale tanto. Talvez por Montello ainda estar quentinho por aí, a turma ficou na moita. Silêncio de novo.
Mas o terceiro parágrafo (há um quarto e um quinto, porém esses passaram pela garganta sensível dos leitores), ah, o terceiro parágrafo! Alguns comentários não são postados no blog não porque haja um moderador, não. O único moderador existente são os leitores, e muitos deles preferiram me escrever e-mails ao invés de expor seu horror ao terceiro parágrafo em público.
O que há de tão terrível no terceiro parágrafo? Voltem dois textos atrás e releiam. Eu tento (em vão, claro) descrever a exuberância de Scarlett Johansson, imagem feminina perturbadora neste começo de século. De Natasha Kinski, valendo o mesmo para vinte anos atrás. E desenho um ícone que oscilasse, no cabelo, entre Júlia Roberts ou Michelle Pfeiffer, e o corpo fornido e sinuoso – arquitetônico – de Jennifer Lopez. Pra quê! Reduzi a estereótipos o conceito de beleza, é o que muitos disseram. Espera aí, pessoal: essas moças citadas são um escândalo, não menos. Sejamos concretos: elas parecem irreais e... são reais! Dá para resistir? Eu não. E como não, e são inalcançáveis, resta-me então a melancolia de nem chegar perto, e ainda não conhecer as que, sem tal popularidade aqui nesta floresta equatorial disfarçada de concreto, exibem formas semelhantes. Isso para ficarmos só no plano da descrição.
Mas meu parágrafo ia além. Falava que o problema era a equação “tudo isso” e a capacidade quase miraculosa de sustentar uma conversa capaz de transcendências debaixo das estrelas, ou do teto de um quarto, o resto da noite. Estereótipo de novo! BPB = Bela Porém Burra. Não era um estereótipo. Não é. Burras são a maioria. Inclusive as menos dotadas pela natureza. Burros somos todos nós, e sem nem a beleza para nos justificar ou distrair.
Meu pobre parágrafo – acusado de fealdade moral – colocava, como nos ignorados parágrafos iniciais (só porque eles falavam em literatura, e isso é politicamente correto, só que mais complicado), as incorrespondentes naturezas entre matéria e espírito. Flaubert é espírito; Coelho Neto é matéria (cem volumes! Bota matéria nisso...). Kafka é espírito; Josué Montello é matéria (cita todos os citáveis, gerando mais um índice onomástico do que nos dando um pingo de arte ou motivo para reflexão). E as belas – não essas, exatamente: quem me garante que Natasha, por exemplo, filha do alucinado Klaus, não seja capaz de solapar minha literatura de décadas com o improviso de um único poema seu, poema de ocasião? Júlia parece ter talento para educadora. Michelle é um tanto conservadora, mas não burra. Jennifer é um doce, generosa (não, please, esqueçam suas formas): não há cast do qual ela participe que não a elogie como exemplo de colega. O diabo é que criei uma hipótese, forçada naturalmente. Para funcionar como equação, triste reflexo da encruzilhada da vida. Belas e, no entanto, “incomunicáveis”, digamos assim.
E, pior, contrapus a tais fenômenos as habitualmente discretas na aparência, passando desapercebidas por todos os homens do mundo. E capazes, em contrapartida, das mais notáveis habilidades intelectuais, sensoriais, ágeis com a língua não onde um maldoso como eu imaginaria, mas num microfone, num diálogo em alto nível provocado por um sarau. E concluía, o infeliz que sou (“vê se cresce, rapaz!”), que o homem passa a vida tentando dezenas de deusas, como as citadas no desenho estereotipado, e quando já está a pouco menos de dez anos de bater as botas, renuncia a toda a alegria e, aposentado, dedica-se à boa conversa e à ótima convivência com mulheres cuja beleza não salta aos olhos mas, sim, existe. O diabo é que chamamos ao que elas transmitem de beleza mas podíamos chamar de muitas outras coisas, podíamos utilizarmo-nos de dez, vinte palavras diferentes.
Todas elas respeitáveis, é verdade. (13/07/2008)
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10 comentários:
Paulo, meu irmão,
Aquele último comentário, de Lauro Mayer, Joinvile, me pareceu bom ("Bem, mas temos de escolher, sempre correndo o risco. Você tem razão, principalmente na parte literária, que é torturante e até mesmo engraçada. É rir e chorar. Quando chega a parte do afeto e/ou do desejo, meu amigo, aí, pôxa, é dureza"). Mas você reclama do fato de ninguém ter comentado os dois primeiros parágrafos. Isso me parece natural. Você pegou dois exemplos de extremos que são incontestáveis. Nem é preciso comentar. Não li a biografia do Josué Montello porque não sou louco, pelo menos varrido. E o Coelho Neto, meu bom deus, é neto do Paulo Coelho, com a diferença de que o avô não é só chato, é também analfabeto. Te confesso uma coisa: o Coelho Neto era um dos ídolos do meu pai. Nunca li nem pretendo ler. Sim, porque o tempo pra leitura é limitado e os textos são ilimitados. Hay que escojer, mi hermano. Mas terminando, apesar de ser burra, a unanimidade (o Nelson Rodrigues que o diga, ele que disse tanta bobagem que se aceita por ser "inteligente"), acho que ninguém que navega pelos campos da literatura e dos blogues literários vai discordar de você. Flaubert (e não só o da Madame Bauvary, Bouvard e Pécouchet, Salambô) e Kafka são unanimidades.
Sobre a beleza (feminina, na arte, na natureza) não sei por que você se angustia. Se é que. A beleza está aí para ser fruída. O fato de você estar mais perto ou mais longe tem pouca importância. E tem mais: elas são de todos. Quer mais que isso?
Abraço num domingo frio, meia-hora antes de embarcar para São Paulo (Congresso Internacional da ABRALIC, na USP). Amanhã de manhã vou ouvir o Alfredo Bosi ao vivo. Ele não é belo na forma, mas é no conteúdo. Tá vendo! Mais uma incorrespondência. Fazer o quê!
Abraço
Menalton Braff, autor do romance "A Muralha de Adriano"
Paulo,
pena que alguns leitores deste blog não estejam escrevendo seus comentários aqui, segundo minhas fontes (o diálogo corre solto dentro e fora do blog). Gostaria de ler tudo.
Vejo que pessoas maravilhosas lêem e enriquecem teus textos com os comentários e eu, aprendo com eles também.
É ótimo ver pessoas comentarem com tamanha propriedade,conhecimento, assim como o Braff do comentário acima.
Estamos crescendo, e muito, com estas reflexões.
Que venham mais textos. Que venham mais comentários. Isto aqui está uma aula das boas!!!
Beijo
Joana Giacomazzi
Caro Paulo,
se todo mundo pulou os dois primeiros parágrafos nos comentários, já deves ter concluído por quê... Então é isso, o restante do texto valeu. Pior são os que se pula todo!!!
Abraço.
Samuel Dutra.
Leitor, apenas leitor.
Muito bem, Bentancur.
Neste blog estás revelando muito mais que um escritor.
Estou gostando muito.
Abraço
Helena Grandi(Santos/SP)
Mas isso está ficando melhor do que o previsto...rs.
Estou gostando muito de poder ler, também, a resposta do público.
Teu blog vai virar um fórum de debates.
Yes!!!
Bj!
Érica
A Érica disse muito bem. Também estou gostando de ver este blog se transformar em fórum. Isso é ótimo. Pessoas discutindo textos teus e também opiniões e assim vamos formando um belo grupo.Estou adorando,
J.G.
Paulo Bentancur:
este teu blog me foi indicado por uma amiga aqui de BH, hoje estive lendo alguns textos.
Achei muito bom, dá para perceber que és um ótimo escritor, vou procurar Bodas de osso quero muito ler, A solidão do diabo também está me intrigando.
Além de ótimo escritor,que já vou ler mais para confirmar, percebi pelos textos que és um paizão, maridão e ão,ão,ão...rsrs. Olha, com licença a da sua esposa...adoraria te conhecer!!!
Por favor, se vieres a BH comunica!!!
Já sou sua fã.
Beijos
Magda Alencar
K D o blogueiro daqui?
Volta logo Bentancur.
Beijinho
M.T.D.
Moço, Sem dúvida, em outros textos estarão mais parágrafos tão bem situados como estes. Ótimo texto, Bentancur. Bonito de se ler.
Abração
Jeff Negromonte
Querido,quando teremos texto novo?
Aguardando.
Beijo
Lúcia Helena
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