O livro mais popular de todos os tempos, a Bíblia, já em sua primeira seção, o "Gênesis”, diz: “O espírito de Deus vagava sobre as águas”. Ainda não havia luz, só trevas. Nem calor, nem vida, nem emoção. A terra, “sem forma e vazia”, certamente possuía um só elemento que se movimentava: a água. Céus e terra haviam sido criados, como dois extremos, limites, e entre eles a história da vida ainda estava por começar. Nada se movia, além do sopro divino. Nada, exceto as águas.
Só faltava a luz, e ela foi feita em seguida. A partir dali a água virou espelho, sobretudo dos céus. Talvez uma espécie de espelho do Criador, testemunha nem sempre muda dos fatos – e mais tarde da filosofia – que transitam entre o infinito espaço celestial e a superfície terrestre. “Quando o espírito pôde concluir-se / o mar rompeu feroz dominador / e a terra oblíqua ao mar eclipsou-se”, canta o milagre da criação o poeta maranhense Raimundo Fontenele.
Essa voz – a da poesia – não é por acaso. Água e verso sempre se entenderam. Um dos quatro elementos básicos do planeta, a água propicia, com seu ritmo dissoluto, as oscilações próprias de um gênero que busca incessantemente reinaugurar o universo. Um gênero que, a exemplo da literatura fantástica, busca o estranhamento. Estranhamento anotado por Davi Arrigucci Jr. em seu ensaio sobre Cortázar: “é preciso desautomatizar a linguagem. Se ela se automatiza, congela-se na expressão do aparente. (...) É necessário desmascarar a aparência e sua expressão quitinosa, a fim de se reproduzir a visão intersticial do mundo. Desautomatizar a linguagem, desautomatizando a percepção do mundo, é o único meio de se conseguir o efeito de estranhamento sobre o leitor”.
Campanha árdua, essa, de uma espécie de despoluição da atmosfera ficcional onde a realidade da ficção e suas formas correm o risco da asfixia e do aprisionamento. Ao necessário estranhamento corresponde com certeza essa água surpreendente, acariciante, de temperaturas úmidas e maternais. O poeta serve-se da água para não tropeçar na terra áspera e apressada.
Talvez só o fogo, entre os demais elementos, dispute com a água o privilégio da convivência com os poetas.
Mas se o fogo é mais mortal, a água é mais fértil.
Fértil e purificadora. Fértil porque dá à luz.
A luz que vem das águas
O pintor inglês Joseph Turner, precursor do Impressionismo, embora eventualmente melodramático e romântico, pintava óleos onde a luz explodia numa nebulosa procissão de cores claras, sombras tênues, água e vegetação amarelada. O seu é um mundo líquido e incendiado. Inspirou-se sobretudo nas marinhas dos mestres holandeses. Chuva, vapor e velocidade captam a densidade quase irrespirável de uma atmosfera úmida a envolver um mundo em transformação. Turner, não por acaso, foi convidado a realizar uma série de 16 gravuras veiculadas em livro: Os rios da Inglaterra.
O Impressionismo é, na história da pintura, quem sabe a escola que melhor utilizou a água como tema. “O Sena em Vétheuil”, ou “Efeito de sol depois da chuva”, de Monet, é um instante único. A terra limpa e o céu claro contrastam com o leito cheio e a corrente agitada do rio. A água dá o ritmo, corre, é mais forte que tudo.
Monet, aliás, é o nome principal quando se trata de água. Foi um quadro seu que batizou o movimento impressionista, escola que desmancha os contornos, acende todas as luzes (incluindo-se reflexos na água). O fato de ter sido influenciado por Turner não surpreende.
Na mesma época Renoir compõe “La Grenouillère”, onde se vê “os reflexos das figuras e objetos dentro da água, a vibração das luzes – um momento fugaz de felicidade captada em momentânea impressão subjetiva do autor”. Em “Barcos a vela em Argenteuil” a “conjugação de pontos luminosos e coloridos” pousa na superfície iridescente da água.
Nas artes plásticas só a pintura parece possuir os recursos necessários para fazer de rios, mar e chuva (a lágrima está sem função estética) motivos e justificativa de uma obra.
Na literatura o uso da água é mais freqüente, mais nas formas de rio e mar, emblemáticos.
O rio da vida: tempo e caminho
Longfellow tem um poema clássico, presente em qualquer antologia que se preze da poesia universal. “O rio da vida” põe poeta e rio frente a frente, e ante a pergunta do primeiro acerca das ações e motivos do segundo, este responde: “sou a onda do rio da vida, / Que me volvo, do pó denegrida / Que das margens constantes me cai. // Rujo estreita na estreita corrente, / E fugindo apressada, fremente, / Vou buscando a amplidão desse mar. // Onde acabam-se as ribas que odeio, / E do limo do tempo meu seio / Possa – puro – bater e brilhar.” Neste caso, mais do que de água, trata-se do tempo e da maturidade. Maturidade que só vem depois de um lento processo de purificação.
O tempo é o mesmo de Heráclito, que antes de todos serviu-se do rio e do fluxo da água para cantar o infinito correr do tempo e sua corrente transformadora. Jorge Luis Borges lembra: “Que rio é este cuja fonte é inconcebível? / Que rio é este / que arrasta mitologias e espadas? / É inútil que durma. / Corre no sono, no deserto, num porão. / O rio me arrebata e sou esse rio.”
Nada líquido, como se vê; longe de constituir-se em qualquer acidente geográfico, incapaz de obedecer a alguma bacia hidrográfica. É de Cronos, de sua intangível caminhada, que se fala. O rio serve de veículo, como todo veículo contém o tempo. Mas o ar, por exemplo, parece paralisar o instante que passa. E o fogo, constrangê-lo. Só terra e água o acompanham. A terra, mais passiva; a água, mais imaginosa.
“O Pai das Águas, o Mississípi, o rio mais longo do mundo (...) é rio de peito largo – um vasto e escuro irmão do Paraná, do Uruguai, do Amazonas e do Orinoco. É um rio de águas escuras: mais de quatrocentos milhões de toneladas de lama sujam anualmente o Golfo do México, lançadas por ele. Tanto lixo antigo e venerável construiu um delta em que gigantescos ciprestes dos pântanos crescem dos resíduos de um continente em dissolução perpétua e no qual labirintos de barro, de peixes mortos e de juncos alongam as fronteiras e a paz de seu fétido império.” Eis o lugar onde transcorre “O estranho redentor Lazarus Morell”, conto que abre História universal da infâmia, do já citado Borges. O Mississípi, um século antes, foi igualmente palco das aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain.
Durante quatro anos, Twain foi piloto dos barcos que sulcavam esse rio. Tomou contato direto com todas as cidades à margem. Em sua obra-prima, o Mississípi desempenha um papel fundamental, mais do que cenário, incorporado à ação ao ponto de virar não um coadjuvante, mas personagem principal. O romance põe em cena dois adolescentes, o enjeitado Huck e o negro escravo Jim, em fuga através de uma jangada que desce as águas sempre surpreendentes do leito ininterrupto do rio. Desamparo e fuga, busca de afeto e remissão são conduzidos com mão de mestre e a estrada é uma só: o Mississípi e suas promessas e ameaças.
Pascal observa bem: “os rios são estradas que caminham”. Parecem, desta forma, independentes do homem para serem trilhados. Os pés humanos pisam e violentam a terra, que os aceita quase indiferente. A água, entretanto, os acolhe – é diferente. O explorador a ausculta como a um coração: já se disse, aliás, que os rios são veias da terra, e a água sangue da terra.
É desse sangue que se embebeda toda a literatura. É desse caminho que se servem os mais valentes. É nesse tempo que os navegadores se espelham para encarar a face dos descobrimentos.
Camões, n’Os lusíadas, canta com fôlego único essa aventura portuguesa que tornou o mundo maior e o renovou. Herman Melville, em Moby Dick, narra a fúria de uma natureza tão suprema que parece encarnar o poder divino. E uma fera monstruosa – a baleia branca Moby Dick – surge como símbolo inequívoco dos desafios que o mar enquanto metáfora de um universo a ser desvendado propõe ao homem.
Nesse perfil cabem Os trabalhadores do mar, de Victor Hugo, e algumas novelas de Joseph Conrad, um ex-marinheiro polonês que aprendeu inglês depois dos 30 anos e virou um virtuose da língua de Shakespeare.
Outra rota seguem O cemitério marinho, de Paul Valéry, ou, segundo Sônia Brayner, o vigor plástico e visual de A Cachoeira de Paulo Afonso, de Castro Alves.
Ritmo e medo, cenário e testemunha
Fonte suprema e primeira, a água arrasta atrás de si todos as realizações. Quem sabe o desejo pertença ao fogo, mas é à água que cabe o ato e o desfecho. Se o fogo deflagra, só a água encontra o gozo – que uma vez extinto ao fogo retorna.
Água, para a filologia, significa: embriaguez, bebedeira; coisa fácil, facilidade; o líquido que se desprende quando rompe a bolsa amniótica, libertando a vida enfim chegada ao mundo; influência; rastro; nascentes; tesouro; chuva; designação genérica a acidentes geográficos como lagoas, rios, mares etc.; a urina; o suor. Multiplicam-se os sentidos e os nomes da água, e ela é cada vez mais mais coisas.
Não seria a literatura, tão faminta por sentidos e, principalmente, combinações, que deixaria de evocá-la na hora ameaçadora e seca dos exíguos prazos da criação. Socorrem-se os escritores nessa fonte, como Luís Augusto Fischer no conto “Acerca do método de narrar”, que abre seu livro O edifício do lado da sombra: “a sucessão de palavras que iam compondo o relato podia ser comparada ao fluxo de um rio em vias de afunilar-se numa curva, porque a água de sua narrativa adensava-se, escurecia e ganhava velocidade justamente para vencer o torneio caprichoso da natureza do conto em curso. E ninguém ficava livre de encontrar aqui e ali um redemoinho, superficialmente pequeno, talvez, mas cruelmente turbulento nas entranhas , por menor que fosse a pedra ou o galho que lhe tivesse dado origem”.
Conduto preferencial de uma sintaxe amorosa com a língua, a água – travestida não importa como: lágrima, chuva, mar –, vê seus hinos de reconhecimento, gratidão, ameaça ou temor compostos um atrás do outro.
Paulo Bonfim: “A loucura dos mares / invadiu os homens. / Hoje possuímos a voz das ondas, / e nossos gestos / rolam pela tarde...”
Carmen Sylva: “Deus, nos mares, deu ao homem uma soberana caudal de vida e de sustento!”
J. Camba: “O mar – tal qual o vemos – não é nem muito mais bonito nem muito maior que o tanque do Retiro. Água, água salgada que não presta para ser bebida, eis o que é o mar. Já é tempo de dizer a verdade a esse monstro tão orgulhoso. O mar é um prestígio falso.”
Gonçalves Dias: “Oceano terrível, mar imenso / de vagas procelosas que se enrolam, / floridas rebentando em branca espuma / num pólo e noutro pólo, / enfim... enfim te vejo; enfim meus olhos / na indômita cerviz trêmulos cravo, / e esse rugido teu, sanhudo e forte, / enfim medroso escuto!”
A tais nomes, hoje fora de moda, acrescente-se, num esforço não de atualização mas de justiça poética, o João Cabral de Melo Neto de “O mar e o canavial” (“O que o mar sim aprende do canavial: / a elocução horizontal de seu verso; / a geórgica de cordel, ininterrupta, / narrada em voz e silêncio paralelos.” [...] “O que o canavial sim aprende do mar: / o avançar em linha rasteira da onda; / o espraiar-se minucioso, de líquido, / alargando cova a cova onde se alonga”).
Cabral, aliás, é reconhecido como dono de um verso duro, seco, mineral, rochoso. Nem por isso, acertadamente, resistiu ao Rio Capibaribe, descrevendo-lhe a viagem que faz da nascente a Recife e sua natureza humana de rio: “Sou viajante calado, / para ouvir histórias bom, / a quem podeis falar / sem que eu tente me interpor; / junto de quem podeis / pensar alto, falar só. / Sempre em qualquer viagem / o rio é o companheiro melhor”.
Acrescente-se também o indispensável Fernando Pessoa, de “Mar português” (“Ó mar salgado, quanto do teu sal / São lágrimas de Portugal!” [...] “Deus ao mar o perigo e o abismo deu, / Mas nele é que espelhou o céu”).
Convém trazer aqui um acerto de Sêneca: “As grandes dores não têm lágrimas”. É certo, mas que bom que tivessem! Afinal, Lamartine declara, mais acertadamente ainda, que “depois do sangue o mais que o homem pode dar de seu é uma lágrima”.
A dor, portanto, experiência humana lamentavelmente de maior freqüência, historicamente abandona-se à chuva, banha-se em lágrimas, afoga-se no rio, sucumbe ao pânico do mar. A água nos abraça, nos conforta, nos lava do duro resíduo das perdas, e quando nada pode fazer, serve de mortalha digna, dando-nos de alimento aos peixes, jamais aos vermes, como a terra madrasta costuma fazer.
E se a dor busca atenta, ainda que perturbada, seu cenário ideal, dependendo dele – de sua grandeza e generosidade – emoções mais prazerosas brotam e mergulham a infelicidade em águas remotas. É o que se vê no mar de Copacabana, nas crônicas embevecidas e límpidas de Rubem Braga.
Freqüentador do mesmo mar, Carlos Drummond de Andrade, menos “épico”, preferiu outra água corrente no poema “Sob o chuveiro amar”: “Sob o chuveiro amar, sabão e beijos, / ou na banheira amar, de água vestidos, / amor escorregante, foge, prende-se, / torna a fugir, água nos olhos, bocas, / dança, navegação, mergulho, chuva, / essa espuma nos ventres, a brancura / triangular do sexo – é água, esperma, / é amor se esvaindo, ou nos tornamos fonte?”
Já Vicente de Carvalho, de uma intimidade, digamos, mais ecológica, chama ao mar como testemunha e parceiro num canto que se abre para a vida. Aí o poeta soma sua solidão e seu verso sem destinatário ao mar com suas ondas e murmúrios sós e sem destinatário. “Condenado e insubmisso / Como tu mesmo, eu sou como tu mesmo / Uma alma sobre a qual o céu resplende / – longínquo céu – de um esplendor distante. / Debalde, ó mar que em ondas te arrepelas, / Meu tumultuoso coração revolto / Levanta para o céu, como borrifos, / Toda a poeira de ouro dos meus sonhos.” (...) “Ninguém entenda, embora, / Esse vago clamor, marulho ou versos, / Que sai da tua solidão nas praias, / Que sai da minha solidão na vida... / Que importa? Vibre no ar, acorde os ecos / E embale-nos a nós que o murmuramos... / Versos, marulho! amargos confidentes / Do mesmo sonho que sonhamos ambos!” Beba o leitor destes excertos de “Palavras ao mar”, que fez de Vicente de Carvalho um nome sempre lembrado quando o tema é esse.
O mar, de antigo templo da curiosidade e do temor humanos, transformou-se em irmão. O vaivém vigoroso de suas ondas, o movimento poderoso de suas ações, o infinito caleidoscópio do sol na superfície agitada, seus habitantes tímidos, submersos, seu tamanho espantoso e irônico de gigante indestrutível porém fragilizado pela insensatez dos outros, o aproximam da precária condição do homem que não tem com quem compartilhar sua voz. O canto do mar é para si mesmo, resignado.
O canto que chega à praia
Quando não vem das ondas esse canto, elas o causam. O Brasil, país essencialmente musical, banhado por um oceano e com um clima quente que empurra seu povo ao encontro de águas refrescantes, possui uma música popular que se sobressai entre as melhores do terço de terra (já que dois terços são mesmo de água) que formam o planeta.
A família Caymmi, baiana, produziu peças irresistíveis sobre águas que nos banham, nos alimentam e nos educam. Dorival, o pai, é uma autêntica instituição nacional, compondo e interpretando canções de melodia simples e letras diretas, porém extremamente poéticas, acerca do mar e da vida dos pescadores. “O mar” e “É doce morrer no mar” são peças obrigatórias em qualquer discoteca exigente. Seu filho Dori Caymmi segue também nessas águas, só que mais doces que as do pai.
O rio
Na ribeira deste rio
ou na ribeira daquele
passam meus dias a fio
nada me impede ou me impele
ele passa e eu confio
ele passa e eu confio.
Vou vendo o que o rio faz
quando o rio não faz nada
as curvas que ele dá
como eu atrás da amada
ele passa e eu confio
ele passa e eu confio.
Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, o Tom Jobim, é o mais internacional de nossos compositores populares. De suas peças mais felizes, sem dúvida um lugar de primazia cabe a “Águas de março”. Quem não conhece o refrão “são as águas de março / fechando o verão, / é promessa de vida / no teu coração”?
Assolados por um Nordeste onde a seca arrasta seu espectro 350 dias ao ano, por um calor úmido e sufocante na floresta tropical na Amazônia, e por uma temperatura que praticamente nunca baixa dos 25º nas demais regiões do país, é inevitável que busquemos, brasileiros, a proximidade de uma margem, o frescor de um açude, o impacto restaurador da brisa marinha, o cenário propício às águas, quais sejam.
Nossa música não podia cantar outra coisa. Temos carnaval, futebol e sede, muita sede. É o país do cafezinho, da cachaça e da cerveja. Mais desta do que daquela. A cerveja aplaca um calor cotidiano que coroa a febre dos corpos e das almas.
Chico Buarque, em “Morena dos olhos dágua”: “Morena dos olhos dágua / tire os seus olhos do mar. / Vem ver que a vida ainda vale / o sorriso que eu tenho pra lhe dar.” (...) “Descansa em meu pobre peito / que jamais enfrenta o mar. / Mas as ondas não têm hora, morena, / de partir ou de voltar”. Letrista que flerta constantemente com as fronteiras do poema mesmo, Chico publicou um deles na revista Realidade em dezembro de 1968. Ei-lo:
O que é o mar
Esse mar perturbado
Esse mar insistente
Batendo nas costas
Da terra, da gente
Não sei se é carícia
Ou provocação.
Esse mar, não sei não...
Às vezes parece
Um pequeno vestígio
A primeira lição
O mais próximo indício
De revolução.
No entanto, olhem para mim:
Criado na turbulência do mar
Incerto, pouco lhe herdei.
Ajeitei-me como os peixes,
Que acham ótimo ser peixe
E já não cismam de
subir pelas paredes.
Atirei-me no mar,
aliás, fogueira.
Agitei a camisa,
aliás, bandeira,
E senti que a partida,
enfim, a vida,
estava ganha.
A história da música erudita nos dá títulos inequívocos onde leitos de água provocam a imaginação e o coração: “No belo Danúbio azul”, de Johann Straus Jr., “O Lago dos cisnes”, de Tchaikovsky, são, entre os clássicos, os mais lembrados. Para não ficar no óbvio: Vivaldi e o “Concerto para flauta n° 1” , “A tempestade do mar” , em que o italiano faz o imprevisível – usa a flauta não para o idílico, mas para o violento; e “Música aquática” , de Haendel – composta para um barão que desejava singrar as águas do Tâmisa enquanto ouvia música.
Dos musicais dos anos dourados de Hollywood, “Cantando na chuva” , de Gene Kelly, certamente é aquele que realiza à perfeição o espírito romântico – sempre emergindo – de brincar na chuva com inocência infantil, liberdade poética e euforia apaixonada.
A chuva: água vinda do céu, água divina.
A água como fogo e como purificação
Com o Dilúvio Deus lança mão das águas de uma chuva ininterrupta 40 dias e 40 noites com a destruidora força do fogo, inundando a Terra e acabando com os pecadores. Já para lavar os pecados do mundo, bem mais tarde, a religião católica nos oferta a água na pia batismal: água benta que purifica o bebê nascido em pecado. O batismo é o ritual iniciático da convivência do homem com Deus. É o primeiro contato: a criança é acolhida pelo Criador. A água é o elemento desse encontro.
O lava-pés na Quinta-feira Santa é outro cerimonial do catolicismo a utilizar-se da água. O sacerdote que celebra a cerimônia lava os pés de doze pessoas escolhidas em sua paróquia. Trata-se de lembrar Cristo, na Última Ceia, junto com os doze apóstolos. Como não os encontraria mais, decidiu-se a lavar-lhes os pés num ato de singela humildade e dedicação.
Para o taoísmo, escoltado na figura do filósofo Lao-tsé, “nada há mais suave e frágil do que a água, e no entanto, nada é tão eficaz para atacar as coisas duras e fortes.”
No sagrado Ganges, na Índia, os banhos são prática ritualística das multidões de peregrinos que o induísmo vomita nas águas rasas e preguiçosas do rio.
No candomblé, Iemanjá é um orixá feminino das águas, em especial do mar. Seu culto é enorme no Brasil, e ela atende por muitos nomes: Janaína, Princesa de Auicã, Princesa do Aiocá, Sereia do Mar, Rainha do Mar, Senhora das Águas. Sua imagem – geralmente uma senhora com vestes brancas e seios enormes – representa a gestação, a procriação, e dizem-na mãe de todos os orixás, entre os quais Xangô, Iansã e Oxóssi. O sentimento maternal, a afabilidade, a doçura, o apego à hierarquia, a retidão e alguma rigidez, a responsabilidade, a determinação e a força compõem seu caráter ligado sempre à água.
Elemento vital para a ponte entre os seres, e entre estes e os deuses, a água configura, primeiro, a passagem; segundo, a transcendência; terceiro, o encontro; por último, a comunhão.
Revela-se caminho iniciático, veículo e condução de uma alma afim. Em sua transparência, oferece a sublimação pelo que possui de superior, elevando através de um convívio que encaminha para a purificação. Ao propiciar o encontro, banha-nos de reconhecimento, habitantes de um reino singular. Atingida a plena comunicação, comungamos, criaturas e Criador, santificados pela imersão redentora.
A água, enfim, sopra sobre a face de todos. E nos dá uma voz universal.
A voz que as religiões procuram.
Universais também são as intenções suspeitas da humanidade, capaz de servir-se da água às vezes mais como arma do que bálsamo. Como há séculos se sabe, o homem, perigosamente, é capaz de transformar coisas: bastou que acrescentasse à água cor, sabor, espessura, textura, e transmutou-a em vinho, perfume, tinta, veneno.
Criou-se o perfume para a arte da sedução, da paixão, do encantamento. É água inebriante a escrever importante capítulo da história das vaidades.
Quanto à tinta, é sagrada na América desde o tempo dos incas. Entre incas, maias e astecas a pintura (a água em cores, ou a cores) foi vestuário e anúncio de guerra.
Veneno, como coisa que mata, é água em estados alucinatórios: álcool, absinto, chás alucinógenos etc.
Vinho – com a palavra, Omar Khayyãm, poeta, matemático e cientista persa admirado por gente como Borges: “Só o vinho / te libertará de / cuidados, só ele te impedirá / de ficar hesitante entre / as setenta e duas seitas. // Não abandones nunca / o mágico que tem / o condão de conduzir-te ao / doce país do esquecimento”.
Nem só de vinho vive nossa embriaguez, que se compraz em envenenar terra e água. Porém, uma vez tingida – e atingida – a água permanece, irrecuperável, fora do alcance do homem. Lao-tsé adverte: “Quem dentre vós pode tornar límpidas as águas lamacentas? Deixai-as quietas, no entanto, e elas, por si só, se tornarão transparentes”. Ingênuo propósito o do homem controlá-las na totalidade. Impuros e condenados, não as alcançamos em poder e renovação, e nos servimos delas até matá-las. Longe de nós, a ressurreição, que ignoramos, existe para elas. E a realizarão sem nos contar o segredo.
A voz de Píndaro não se cala nunca: “a água é o mais nobre dos elementos”. (31/07/2008)
8 comentários:
Ei, Bentancur:
isto não é um post, mas um curso. Comecei a ler meio distraído, e, quando vi, não acabava nunca. Ainda bem. Consistente nas argumentações, informado, indo de uma arte a outra, passando por todas, até pela religião. Aqui você passou dos limites! No melhor sentido...
Glênio Farias (Taubaté, SP)
Tchê! Mas que fôlego, erudição (trabalho braçal eu diria: pesquiça exaustiva e costura das idéias). Admirável e fazendo a gente não largar até chegar à última linha. Tu consegues esgotar o assunto. Raro isso.
Luís Alberto Chagas - Campo Bom, RS.
Prezado Sr. Paulo:
eis aqui um texto que afoga o internauta. Dependendo do ponto de vista, naturalmente. Porque é tamanho o mar de informações e conceitos, que a gente pode navegar através do seu escrito por horas. Parabéns!
Maria do Socorro Vilhena. Natal, RN.
Meu Deus, se a água rendeu tudo isso, imagina o fogo (que tem o lado ardente, de desejo, e o lado destruidor), e imagina a terra, nosso elemento natural. Gostaria que uma hora você discorresse acerca de como a arte tem tratado ar (esse é mais difícil, imagino), fogo e terra. E não precisa abusar da nossa ignorância! (Riso amarelo.) Pode ser texto breve. Grande blog.
Ítalo C. Bianchini (Erechim, RS)
No post anterior tu falas sobre o trabalho secreto de ver além. Neste, o texto mais extenso que lembro de ter lido num blog de autor brasileiro (acho que convertendo para WORD dá umas 12 páginas, chutando), a capacidade de ver além prova a tese anteriormente colocada no post. Praticamente esgotas o tema "como a água inspirou os artistas / de que formas eles a utilizaram em suas obras, sejam eles músicos, poetas, romances, pintores". E como é necessário, secreto, a exigir isolamento, concentração ao máximo para que se possa atingir um resultado assim. De tirar o fôlego.
Minha modesta contribuição: especialistas no mar – Joseph Corand, com diversos romances, como "O Negro do Narciso" e "Vitória", além de "Lord Jim", e também Robert Louis Stevenson (de "A Ilha do Tesouro") em diversos romances de aventuras mais ambiciosos do que parecem, e ainda, principalmente, o Herman Melville que tu citaste com o "Moby Dick", mas que tem "Billy Budd", "Benito Cereno" e "Taipi". Melville chegou a trabalhar numa baleeira.
Aldo Couto Mello – Caçapava do Sul, RS.
É isso aí, Aldo! Boa contribuição. Conheces o tema. Ou melhor, és um leitor dos raros, pelo visto. Daqueles que, quando descobrem um autor, lêem tudo dele. Foi a impressão (ótima) que me passaste. Agradeço os elogios ao blog. Mas, sem falsa modéstia, o que o pode tornar de fato interessante é essa interlocução com pessoas como tu. Volte sempre!
Maravilha de super texto!
Amigos comentaristas.
O Paulo lê.Meu Deus, e como lê!!!
O Paulo escreve.Ah, e como escreve!
Vocês que comentam, argumantam, complementantam, fazem deste blog muito mais que um blog:isso é um verdadeiro encontro de "cabeças" e que cabeças!!!
Paulo,
todos os textos estão ótimos e não sou só eu que acho, não é mesmo?
Beijo,querido "escrevedor"!
Joana Giacomazzi
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