quinta-feira, 17 de julho de 2008

CARAS-DE-PAU E "UP-TO-DATES"

"Nada disso me espanta, Paulo. O que me espanta é a quantidade de escritores medíocres que estão nas grandes editoras, que são levados a sério pela imprensa e pelos acadêmicos. Nem o argumento de que vendem muito cola, porque muitos deles não vendem grande coisa. Quer dizer, que dois ou três bons escritores se dêem mal, pode ser compreensível, mas que manadas de medíocres faturem parece forte demais pra uma coincidência."

Ernani Ssó
(17 de Julho de 2008, 08:43)

O escritor e leitor citado aí em cima, que me dá o prazer da companhia, propõe, com seu comentário postado no texto “Cavalos afogados no Mampituba”, uma pauta e tanto. Dureza.

Meu propósito anterior era menos espinhoso. Pinçar aqui e ali, não dois ou três nomes, como o rigoroso Ernani acena, mas meia dúzia, uma dúzia provavelmente, de autores excepcionais que foram relegados à periferia do panteão literário. Imersos em suas províncias, não receberam o ruído das buzinas, dos tiros e dos aplausos do Rio de Janeiro, São Paulo e adjacências. Não tiveram seus textos publicados por editora de prestígio. Arcaram com prejuízos, metendo a mão no bolso e sacando o talão de cheques para pagar – para nada, ou quase nada – prestadores de serviços editoriais (designer para o projeto visual, capista, editoração, gráfica) e ainda depois mendigar junto a uma distribuidora e outros espaços “facilitadores” para a veiculação do seu livro sem futuro, sem presente. Isso quando amigos não o fizeram por eles, mais por constrangimento do que por incapacidade desses autores de se mexerem.

Mas, afinal, que capacidade é essa? A resposta talvez esteja na iniciativa dos amigos. Tais escritores escrevem, e só. Escrevem a melhor literatura possível, e só. Escrevem a partir de suas influências (mesmo quando elas são, sim, as melhores), e só. Escrevem com rigor, com entrega, com uma autocrítica do cão, e só. Não escrevem para as namoradas (considerando-se, aí, que sejam atrizes, e famosas), não escrevem para alguma pauta transitória dos editores de olhar simplificador e imediatista. Não escrevem de olho na tevê. Não escrevem de olho no cinema. Escrevem com a mão contaminada pela influência de um Felisberto Hernández (1902-1964), uruguaio, ou um Raymond Carver (1938-1988), norte-americano – para só citar caras que não se costuma citar como cânone –, e nunca servindo de lacaios fashion (forte essa, hem?). Estão ralados, esses escritores. Podem ser o máximo, mas não serão convidados pra p* nenhuma.

Mas não é a esses escritores que Ernani Ssó se refere. É a outros, dispostos a adaptar seu “projeto estético” a projetos alheios. Alheios, inclusive, ao que eles sempre pensaram fazer. Ou nem pensaram, sabe-se lá. Pensaram apenas em safar-se, garantir a vi-si-bi-li-da-de, custe o que custar. E nem custa. Custa o quê? Para escritores assim é barato e um barato (perdoem o anacronismo da gíria). O custo, alto, é de quem paga pelo livro e ainda tem de ler. Produtos. Simplesmente... produtos! Palavra mágica, instrumento que vende, que aparece, que faz carreiras que duram cinco anos – ou dez, ou vinte no máximo – e vão parar nas salas de cinema através de seu gênero inconfundível e insaciável de ser um... produto! Claro que viram filme, ou peça de teatro, ou acham outra mídia que aqui não me ocorre. Porém, ah, época da reprodutibilidade técnica: que capacidade assombrosa de multiplicação daquilo que, não importando a qualidade, apresentou-se, emprestou sua mão-de-obra “especializada” para seguir o trio elétrico do “só não vai quem já morreu”.

Evidente: pode-se (e eu próprio já fiz isso) atender uma encomenda editorial. Escrever algo que me pediram, pautaram, e até deram algumas coordenadas bem específicas. Se o sujeito tiver sorte e algum engenho, realiza um bom trabalho (como Ruy Castro). Até Luis Fernando Verissimo tem escrito muitos de seus livros – depois de uma certa época, acredito que a maioria – por encomenda. Não é a natureza de encomenda que determina a qualidade. É o escritor, óbvio. Se ele for bom, tira de letra – gigolô das palavras – o desafio proposto. Mas uma liberdadezinha é mais que bem-vinda, é essencial para que a obra surja com cara de criação, legítima. Gente como Ruy Castro e Verissimo gozam de prestígio suficiente – construído ao longo não de vinte anos, mas de 35 – a garantir a liberdade essencial para que cumpram os propósitos da encomenda e não insultem a literatura.

O problema está, me parece, na forma afoita com que essa empresa atua, forçando nomes e títulos em meio à inexistência de leitores críticos em um país onde o mercado de livros é diletante e preguiçoso, entregue quase ao acaso e apostando em produções baratas, não no custo, mas na dignidade, na desfaçatez de a literatura ser tratada como obrigação, não como fonte de prazer. E se o que vende, pressupostamente, é fonte de prazer, pedem que se produza o que historicamente tem vendido. O historicamente aí dura em média uma onda de três anos, às vezes três meses – o suficiente para empurrar goela abaixo dos “leitores” dezenas, centenas de milhares de livros cujas tiragens incham à medida que o rosto do autor (autor sim, escritor é que são elas!) vira um ícone, sua inserção massiva na mídia, as lendas ou o falatório em torno dele inchando também. Questão de quantidade. Mensuração. O tamanho do País: gigante pela própria natureza e, perdido nela, adormecido em berço nada esplêndido porém convicto que uma editora é uma empresa com fins comerciais e, a julgar pela maioria dos títulos, somente comercial.

Podia ser diferente? Podia. Mas isso exige muita coisa. Exige que editores não cedam totalmente a certas pressões, tanto econômicas quanto políticas (aqui o sentido é amplo). Mas cedem. As econômicas eu compreendo. As políticas, não. Nesta área dá para escolher, ser isento, não se vender. Dirão: mas as políticas também determinam o fluxo do caixa. É verdade. Mas... Bem, então paremos de uma vez por todas com a hipocrisia de falar em arte quando, na maioria das vezes, estamos, editores, contratando o nome da hora e não, nunca, o nome que atende antes por Literatura do que pelo próprio nome com que assina seus livros.

Puxa, chamem os bons para fazer o serviço sujo. Os bons, mesmo pouco conhecidos. Sei: bandido traz mais frisson para uma cidade que mocinho. Mocinho é complicado, cheio de éticas, um estorvo. E aí pegam cantores para torná-los escritores. E tornam. Pegam atrizes para torná-las escritoras. Pegam editores para torná-los escritores. E professores, obviamente. Pegam o que vier pela frente, até a escritores mesmo. Até a escritores da gema... O que é uma armadilha. Numa coleção encontramos um escritor de primeira com gente que já foi de tudo na vida e acabou dando tanta bandeira que virou “escritor” também. E a maciça maioria dos mal-preparados leitores nacionais não separa alho de bugalho.
Ou separa. Fica com o bugalho.
Além disso, um grande número de escritores autênticos, que matam a tia para escrever um bom livro, que arriscam a pele para escrever um bom livro, estes, uma maioria deles, por não estar no trio elétrico (sentem vergonha do carnaval), ficam fazendo o papel de tradutores, copidesques, revisores, e de vez em quando beliscam um prêmio, uma vez que sua qualidade uma hora acaba vindo à tona, nem que seja para o reconhecimento-relâmpago de uma comissão julgadora cuja eleição não garante a posse de nenhum cargo, nenhuma oferta editorial séria, só os dez salários mínimos do prêmio. Desde que o escritor, evidentemente, pague a passagem e a estadia do próprio bolso para ir lá receber as honrarias. Descontados os impostos e as despesas, ainda sobra a mensalidade da escola do filho. Não é pouco. (18/07/2008)

7 comentários:

Anônimo disse...

Paulo,Ernani. Ernani,Paulo.

Lendo os dois aqui, me perdoem mas, o sentimento foi o mesmo de quando vejo alguns bons delegados da PF ou algum juiz, na luta contra banqueiros, políticos, empresários,poderosos etc.
Ah, que luta inglória, como quase todas neste país.
Valores... Valores...Que dizer às novas gerações?

Joana Giacomazzi

P.S. Estou gostando muito de comentários como os do Ernani.Enriquece muito,impõe debate e, leitora como eu é que ganha!

Anônimo disse...

Muito bom Paulo, tem que bater, tem que bater.

Carlos Henrique Souza

Anônimo disse...

Meu amigo, esse teu conto de julho, "No papel", no link TEXTO DO MÊS, do site, é fantástico! Tanta propriedade que chega a arrepiar. Beijo grande.

Catiani Querubini – RS

Anônimo disse...

Paulo,como tantas vezes a gente não se dá conta do que acontece bem ao nosso lado.
Muito bom trazeres este assunto.Devemos pensar e agir ou pelo menos tentar não é?

Abração,amigo. Teu blog está realmente muito bom.

Paulo Renato

Anônimo disse...

Paulo:

Essa pauta realmente é muito pertinente. Cabe lembrar que existem algumas iniciativas, às vezes tão simples, que podem fazer a diferença na publicidade dos autores e livros desconhecidos pelo grande público.
Ontem, recebi uma cortesia da Editora Fundamento, fazendo propaganda de dois livros. A idéia é muito boa. Um cap. dos livros, com capa caprichada e tudo. Quem lê fica logo com vontade de comprar.
Vi tb o trailler de um livro no YouTube. Isso mesmo. Trailler do livro de um polonês que veio pra cá, ano passado,lançar "O trem de ouro". Miroslaw Bujko.
Os escritores, editores e afins precisam se valer da mídia de modo mais criativo.
A internet abre um novo mundo. Prova disso é que teu blog já virou um fórum de debates.
O que vc acha?
Abraço,
Érica Cocolicchio

Anônimo disse...

Pôxa, caro Paulo, nessa você foi corajoso mesmo. E honesto além do que, imagino, a sua carreira de escritor admitiria. Sei de muito caso de escritor famoso não dar sua opinião (tendo a mesma que você) exatamente para não comprometer seu prestígio.


Marilena Viegas. Fortaleza, CE.

Anônimo disse...

E é claro, amigo Paulo, que do "outro lado" não virá nenhuma manifestação. Os "famosos" estão ocupados demais em montar os holofotes voltados para as próprias caras. De pau. (Seria de rir se não fosse de chorar.)


Túlio Mattos (Diamantina, MG)