quinta-feira, 31 de julho de 2008

AMIGA E (QUASE) AMANTE

A melhor amiga de uma garota de programa deve mesmo ser uma garota de programa. Mesmos problemas, mesmas dúvidas, mesma amargura. Ombro amigo. Do ombro pode-se descer para o colo e do colo quem sabe subir até a boca e ali transformar uma amizade compreensível – até inevitável – num amor, com sexo e tudo. A tese existe, e há casos a ilustrá-la, mas na prática eles parecem ser minoria.
Para o senhor P. H. F., 75 anos bem vividos, “sexo é mercadoria, no caso delas”, e a decepção com os homens não resume a decepção que têm com a vida como um todo. Não amam, ou amarão com tanta dificuldade que, se isso acontecer, será por caminho mais fácil: outro homem. Além do que, a maioria não tem cultura, e são presas fáceis do preconceito, o que leva à conclusão de que homossexualismo ali não se cria.

Há vinte anos na noite, atualmente numa das principais boates de Porto Alegre, uma mulher que se nega até mesmo a dar suas iniciais afirma que das cerca de 40 garotas da casa, três ou quatro, no máximo, já trocaram carícias. “Não dá 10%, e se der, não é coisa séria. É semelhante a masturbação para os homem.” Uma mulher com a outra corresponderia muito mais a um homem solitário se satisfazendo do que a uma postura lésbica.

O hábito sexual, bem acentuado na comparação com uma mulher comum, faz desse tipo de profissional uma pessoa inquieta, viciada, que transa todos os dias, várias vezes, mesmo sem prazer. Nos momentos de solidão, ou simplesmente de ausência de programas, uma, eventualmente, toca a outra, gesto que permite algumas interpretações, todas elas com boa dose de probabilidade.

Por exemplo: a típica combinação (fantasia masculina recorrente) de duas mulheres para um homem. Geralmente são amigas, que confiam uma na outra, e vão para a cama onde, a pedido do cliente, transam entre si. O hábito, se não faz a monja, faz a pitonisa. E mesmo quando o homem penetra uma delas, a outra geralmente é convidada para um papel coadjuvante: dar carinho para a colega enquanto ele dá aquilo no qual acha que se resume um homem. Tendo desempenhado esse papel de lesbianismo performático tantas vezes, as amigas ultrapassam o limite de qualquer hesitação, e dispõem do corpo da outra na hora de um mínimo estímulo. Basta não ter homem por perto.

Outra explicação interessante citada por um assíduo freqüentador de casas noturnas, R. P., 40 anos. A mulher sabe muito bem os pontos sexuais de seu corpo e, desta forma, tocando a parceira, propicia-lhe o prazer mais rápido do que os homens, em regra clientes apressados ou egoístas. E mesmo que elas cheguem a essa prática “homossexual”, não acabam estabelecendo um vínculo amoroso, no mínimo por não se sentirem à vontade num cenário onde todas as colegas, se não acreditam mais no amor romântico entre homem e mulher, ainda assim acham mais excitante o sexo oposto.

Para o caso hipotético de lesbianismo, há que se considerar que em regra, nessas situações, uma das parceiras costuma assumir uma postura ativa, com um perfil um tanto masculinizado, o que inviabilizaria seu negócio na noite. O mercado erótico vive da produção quase caricata de fêmeas estonteantes que vestem uma personagem na qual, se não acreditam totalmente, ao menos se esforçam em sustentá-la, com seus hábitos, charme (mesmo postiço) e desejo (mesmo encenado).

Solitárias, exploradas sem piedade ou levadas a se auto-explorarem, acabam solidárias entre si e, quando não há disputa acirrada – ou por um homem, ou por um cliente mais lucrativo –, e até chegam à amizade estreita, amizade passível de intimidades. Mas os abusos na alcova que essa amizade permite são apenas a distração de um desamparo momentâneo, um joguinho inocente de quem já perdeu quase toda a vergonha. Quase. O nome civil ainda é protegido, e algumas nem mesmo as iniciais consentem em dar. A não ser para as amigas, com quem não têm segredos. Não os do próprio corpo, familiar com tudo o que a família tem de assimilável. E de reservas. (02/08/2008)

7 comentários:

Melissa disse...

Mas que coincidência, fizeste teu site com o meu amigo Marcelo! Me atrevi a escrever sobre algumas peças do Porto Verão Alegre (inclusive sobre a qual participei), quando ainda tinha tempo, nas férias. Se quiseres ler, está no site Artistas Gaúchos, na parte de Teatro. Enfim, algo bem amador.

A mãe me disse que tu tinha um blog, então resolvi passar aqui para ler e para mostrar que também tenho um. Afinal, quem não tem? Mas ele não é assim, tão sério, já aviso...

um abraço!

Melissa

Anônimo disse...

Interessante, principalmente o final, que fica meio ambíguo. Parece que é impossível, num ambiente assim, sem informação, a coragem de admitir a própria sexualidade e, portanto, a homossexualidade se for o caso. Pelo que entendi, não impossível, mas é raro.

Hermes Britto de Palma, Campo Grande, MS.

Anônimo disse...

Acho que a chave deste texto, sua interpretação, está no penúltimo parágrafo, em todo ele. Interessante!

Rafael Messias, Porto Alegre.

Anônimo disse...

Que começo, hem. "A melhor amiga de uma garota de programa deve mesmo ser uma garota de programa. Mesmos problemas, mesmas dúvidas, mesma amargura." E depois, para não perder o pique do ficcionista que não resiste a causar emoção e do crítico que gosta de provocar, vai pra sacanagem e, em seguida, para o drama. Realista, pungente, revelador.

Nem só de livros, autores, e de reflexões (boas, sim) sobre o ato da leitura se faz bons textos. Você é uma prova disso.

Clarice Argolo, Gramado, RS.

Anônimo disse...

Então o leitor ideal, talvez o "último leitor", sai às ruas, ou vai até regiões ásperas, complicadas, e tenta interpretar a alma torturada de pessoas que estão longe do luxo de pegar um livro? Pessoas que nem da própria intimidade dispõem? Por essa eu não espera...

Rubens Cerqueira Mattoso, Viamão, RS.

Anônimo disse...

Paulo,
"Amiga e (Quase) Amante", nos traz a luz submundos, que doem aos nossos olhos a todo instante, fingimos não vê-los ou não existirem, talvez por covardia ou discriminação natural. Teu texto veste-se de denúncia, papel vital para boa literatura, parabéns. Desde todas as eras, as mulheres são exploradas ou se deixam explorarem por pobres seres, ditos homens. A Bíblia cita Madalena, a mulher, que tentaram apedrejar, era pecadora, insana. Talvez porque disse não a continuidade da exploração sexual. O ato da exploração, sim estava enlouquecendo-a, mas era forçada a continuar disposta, fosse a quem fosse.
"O mercado erótico vive ... fêmeas estontentes que vestem uma personagem ... Solitárias, exploradas sem piedade ou levadas a se auto-explorarem..." (Palavras do autor). É o desencantamento com o mundo, com o homem que volta-se a Heidgert (o desaparecimento pelo sistema, pela desumanização). Seres estranhos ao sistema social, desprovidos de valores ou valorização, como Estrangeiras. Reporta-me a Albert Camus em " O Estrangeiro" ou "A Peste".
Abraços
Maira Beatriz Engers (Professora de Literatura, escritora _ Porto Xavier\Santa Rosa\RS)

Anônimo disse...

O Texto em si contrbui para a ambiguidade. E é concedida de forma tão bem elaborada que é preciso parabenizá-lo.

Ótimo.

Jeff Negromonte