A ficção enfim chega ao mundo real. Não é verdade. Chegou há muito tempo, nós é que não nos dávamos conta. Assim como percebíamos que o mundo real chegava na ficção, mas, distraídos, acabávamos separando-os e, assim, empobrecendo o mundo real – porque o mundo imaginário, dele resultante, direta ou indiretamente, o recriava, o potencializava, o embelezava, o engrandecia, o enriquecia, o reconhecia.
Aceitando esse obstáculo (nosso olhar viciado) a impedir cidades e seus artistas de se misturarem nas ruas, nas praças, na geografia, enquanto de fato retratavam-se mutuamente, perdemos muito dos escritores, no caso específico da literatura, naquele aspecto de sua obra onde o cenário acaba fatalmente personagem.
Perdemos demais na cidade pela qual circulamos, cegos ao que a literatura dela já mereceu que a cidade mesma trouxesse para fora dos livros o que nos livros não podia ficar escondido, sugerido. E a cidade – em pedra, em bronze, em traços, em logradouros, em feições físicas – concretiza o que um imaginário edificou em palavras mas ali está ao alcance de nossos olhos, mais que miragem: presença táctil.
A literatura é uma via ampla demais para ser descartada na hora de conhecermos um lugar, uma cidade, um país. E na cidade, convém lembrar, a literatura não está apenas nas bibliotecas, nas livrarias, nas editoras, nas academias, nas casas dos escritores – ou nalguma sala onde um leitor concentrado mergulha fundo em um lugar, local, prédio, escada, janela de um último vandar vertiginoso, sítio, espaço, mato, lagoa, mar, vila, estrada.
Porto Alegre, de onde escrevo, não está apenas na Porto Alegre propriamente dita. Às vezes nem está nela mesma, mas em páginas da primeira fase de Erico Verissimo, como em Caminhos cruzados, em A Guerra no Bom Fim e Os Voluntários, de Moacyr Scliar, em Cães da Província, de Luiz Antonio de Assis Brasil. O Rio de Janeiro reside nuns cinqüenta textos de Machado de Assis, ou em O triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto. São Paulo nas Novelas paulistanas, de Antônio de Alcântara Machado, ou no romance-rio Balada da última cidade, de Renato Modernell. Alguns monumentos específicos, como a ponte Rio-Niterói, no conto "A maior ponte do mundo", de Domingos Pellegrini, autor que redesenha o interior do Paraná e suas sagas em Terra vermelha. Leia Miltom Hatoum e Manaus, esse milagre irônico, aparece como jamais se mostraria em Manaus mesmo.
Dá para fazer turismo sem sair de casa. E até mesmo atingir regiões fora do planeta (sem deixar de fazer parte dele), como a Macondo imaginária de Gabriel García Márquez. As sugestões são muitas. Só não cito aqui uma centena porque a dica foi dada e o resto é com vocês, leitores-turistas, capazes de encontrar com facilidade livros-lugares para visitar. (15/02/2009)
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6 comentários:
Bem, Paulo, tenho de admitir que achaste uma solução econômica extraordinária: as viagens passarão a ser bem mais baratas. E sem aquelas maçadas de acomodações imprevisíveis de hotel, azares no turismo etc. O livro é mais radical e mais seguro. Não deixa de ser engraçado embora seja sério. Boa idéia, hem, daria um bom projeto.
Sérgio Ribeiro Flores – Uruguaiana, RS.
Caro Bentancur:
sim, não tenha dúvida, é uma viagem. Mas OUTRA viagem. Eu, particularmente, prefiro as duas, simultaneamente. Mas, de qualquer forma, não discordo. Afinal, a sua tese é bem clara: é possível fazer turismo literário, dentro dos livros. E fora deles também, na cidade real, buscando o que os livros falaram sobre os lugares que se visita. Nem sempre a gente vai concordar com o autor. No entanto, essa diferença de pontos de vista faz bem para a viagem.
Abraço.
Léo Alves Mattoso, Maringá, PR.
Paulo,
conforme já dizia uma antiga campanha de um governo federal (não lembro o presidente), "quem lê, viaja!" É claro que a gente imaginava aquela coisa assim do tipo viajandão, ou seja, bancar o expedicionário na terra da fantasia. Mas o que você registra muito bem é que nos livros as cidades reais não são menos reais ali impressas. Às vezes são até mais. Bem interessante essa nova natureza de cenário. Grande post!
Maicon de Britto. Patos de Minas, MG.
Pois não é que eu fiquei pensando... E o melhor é que a gente viaja bem acompanhada! Por alguém que conhece o caminho como ninguém (risos). Excelente companhia, imbatível, a do autor.
Beijos para você!
Rosângela Dieter, Feira de Santana, BA.
Caríssimo:
lembrei de um romance que a Cia. das Letras lançou há uns 10 anos, calhamaço, intitulado BARCELONA (não consigo lembrar o autor: nada dele foi publicado no Brasil além daquele livro), e no qual a gente faz um tour incrível pela cidade, junto com personagens igualmente incríveis – o que só aumenta o barato da viagem. Lembrei de CARLOTA EM WEIMAR, do Thomas Mann, e do mesmo Mann aquela descrição do balneário que ele faz em MORTE EM VENEZA. Aliás, o protagonista morre sentado, observando o mar... E isso marcou-me para sempre. Grande viagem! E no caso de Mann, definitiva. Queria contribuir com teu interessante post.
Bruno Alan García, Macaé, SP.
Não sou boa com comentários como tu. Mas adorei Dois Irmãos, do Miltom Hatoum. E tenho que confessar algo: acabaram as aulas, eu acabei logo e finalmente o Incidente em Antares e nunca mais li nada. Não consigo. Andei preguiçosa desde lá. Levei o Cien Años de Soledad na viagem do natal e mal consegui tocar nele. Ai, dá uma folga, já tem que pensar demais o ano inteiro... ainda mais ler em espanhol, tem que pensar mais ainda... enfim, logo voltam as aulas e daí não vou mais poder ler o que sempre quero ler quando não posso ler o que quero ler. Terei que ler as coisas de aula.
besos, gostei do post. é isso aí mesmo.
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