quinta-feira, 31 de julho de 2008

AMIGA E (QUASE) AMANTE

A melhor amiga de uma garota de programa deve mesmo ser uma garota de programa. Mesmos problemas, mesmas dúvidas, mesma amargura. Ombro amigo. Do ombro pode-se descer para o colo e do colo quem sabe subir até a boca e ali transformar uma amizade compreensível – até inevitável – num amor, com sexo e tudo. A tese existe, e há casos a ilustrá-la, mas na prática eles parecem ser minoria.
Para o senhor P. H. F., 75 anos bem vividos, “sexo é mercadoria, no caso delas”, e a decepção com os homens não resume a decepção que têm com a vida como um todo. Não amam, ou amarão com tanta dificuldade que, se isso acontecer, será por caminho mais fácil: outro homem. Além do que, a maioria não tem cultura, e são presas fáceis do preconceito, o que leva à conclusão de que homossexualismo ali não se cria.

Há vinte anos na noite, atualmente numa das principais boates de Porto Alegre, uma mulher que se nega até mesmo a dar suas iniciais afirma que das cerca de 40 garotas da casa, três ou quatro, no máximo, já trocaram carícias. “Não dá 10%, e se der, não é coisa séria. É semelhante a masturbação para os homem.” Uma mulher com a outra corresponderia muito mais a um homem solitário se satisfazendo do que a uma postura lésbica.

O hábito sexual, bem acentuado na comparação com uma mulher comum, faz desse tipo de profissional uma pessoa inquieta, viciada, que transa todos os dias, várias vezes, mesmo sem prazer. Nos momentos de solidão, ou simplesmente de ausência de programas, uma, eventualmente, toca a outra, gesto que permite algumas interpretações, todas elas com boa dose de probabilidade.

Por exemplo: a típica combinação (fantasia masculina recorrente) de duas mulheres para um homem. Geralmente são amigas, que confiam uma na outra, e vão para a cama onde, a pedido do cliente, transam entre si. O hábito, se não faz a monja, faz a pitonisa. E mesmo quando o homem penetra uma delas, a outra geralmente é convidada para um papel coadjuvante: dar carinho para a colega enquanto ele dá aquilo no qual acha que se resume um homem. Tendo desempenhado esse papel de lesbianismo performático tantas vezes, as amigas ultrapassam o limite de qualquer hesitação, e dispõem do corpo da outra na hora de um mínimo estímulo. Basta não ter homem por perto.

Outra explicação interessante citada por um assíduo freqüentador de casas noturnas, R. P., 40 anos. A mulher sabe muito bem os pontos sexuais de seu corpo e, desta forma, tocando a parceira, propicia-lhe o prazer mais rápido do que os homens, em regra clientes apressados ou egoístas. E mesmo que elas cheguem a essa prática “homossexual”, não acabam estabelecendo um vínculo amoroso, no mínimo por não se sentirem à vontade num cenário onde todas as colegas, se não acreditam mais no amor romântico entre homem e mulher, ainda assim acham mais excitante o sexo oposto.

Para o caso hipotético de lesbianismo, há que se considerar que em regra, nessas situações, uma das parceiras costuma assumir uma postura ativa, com um perfil um tanto masculinizado, o que inviabilizaria seu negócio na noite. O mercado erótico vive da produção quase caricata de fêmeas estonteantes que vestem uma personagem na qual, se não acreditam totalmente, ao menos se esforçam em sustentá-la, com seus hábitos, charme (mesmo postiço) e desejo (mesmo encenado).

Solitárias, exploradas sem piedade ou levadas a se auto-explorarem, acabam solidárias entre si e, quando não há disputa acirrada – ou por um homem, ou por um cliente mais lucrativo –, e até chegam à amizade estreita, amizade passível de intimidades. Mas os abusos na alcova que essa amizade permite são apenas a distração de um desamparo momentâneo, um joguinho inocente de quem já perdeu quase toda a vergonha. Quase. O nome civil ainda é protegido, e algumas nem mesmo as iniciais consentem em dar. A não ser para as amigas, com quem não têm segredos. Não os do próprio corpo, familiar com tudo o que a família tem de assimilável. E de reservas. (02/08/2008)

PAULO HECKER FILHO OU A ÉTICA DO NÃO

Tímido, escolhi a palavra escrita, cravada numa folha em branco ou numa tela de computador, para poder ir além do que a palavra, pronunciada pela voz – muitas vezes gaguejante, quando não inaudível –, poderia ir. As idéias sofriam o esmagamento que a pronúncia também sofria.
A razão principal dessa timidez era uma ofensa moral diante de um mundo que legitimava um diluído cinismo a dizer sim aos horrores – estéticos, comportamentais. Escrevendo, só o papel me inibia, e essa inibição se revelava menor que o desejo de imprimir numa página beleza verbal e alguma denúncia que faria um bem enorme à minha frustrada carreira de testemunha muda de tanta hipocrisia criminosa.

Foi aí, em 1974, eu com 17 anos, ele com 41, que conheci Paulo Hecker Filho, um crítico literário daqueles que não hesitaria em dizer que Jorge Amado é de segunda, quando não de terceira categoria.

Hecker tinha amigos como poucos têm, amigos que sabiam o quanto ele era confiável exatamente por ter a coragem de vaiar quando o comodismo da maioria levava ao impulso do aplauso fácil. Amigos que com ele tinham um espelho onde pudéssemos praticar o “não” como legítima expressão da verdade, contra o “sim” preguiçoso ou interesseiro.

Vi-o, a princípio como um guru, depois como um amigo de quem também aprendi a discordar (nada mais lógico num homem que conviveu tão bem com a discordância). Não conheci ninguém mais livre nem mais boicotado, intencionalmente “esquecido” num reduto cultural que, como em toda área, reage segundo o que lhe interessa sustentar.

Infelizmente perdi esse amigo, essa referência, essa literatura chamada Paulo Hecker Filho. Morreu a 12 de dezembro de 2006, com 80 anos de idade, em seu apartamento no bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre. Eu estava morando no Rio de Janeiro e não chegaria a tempo do sepultamento.

Mais que a escrever, aprendi com ele a ser honesto sem ser suicida e a ser generoso sem ser bajulador. Devo-lhe inclusive a independência de não lhe ser epígono e de nem ter seu retrato na parede. O que não combinaria com semelhante mestre. (01/08/2008)

quarta-feira, 30 de julho de 2008

ÁGUA, ARTE E ALTAR (VERTENTE DE IDÉIAS E FORMAS)


O livro mais popular de todos os tempos, a Bíblia, já em sua primeira seção, o "Gênesis”, diz: “O espírito de Deus vagava sobre as águas”. Ainda não havia luz, só trevas. Nem calor, nem vida, nem emoção. A terra, “sem forma e vazia”, certamente possuía um só elemento que se movimentava: a água. Céus e terra haviam sido criados, como dois extremos, limites, e entre eles a história da vida ainda estava por começar. Nada se movia, além do sopro divino. Nada, exceto as águas.
Só faltava a luz, e ela foi feita em seguida. A partir dali a água virou espelho, sobretudo dos céus. Talvez uma espécie de espelho do Criador, testemunha nem sempre muda dos fatos – e mais tarde da filosofia – que transitam entre o infinito espaço celestial e a superfície terrestre. “Quando o espírito pôde concluir-se / o mar rompeu feroz dominador / e a terra oblíqua ao mar eclipsou-se”, canta o milagre da criação o poeta maranhense Raimundo Fontenele.
Essa voz – a da poesia – não é por acaso. Água e verso sempre se entenderam. Um dos quatro elementos básicos do planeta, a água propicia, com seu ritmo dissoluto, as oscilações próprias de um gênero que busca incessantemente reinaugurar o universo. Um gênero que, a exemplo da literatura fantástica, busca o estranhamento. Estranhamento anotado por Davi Arrigucci Jr. em seu ensaio sobre Cortázar: “é preciso desautomatizar a linguagem. Se ela se automatiza, congela-se na expressão do aparente. (...) É necessário desmascarar a aparência e sua expressão quitinosa, a fim de se reproduzir a visão intersticial do mundo. Desautomatizar a linguagem, desautomatizando a percepção do mundo, é o único meio de se conseguir o efeito de estranhamento sobre o leitor”.
Campanha árdua, essa, de uma espécie de despoluição da atmosfera ficcional onde a realidade da ficção e suas formas correm o risco da asfixia e do aprisionamento. Ao necessário estranhamento corresponde com certeza essa água surpreendente, acariciante, de temperaturas úmidas e maternais. O poeta serve-se da água para não tropeçar na terra áspera e apressada.
Talvez só o fogo, entre os demais elementos, dispute com a água o privilégio da convivência com os poetas.
Mas se o fogo é mais mortal, a água é mais fértil.
Fértil e purificadora. Fértil porque dá à luz.

A luz que vem das águas

O pintor inglês Joseph Turner, precursor do Impressionismo, embora eventualmente melodramático e romântico, pintava óleos onde a luz explodia numa nebulosa procissão de cores claras, sombras tênues, água e vegetação amarelada. O seu é um mundo líquido e incendiado. Inspirou-se sobretudo nas marinhas dos mestres holandeses. Chuva, vapor e velocidade captam a densidade quase irrespirável de uma atmosfera úmida a envolver um mundo em transformação. Turner, não por acaso, foi convidado a realizar uma série de 16 gravuras veiculadas em livro: Os rios da Inglaterra.
O Impressionismo é, na história da pintura, quem sabe a escola que melhor utilizou a água como tema. “O Sena em Vétheuil”, ou “Efeito de sol depois da chuva”, de Monet, é um instante único. A terra limpa e o céu claro contrastam com o leito cheio e a corrente agitada do rio. A água dá o ritmo, corre, é mais forte que tudo.
Monet, aliás, é o nome principal quando se trata de água. Foi um quadro seu que batizou o movimento impressionista, escola que desmancha os contornos, acende todas as luzes (incluindo-se reflexos na água). O fato de ter sido influenciado por Turner não surpreende.
Na mesma época Renoir compõe “La Grenouillère”, onde se vê “os reflexos das figuras e objetos dentro da água, a vibração das luzes – um momento fugaz de felicidade captada em momentânea impressão subjetiva do autor”. Em “Barcos a vela em Argenteuil” a “conjugação de pontos luminosos e coloridos” pousa na superfície iridescente da água.
Nas artes plásticas só a pintura parece possuir os recursos necessários para fazer de rios, mar e chuva (a lágrima está sem função estética) motivos e justificativa de uma obra.
Na literatura o uso da água é mais freqüente, mais nas formas de rio e mar, emblemáticos.

O rio da vida: tempo e caminho

Longfellow tem um poema clássico, presente em qualquer antologia que se preze da poesia universal. “O rio da vida” põe poeta e rio frente a frente, e ante a pergunta do primeiro acerca das ações e motivos do segundo, este responde: “sou a onda do rio da vida, / Que me volvo, do pó denegrida / Que das margens constantes me cai. // Rujo estreita na estreita corrente, / E fugindo apressada, fremente, / Vou buscando a amplidão desse mar. // Onde acabam-se as ribas que odeio, / E do limo do tempo meu seio / Possa – puro – bater e brilhar.” Neste caso, mais do que de água, trata-se do tempo e da maturidade. Maturidade que só vem depois de um lento processo de purificação.
O tempo é o mesmo de Heráclito, que antes de todos serviu-se do rio e do fluxo da água para cantar o infinito correr do tempo e sua corrente transformadora. Jorge Luis Borges lembra: “Que rio é este cuja fonte é inconcebível? / Que rio é este / que arrasta mitologias e espadas? / É inútil que durma. / Corre no sono, no deserto, num porão. / O rio me arrebata e sou esse rio.”
Nada líquido, como se vê; longe de constituir-se em qualquer acidente geográfico, incapaz de obedecer a alguma bacia hidrográfica. É de Cronos, de sua intangível caminhada, que se fala. O rio serve de veículo, como todo veículo contém o tempo. Mas o ar, por exemplo, parece paralisar o instante que passa. E o fogo, constrangê-lo. Só terra e água o acompanham. A terra, mais passiva; a água, mais imaginosa.

“O Pai das Águas, o Mississípi, o rio mais longo do mundo (...) é rio de peito largo – um vasto e escuro irmão do Paraná, do Uruguai, do Amazonas e do Orinoco. É um rio de águas escuras: mais de quatrocentos milhões de toneladas de lama sujam anualmente o Golfo do México, lançadas por ele. Tanto lixo antigo e venerável construiu um delta em que gigantescos ciprestes dos pântanos crescem dos resíduos de um continente em dissolução perpétua e no qual labirintos de barro, de peixes mortos e de juncos alongam as fronteiras e a paz de seu fétido império.” Eis o lugar onde transcorre “O estranho redentor Lazarus Morell”, conto que abre História universal da infâmia, do já citado Borges. O Mississípi, um século antes, foi igualmente palco das aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain.
Durante quatro anos, Twain foi piloto dos barcos que sulcavam esse rio. Tomou contato direto com todas as cidades à margem. Em sua obra-prima, o Mississípi desempenha um papel fundamental, mais do que cenário, incorporado à ação ao ponto de virar não um coadjuvante, mas personagem principal. O romance põe em cena dois adolescentes, o enjeitado Huck e o negro escravo Jim, em fuga através de uma jangada que desce as águas sempre surpreendentes do leito ininterrupto do rio. Desamparo e fuga, busca de afeto e remissão são conduzidos com mão de mestre e a estrada é uma só: o Mississípi e suas promessas e ameaças.
Pascal observa bem: “os rios são estradas que caminham”. Parecem, desta forma, independentes do homem para serem trilhados. Os pés humanos pisam e violentam a terra, que os aceita quase indiferente. A água, entretanto, os acolhe – é diferente. O explorador a ausculta como a um coração: já se disse, aliás, que os rios são veias da terra, e a água sangue da terra.
É desse sangue que se embebeda toda a literatura. É desse caminho que se servem os mais valentes. É nesse tempo que os navegadores se espelham para encarar a face dos descobrimentos.
Camões, n’Os lusíadas, canta com fôlego único essa aventura portuguesa que tornou o mundo maior e o renovou. Herman Melville, em Moby Dick, narra a fúria de uma natureza tão suprema que parece encarnar o poder divino. E uma fera monstruosa – a baleia branca Moby Dick – surge como símbolo inequívoco dos desafios que o mar enquanto metáfora de um universo a ser desvendado propõe ao homem.
Nesse perfil cabem Os trabalhadores do mar, de Victor Hugo, e algumas novelas de Joseph Conrad, um ex-marinheiro polonês que aprendeu inglês depois dos 30 anos e virou um virtuose da língua de Shakespeare.
Outra rota seguem O cemitério marinho, de Paul Valéry, ou, segundo Sônia Brayner, o vigor plástico e visual de A Cachoeira de Paulo Afonso, de Castro Alves.

Ritmo e medo, cenário e testemunha

Fonte suprema e primeira, a água arrasta atrás de si todos as realizações. Quem sabe o desejo pertença ao fogo, mas é à água que cabe o ato e o desfecho. Se o fogo deflagra, só a água encontra o gozo – que uma vez extinto ao fogo retorna.
Água, para a filologia, significa: embriaguez, bebedeira; coisa fácil, facilidade; o líquido que se desprende quando rompe a bolsa amniótica, libertando a vida enfim chegada ao mundo; influência; rastro; nascentes; tesouro; chuva; designação genérica a acidentes geográficos como lagoas, rios, mares etc.; a urina; o suor. Multiplicam-se os sentidos e os nomes da água, e ela é cada vez mais mais coisas.
Não seria a literatura, tão faminta por sentidos e, principalmente, combinações, que deixaria de evocá-la na hora ameaçadora e seca dos exíguos prazos da criação. Socorrem-se os escritores nessa fonte, como Luís Augusto Fischer no conto “Acerca do método de narrar”, que abre seu livro O edifício do lado da sombra: “a sucessão de palavras que iam compondo o relato podia ser comparada ao fluxo de um rio em vias de afunilar-se numa curva, porque a água de sua narrativa adensava-se, escurecia e ganhava velocidade justamente para vencer o torneio caprichoso da natureza do conto em curso. E ninguém ficava livre de encontrar aqui e ali um redemoinho, superficialmente pequeno, talvez, mas cruelmente turbulento nas entranhas , por menor que fosse a pedra ou o galho que lhe tivesse dado origem”.
Conduto preferencial de uma sintaxe amorosa com a língua, a água – travestida não importa como: lágrima, chuva, mar –, vê seus hinos de reconhecimento, gratidão, ameaça ou temor compostos um atrás do outro.
Paulo Bonfim: “A loucura dos mares / invadiu os homens. / Hoje possuímos a voz das ondas, / e nossos gestos / rolam pela tarde...”
Carmen Sylva: “Deus, nos mares, deu ao homem uma soberana caudal de vida e de sustento!”
J. Camba: “O mar – tal qual o vemos – não é nem muito mais bonito nem muito maior que o tanque do Retiro. Água, água salgada que não presta para ser bebida, eis o que é o mar. Já é tempo de dizer a verdade a esse monstro tão orgulhoso. O mar é um prestígio falso.”
Gonçalves Dias: “Oceano terrível, mar imenso / de vagas procelosas que se enrolam, / floridas rebentando em branca espuma / num pólo e noutro pólo, / enfim... enfim te vejo; enfim meus olhos / na indômita cerviz trêmulos cravo, / e esse rugido teu, sanhudo e forte, / enfim medroso escuto!”
A tais nomes, hoje fora de moda, acrescente-se, num esforço não de atualização mas de justiça poética, o João Cabral de Melo Neto de “O mar e o canavial” (“O que o mar sim aprende do canavial: / a elocução horizontal de seu verso; / a geórgica de cordel, ininterrupta, / narrada em voz e silêncio paralelos.” [...] “O que o canavial sim aprende do mar: / o avançar em linha rasteira da onda; / o espraiar-se minucioso, de líquido, / alargando cova a cova onde se alonga”).
Cabral, aliás, é reconhecido como dono de um verso duro, seco, mineral, rochoso. Nem por isso, acertadamente, resistiu ao Rio Capibaribe, descrevendo-lhe a viagem que faz da nascente a Recife e sua natureza humana de rio: “Sou viajante calado, / para ouvir histórias bom, / a quem podeis falar / sem que eu tente me interpor; / junto de quem podeis / pensar alto, falar só. / Sempre em qualquer viagem / o rio é o companheiro melhor”.
Acrescente-se também o indispensável Fernando Pessoa, de “Mar português” (“Ó mar salgado, quanto do teu sal / São lágrimas de Portugal!” [...] “Deus ao mar o perigo e o abismo deu, / Mas nele é que espelhou o céu”).

Convém trazer aqui um acerto de Sêneca: “As grandes dores não têm lágrimas”. É certo, mas que bom que tivessem! Afinal, Lamartine declara, mais acertadamente ainda, que “depois do sangue o mais que o homem pode dar de seu é uma lágrima”.
A dor, portanto, experiência humana lamentavelmente de maior freqüência, historicamente abandona-se à chuva, banha-se em lágrimas, afoga-se no rio, sucumbe ao pânico do mar. A água nos abraça, nos conforta, nos lava do duro resíduo das perdas, e quando nada pode fazer, serve de mortalha digna, dando-nos de alimento aos peixes, jamais aos vermes, como a terra madrasta costuma fazer.

E se a dor busca atenta, ainda que perturbada, seu cenário ideal, dependendo dele – de sua grandeza e generosidade – emoções mais prazerosas brotam e mergulham a infelicidade em águas remotas. É o que se vê no mar de Copacabana, nas crônicas embevecidas e límpidas de Rubem Braga.
Freqüentador do mesmo mar, Carlos Drummond de Andrade, menos “épico”, preferiu outra água corrente no poema “Sob o chuveiro amar”: “Sob o chuveiro amar, sabão e beijos, / ou na banheira amar, de água vestidos, / amor escorregante, foge, prende-se, / torna a fugir, água nos olhos, bocas, / dança, navegação, mergulho, chuva, / essa espuma nos ventres, a brancura / triangular do sexo – é água, esperma, / é amor se esvaindo, ou nos tornamos fonte?”
Já Vicente de Carvalho, de uma intimidade, digamos, mais ecológica, chama ao mar como testemunha e parceiro num canto que se abre para a vida. Aí o poeta soma sua solidão e seu verso sem destinatário ao mar com suas ondas e murmúrios sós e sem destinatário. “Condenado e insubmisso / Como tu mesmo, eu sou como tu mesmo / Uma alma sobre a qual o céu resplende / – longínquo céu – de um esplendor distante. / Debalde, ó mar que em ondas te arrepelas, / Meu tumultuoso coração revolto / Levanta para o céu, como borrifos, / Toda a poeira de ouro dos meus sonhos.” (...) “Ninguém entenda, embora, / Esse vago clamor, marulho ou versos, / Que sai da tua solidão nas praias, / Que sai da minha solidão na vida... / Que importa? Vibre no ar, acorde os ecos / E embale-nos a nós que o murmuramos... / Versos, marulho! amargos confidentes / Do mesmo sonho que sonhamos ambos!” Beba o leitor destes excertos de “Palavras ao mar”, que fez de Vicente de Carvalho um nome sempre lembrado quando o tema é esse.

O mar, de antigo templo da curiosidade e do temor humanos, transformou-se em irmão. O vaivém vigoroso de suas ondas, o movimento poderoso de suas ações, o infinito caleidoscópio do sol na superfície agitada, seus habitantes tímidos, submersos, seu tamanho espantoso e irônico de gigante indestrutível porém fragilizado pela insensatez dos outros, o aproximam da precária condição do homem que não tem com quem compartilhar sua voz. O canto do mar é para si mesmo, resignado.

O canto que chega à praia

Quando não vem das ondas esse canto, elas o causam. O Brasil, país essencialmente musical, banhado por um oceano e com um clima quente que empurra seu povo ao encontro de águas refrescantes, possui uma música popular que se sobressai entre as melhores do terço de terra (já que dois terços são mesmo de água) que formam o planeta.
A família Caymmi, baiana, produziu peças irresistíveis sobre águas que nos banham, nos alimentam e nos educam. Dorival, o pai, é uma autêntica instituição nacional, compondo e interpretando canções de melodia simples e letras diretas, porém extremamente poéticas, acerca do mar e da vida dos pescadores. “O mar” e “É doce morrer no mar” são peças obrigatórias em qualquer discoteca exigente. Seu filho Dori Caymmi segue também nessas águas, só que mais doces que as do pai.

O rio

Na ribeira deste rio
ou na ribeira daquele
passam meus dias a fio
nada me impede ou me impele
ele passa e eu confio
ele passa e eu confio.

Vou vendo o que o rio faz
quando o rio não faz nada
as curvas que ele dá
como eu atrás da amada
ele passa e eu confio
ele passa e eu confio.

Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, o Tom Jobim, é o mais internacional de nossos compositores populares. De suas peças mais felizes, sem dúvida um lugar de primazia cabe a “Águas de março”. Quem não conhece o refrão “são as águas de março / fechando o verão, / é promessa de vida / no teu coração”?
Assolados por um Nordeste onde a seca arrasta seu espectro 350 dias ao ano, por um calor úmido e sufocante na floresta tropical na Amazônia, e por uma temperatura que praticamente nunca baixa dos 25º nas demais regiões do país, é inevitável que busquemos, brasileiros, a proximidade de uma margem, o frescor de um açude, o impacto restaurador da brisa marinha, o cenário propício às águas, quais sejam.
Nossa música não podia cantar outra coisa. Temos carnaval, futebol e sede, muita sede. É o país do cafezinho, da cachaça e da cerveja. Mais desta do que daquela. A cerveja aplaca um calor cotidiano que coroa a febre dos corpos e das almas.
Chico Buarque, em “Morena dos olhos dágua”: “Morena dos olhos dágua / tire os seus olhos do mar. / Vem ver que a vida ainda vale / o sorriso que eu tenho pra lhe dar.” (...) “Descansa em meu pobre peito / que jamais enfrenta o mar. / Mas as ondas não têm hora, morena, / de partir ou de voltar”. Letrista que flerta constantemente com as fronteiras do poema mesmo, Chico publicou um deles na revista Realidade em dezembro de 1968. Ei-lo:

O que é o mar

Esse mar perturbado
Esse mar insistente
Batendo nas costas
Da terra, da gente
Não sei se é carícia
Ou provocação.

Esse mar, não sei não...
Às vezes parece
Um pequeno vestígio
A primeira lição
O mais próximo indício
De revolução.

No entanto, olhem para mim:
Criado na turbulência do mar
Incerto, pouco lhe herdei.

Ajeitei-me como os peixes,
Que acham ótimo ser peixe
E já não cismam de
subir pelas paredes.

Atirei-me no mar,
aliás, fogueira.
Agitei a camisa,
aliás, bandeira,

E senti que a partida,
enfim, a vida,
estava ganha.

A história da música erudita nos dá títulos inequívocos onde leitos de água provocam a imaginação e o coração: “No belo Danúbio azul”, de Johann Straus Jr., “O Lago dos cisnes”, de Tchaikovsky, são, entre os clássicos, os mais lembrados. Para não ficar no óbvio: Vivaldi e o “Concerto para flauta n° 1” , “A tempestade do mar” , em que o italiano faz o imprevisível – usa a flauta não para o idílico, mas para o violento; e “Música aquática” , de Haendel – composta para um barão que desejava singrar as águas do Tâmisa enquanto ouvia música.
Dos musicais dos anos dourados de Hollywood, “Cantando na chuva” , de Gene Kelly, certamente é aquele que realiza à perfeição o espírito romântico – sempre emergindo – de brincar na chuva com inocência infantil, liberdade poética e euforia apaixonada.
A chuva: água vinda do céu, água divina.


A água como fogo e como purificação

Com o Dilúvio Deus lança mão das águas de uma chuva ininterrupta 40 dias e 40 noites com a destruidora força do fogo, inundando a Terra e acabando com os pecadores. Já para lavar os pecados do mundo, bem mais tarde, a religião católica nos oferta a água na pia batismal: água benta que purifica o bebê nascido em pecado. O batismo é o ritual iniciático da convivência do homem com Deus. É o primeiro contato: a criança é acolhida pelo Criador. A água é o elemento desse encontro.
O lava-pés na Quinta-feira Santa é outro cerimonial do catolicismo a utilizar-se da água. O sacerdote que celebra a cerimônia lava os pés de doze pessoas escolhidas em sua paróquia. Trata-se de lembrar Cristo, na Última Ceia, junto com os doze apóstolos. Como não os encontraria mais, decidiu-se a lavar-lhes os pés num ato de singela humildade e dedicação.
Para o taoísmo, escoltado na figura do filósofo Lao-tsé, “nada há mais suave e frágil do que a água, e no entanto, nada é tão eficaz para atacar as coisas duras e fortes.”
No sagrado Ganges, na Índia, os banhos são prática ritualística das multidões de peregrinos que o induísmo vomita nas águas rasas e preguiçosas do rio.
No candomblé, Iemanjá é um orixá feminino das águas, em especial do mar. Seu culto é enorme no Brasil, e ela atende por muitos nomes: Janaína, Princesa de Auicã, Princesa do Aiocá, Sereia do Mar, Rainha do Mar, Senhora das Águas. Sua imagem – geralmente uma senhora com vestes brancas e seios enormes – representa a gestação, a procriação, e dizem-na mãe de todos os orixás, entre os quais Xangô, Iansã e Oxóssi. O sentimento maternal, a afabilidade, a doçura, o apego à hierarquia, a retidão e alguma rigidez, a responsabilidade, a determinação e a força compõem seu caráter ligado sempre à água.
Elemento vital para a ponte entre os seres, e entre estes e os deuses, a água configura, primeiro, a passagem; segundo, a transcendência; terceiro, o encontro; por último, a comunhão.
Revela-se caminho iniciático, veículo e condução de uma alma afim. Em sua transparência, oferece a sublimação pelo que possui de superior, elevando através de um convívio que encaminha para a purificação. Ao propiciar o encontro, banha-nos de reconhecimento, habitantes de um reino singular. Atingida a plena comunicação, comungamos, criaturas e Criador, santificados pela imersão redentora.
A água, enfim, sopra sobre a face de todos. E nos dá uma voz universal.
A voz que as religiões procuram.

Universais também são as intenções suspeitas da humanidade, capaz de servir-se da água às vezes mais como arma do que bálsamo. Como há séculos se sabe, o homem, perigosamente, é capaz de transformar coisas: bastou que acrescentasse à água cor, sabor, espessura, textura, e transmutou-a em vinho, perfume, tinta, veneno.
Criou-se o perfume para a arte da sedução, da paixão, do encantamento. É água inebriante a escrever importante capítulo da história das vaidades.
Quanto à tinta, é sagrada na América desde o tempo dos incas. Entre incas, maias e astecas a pintura (a água em cores, ou a cores) foi vestuário e anúncio de guerra.
Veneno, como coisa que mata, é água em estados alucinatórios: álcool, absinto, chás alucinógenos etc.
Vinho – com a palavra, Omar Khayyãm, poeta, matemático e cientista persa admirado por gente como Borges: “Só o vinho / te libertará de / cuidados, só ele te impedirá / de ficar hesitante entre / as setenta e duas seitas. // Não abandones nunca / o mágico que tem / o condão de conduzir-te ao / doce país do esquecimento”.

Nem só de vinho vive nossa embriaguez, que se compraz em envenenar terra e água. Porém, uma vez tingida – e atingida – a água permanece, irrecuperável, fora do alcance do homem. Lao-tsé adverte: “Quem dentre vós pode tornar límpidas as águas lamacentas? Deixai-as quietas, no entanto, e elas, por si só, se tornarão transparentes”. Ingênuo propósito o do homem controlá-las na totalidade. Impuros e condenados, não as alcançamos em poder e renovação, e nos servimos delas até matá-las. Longe de nós, a ressurreição, que ignoramos, existe para elas. E a realizarão sem nos contar o segredo.
A voz de Píndaro não se cala nunca: “a água é o mais nobre dos elementos”. (31/07/2008)

domingo, 27 de julho de 2008

O TRABALHO SECRETO DE VER ALÉM

O trabalho de criar histórias, ou de simplesmente (aliás, nada simples) achar um jeito de contá-las a todos, é pouco compreendido. Vejam essa cena descrita por Moacyr Scliar:
“O vizinho olhava o escritor que estava sentado, quieto, no jardim, e perguntava: Descansando, senhor escritor? Ao que o escritor respondia: Não, trabalhando. Daí a pouco o vizinho via o escritor mexendo na terra, cuidando das plantas:
Trabalhando?
Não, respondia o escritor, descansando.”
Secreta e silenciosa labuta a do homem que busca desenhar em palavras o mundo que está diante de nós, que nos acena, até mesmo com gritos, ou que, sutilmente, nos toca, e frente ao qual muitas vezes, ainda assim, sem esse retrato perfeito realizado pelo escritor, não escutamos, não enxergamos, não nos sentimos tocados por esse mundo, que é de outro e é, também, o nosso. O mais secretamente nosso.

Tenho mais que um rosto no qual uma voz, produzida por minhas cordas vocais, fabrica um som comandado por uma mente que busca sentido através desse som. Tenho uma voz que possui uma personalidade, e é em qualquer cenário que essa voz ecoa, para poder dizê-lo, ao tal som, desejando ser música (se se trata de poesia), poder dizer-me nele, poder dizer-nos, confissão feita de puro afeto ou coragem para o indispensável reconhecimento, realização suprema.
A partir desse registro, todos podem saber o que acontece, não apenas comigo, mas, de fato, o que acontece. E se não todos, EU fico sabendo. Pelo menos, eu. O que, na minha opinião, não é pouco.

Lembro que, recém alfabetizado, eu já imaginava como as palavras eram: algo que me fazia mais que apenas um corpo. Se simplesmente ditas, representavam (para mim, menino incorrigivelmente curioso e de ouvido sedento) um acontecimento. Imaginem ditas de forma especial. Essa forma eu fui encontrando à medida que crescia – nos contos de terror, nas histórias de aventura, nos poemas de amor ou metafísicos, nas frases caprichadas, musicais, que às vezes eu flagrava na boca de um parente, de um padre, de uma professora.
Percebi, bem cedo – que sorte a minha! –, que as palavras eram como semente, como água, como carne, como oxigênio.

Descobri o tesouro: salvei-me de ser somente um homem condenado aos azares da vida. Diante desses azares, se eles acontecessem, eu buscaria respostas, buscaria, através das palavras, consolo, compreensão frente ao pior, calma e controle ante o melhor (que até o melhor pode nos perturbar).
Entendi, menino ainda, que meu idioma era minha verdadeira pátria, e que o chão onde eu pisava podia, sim, livrar-me da queda, mas seria a minha língua que daria meu rumo.

Quando perdi minha mãe (nesta terça-feira, dia 29, completam-se seis anos), até naquela hora as palavras me salvaram, me deram um pouco do colo que ela já não podia me dar. A literatura, então, toma o lugar materno e me embala, continua a me ajudar a crescer, sempre, junto com a vida que mesmo nas perdas renasce um pouco.

Uma vez um jornalista me perguntou: “o que sentes pelos livros?” Respondi: “gratidão! São meus pais também. Me criaram e me ajudaram a viver, junto com meus pais de carne e osso.”
Eis o poder das palavras, eis o amor das palavras. Eis o seu papel miraculoso.

Quem lê, descobre que pode viver muitas vidas numa vida só.
Quem lê, percebe que um livro foi escrito por uma pessoa muito, mas muuuuito especial. (Evidente: refiro-me aos livros escritos com mais engenho que vaidade.) E que essa pessoa escreveu seu livro como quem pega o melhor de si e o oferece ao mundo.
Devemos ser gratos a quem escreve. Devemos ler tudo o que for possível lermos, escolhendo temas e linguagens de nossa preferência. Não como uma obrigação, mas como um remédio, porque saber salva.
Como uma ferramenta, porque saber constrói.
Como uma voz que se incorpora à nossa e faz com que possamos falar não apenas como um homem solitário, mas como toda a humanidade. (27/07/2008)

sábado, 26 de julho de 2008

MENINOS NADA QUADRADINHOS

Todo menino, em algum momento de sua vida, sonhou ser Picasso. Nenhum menino sonhou ser Machado de Assis.
A infância conhece bem a força de uma imagem, e aposta tudo nela. Mais tarde, quando crescemos, ficamos surpresos em ver que as laranjas já não são tão douradas como antes, as águas se tornaram menos azuis. Lodosas agora, marrons ou cinzas, justificam-se, segundo dizem, pela atual poluição. Mas não é só isso. Nossos olhos, menos impressionados, emprestam ao tom da água uma opacidade que quando criança não enxergávamos.
Hoje, já adultos, dividindo os sentidos entre os reinos da imagem e da palavra, tudo fica um pouco diluído, e nada brilha, não reverbera, não explode, não nos causa o impacto de um sopro no coração, de um cisco no olho. Nossa mente ocupa-se demasiadamente fazendo as contas entre o que é dito e o que é desenhado. E o que, afinal, resta dito e desenhado não depende mais só do desenho e só da informação verbal.
Mas isso agora, hoje, já adultos. E antes, como é que era mesmo antes?
Antes eu tinha seis anos e morava entre Livramento, no Brasil, e Rivera, no Uruguai. Em Livramento havia a casa dos meus pais. Em Rivera, a de minha avó materna, Lela, na frente de um cemitério abandonado.
O cenário era propício: restos de tumbas. Algum osso, de repente, apontando em meio a areia. A lua branca no céu escuro sobre o campo santo, campo, aliás, não mais santo, abandonado. Eu e meus amigos nos sentávamos no que restara do portão de entrada do cemitério e ficávamos contando histórias, uma mais aterrorizante que a outra.
Lembro de um dia em que minha avó, particularmente impressionável, vinha passando e viu osso comprido. Pegou-o temerosa mas sem resistir à curiosidade. mediu sua canela e viu que o tamanho era o mesmo. Jogou rápido o osso por cima dos muros roídos do cemitério. Naquela noite, e durante um mês, ela sonharia que uma mulher vestida de preto vinha mancando e gemendo: “devolve minha canela, devolve minha canela!”
A voz era lúgubre, dizia minha avó (e eu, que hoje rio, ficava de olho estalado). Havia um açougue ali perto, e os cachorros do bairro roubavam os ossos e os espalhavam nas ruas. A gente nunca sabia se a origem do osso era prosaica ou poética, natural ou sobrenatural.
A verdade é que em meio a essas categorias (o horror/o humor, o mundo visível/o mundo invisível), eu me perguntava que linguagem seria capaz de reproduzir tal ambiente com fidelidade. Na verdade esta pergunta eu me fiz bem mais tarde, mas naquele tempo, embora a infância me ocupasse com sua permanente distração, certamente a semente dessa pergunta já germinava.

Desenhar uma caveira não era difícil. Rudinei, meu melhor amigo, fazia isso. Era um futuro bom desenhista. Eu preferia recontar histórias que Gilberto, meu avô paterno, havia contado. Rudinei sentia-se em desvantagem diante da minha capacidade de improviso verbal. Eu, por mais que falasse e falasse e falasse, me sentia mudo diante de alguns traços que ele fazia com o lápis de cera numa cartolina. O desenho parecia tão mais imponente, tão mais ritualístico, tão mais real.
Era apenas aparentemente mais visível. Eu não havia me apercebido ainda que os olhos são analfabetos, que gravam a imagem sem saber nada sobre ela. E se nada sabem, de que adianta ver o que vêem? Os olhos precisavam de tradução, de legendas, de um apoio. Como um desenho solitário parecia uma cripta, uma gárgula, um monstro estacado no meio do cemitério na madrugada dos meus pesadelos. Como um texto sem desenho parecia a terra seca, árida, onde nada brotava. Um podia alimentar o outro, eu ia descobrindo, a cada livro que lia.
As palavras também podiam desenhar, eu saberia mais tarde, mas bem mais tarde. Assim como as imagens (um cartum, por exemplo) podem constituir-se num comentário político, assim como um desenho de Gustave Doré pode constituir-se num poema, num conto.
Vivem isolados, e bem. E podem igualmente compartilhar um mesmo tema. Naturalmente com impressões particulares, diferenciadas.

A imagem é sempre a resposta mais eficiente. Menino que é menino tem pressa. Não usa relógio mas tem pressa. Não porque obedeça a prazos, mas por que se sente permanentemente empurrado pela curiosidade e pela fome do olho e das mãos e das pernas. Menino é um atleta do conhecimento. Se esse conhecimento é revestido de prazer, de alegria.
Com poucos anos decidi ser escritor. Primeiro, porque não sabia desenhar, e minha escolha nascia de uma derrota. Mas essa impressão era ilusória.
À medida que eu ia escrevendo as histórias, elas iam se fazendo, portanto nasciam e se tornavam o que viriam a se tornar muito depois de eu começar a escrevê-las. Só quando punha o ponto final. Agora sim, a história existia, estava ali, era possível ver. E era essa invisibilidade da palavra que aturdia nossos olhos. Como podíamos julgar o que tínhamos que ler, e reler, e pensar sobre. O desenho, na sua imediata materialidade, capaz de uma apreensão mais rápida que a do texto (no processo mecânico de visualização, nada mais que isso) nos prometia uma vida mais fácil.
Cresci debaixo dessa sombra, dessa falsa disputa. Uma imagem: mil palavras; uma palavra: nem um mísero risquinho? Quando via as obras de literatura infanto-juvenil, buscava compreender, com muito esforço.
Livro com belas ilustrações e péssimo texto: aí eu sentia a força da imagem e o desprezo pela palavra. Se o desenho era tão maravilhoso e eles puseram uma porcaria de texto, é porque ninguém estava mesmo dando muita bola pro texto.
Livro com bom texto e péssimas ilustrações: aí eu TAMBÉM sentia a força da imagem e o desprezo pela palavra. Um texto tão bom... e aqueles desenhos! Só podia ser porque ilustração era imprescindível, TINHA que ter imagem e pronto, não importando sua qualidade.
Conclusão: até ali me parecia que imagem e texto brigavam, um anulava o outro.
Aí caras como o Ziraldo, por exemplo, foram apaziguando essa guerra que secretamente eu assistia. Grande desenhista, grande texto. Era a perfeição. Tudo o que eu sonhara. Ou Angela Lago, ilustração se fazendo texto, exigindo uma leitura para além de olhos afoitos em busca de apenas uma figura colorida, bonita.

Era o resultado de todo um processo, longo, ao qual Monteiro Lobato dera um senhor empurrão. A literatura dos contos de fada viera pouco a pouco dando voz a temas que incorporavam, com o avançar das épocas, problematizações infantis para além das emoções mais elementares do medo e do fascínio faceiro. Junto com essa perspectiva ficcional, digamos, menos inocente, o texto, até então pouco mais do que esquemático, conheceu um adensamento, admitiu brechas na narração, passou a conviver sem complexos com a ausência de uma linearidade até então inevitável, porém agora sem justificativas.
Atualmente são até comuns os livros infanto-juvenis que encaram frente a frente a morte, a violência, o sexo, as drogas, a excepcionalidade, a separação dos pais, a filosofia. Aquele tipo de literatura feita para crianças, que apostava tão-somente na essencialidade da aventura, de mãos dadas com uma linguagem que não podia correr riscos, que não ousava, sobrevive hoje praticamente apenas nesses livros-jogo, onde se admite a história comportada só para a convivência da estrutura movimentada do livro. Você decide qual o destino da Princesa, escolhe o inimigo que o Príncipe enfrentará, opta por qual castigo para o malfeitor.
Felizmente, os livros são inesgotáveis, ainda mais para esse público, ávido por novidades. Um exemplo: O menino quadradinho, de Ziraldo, obra não tão badalada quanto O menino maluquinho.
No princípio do livro são quadradinhos, primeiro brancos, depois coloridos, com belos desenhos, cada vez mais detalhados. A seguir os quadradinhos vão dando lugar às palavras, uma onomatopéia aqui, uma descoberta modestamente registrada por poucas sílabas ali, e logo um rio de frases começa a correr. O menino, que conhecia a imagem, não a palavra, começa a viajar pelo som e o sentido dos bichinhos vivos do dicionário. Descobre o dicionário. Multiplica a sua vida. Lê.
À medida que o texto do Ziraldo avança, o corpo das letras impressas no livro vai diminuindo. Quando o livro começa, temos letras enormes, típico tamanho de letra para criança ler. Quando o livro acaba, o corpo da letra é 9, menor do que isso só para nota de rodapé. Aliás, é uma nota a última frase: comenta que o leitor deve estar estranhando, que deve estar achando que esse livro era para crianças só no início. Sim, que nem a vida.

Tal livro, que considero obra-prima absoluta, configura para mim um resultado que, afinal, apagava a labareda incômoda no meu coração dilacerado: texto ou desenho?
Primeiro: porque a solução de Ziraldo é rara, não é regra. E há outros nomes (muitos, além do de Angela Lago!) que possuem essa mesma habilidade dupla. Segundo: porque essa experiência provava exatamente o contrário. O grafismo de Ziraldo, desenhando até com a mancha impressa na página (o texto, texto mesmo, servindo de ilustração), mostrava que o texto, texto mesmo, pode prescindir dessa possibilidade se a história for outra.
Era simples. Minhas preocupações eram, na verdade, diferentes. Eu estava mais para a filosofia do que para o desenho. Meu texto tinha caminhado, talvez sem que eu percebesse, para o terreno das perguntas, da mancha neutra, sem função gráfica.
Depois de tanta cabeçada, creio que o tempo se cansou de mim, e eu cresci. Irremediavelmente cresci. Vi na palavra o meu desenho. Assim como não é difícil vermos no desenho de alguém a sua palavra. E são só metáforas, que, na verdade, vão além de sua função.
Minha palavra era apenas a palavra, palavras, um rio delas, um mar, ou cemitério, talvez condenado ao abandono. Quanto mais palavra a minha palavra, mais poderia representar o que eu queria representar. Quanto mais desenho o desenho do desenhista, mais ele poderia representar o que desejava.
E nem era representação. Há muito tempo a mimese cedeu lugar a algo mais audacioso. A arte é um mundo à parte que não dispensa o mundo. E, às vezes, até dispensa. Mas, sendo um mundo à parte, seus elos eram menos evidentes do que eu suspeitava. E sua solidão, mais funcional – e fascinante.

Meu projeto estético era o seguinte: eu queria desenhar o mundo, e desenhar o mundo invisível, o mundo que o real desconhecia. Todo artista quer desenhar essa visão, visão que jamais se completa. Geralmente é uma tarefa que leva toda a nossa vida e sempre ainda falta um pouquinho, um retoque.
Talvez por isso eu tenha me tornado um escritor de vários gêneros. Querem poema? Eu faço. Crônica? Eu faço (esta, todo brasileiro faz). Conto? Escrevo, sim. Romance? Agora mesmo estou atolado num de quase 300 páginas. Literatura infantil? Sim, sim, sim. Juvenil? Claro, por que não? (As duas últimas, tema desta reflexão.) Crítica literária? Evidente: já publiquei, sei lá, algumas centenas de resenhas, artigos, ensaios.
Tanta fome se explica como?
Parece-me que a explicação é exatamente por eu ter, durante algum tempo, permanecido indeciso na fronteira rebelde entre o desenho e a palavra. Um cutucando o outro.
Na verdade, não se cutucam. Vivem bem, sozinhos. E podem, muito bem, viver juntos. O casamento dos dois, como todo casamento, exige atenção constante, cuidados extremos.
Quando eu tinha seis anos de idade e ficava na frente do cemitério, conversando até altas horas com meus amigos, naquela época eu já estava me tornando um filho legítimo desse casamento.
Não como criador, mas como leitor. Como criadores podemos citar o Ziraldo, o André Neves, e, de outra forma, uma dupla afinadíssima como Eliardo e Mary França, ou as duplas que os editores tão bem improvisam, tendo à disposição ilustradores inacreditáveis e autores incansavelmente criativos. Como criador, só pude carregar o peso da palavra. Como leitor, ainda hoje busco o desenho no desenho, a palavra na palavra, que é como deve ser, num primeiro momento, mas também a palavra no desenho e o desenho na palavra. Que é, no fundo, a ambição maior dos dois (criadores e elementos).
Assim como cada homem é a humanidade inteira, um texto busca cumprir um papel que é apenas seu, mas, é só bobearem, e ele cumpre todos os papéis possíveis. A mesma coisa com a ilustração que, se deixarem, vale a história toda.
E é bom a gente deixar. (26/07/2008)

sexta-feira, 25 de julho de 2008

A IMPOSSÍVEL ARTE DE NÃO LER

Leio, leio bastante, leio demais. Sempre li, leio todos os dias, lerei sempre. Como deixar de ler? Atravessei mais de quatro décadas, já alfabetizado, a experimentar pequenos milagres dentro do cotidiano que inclui a leitura. A leitura constante me ensinou a falar muito além da fala natural, aquela que todos somos capazes. A leitura constante me levou a chegar até o mais próximo possível do desenho complexo de quem sou de fato. Leio tanto, e escrevo e falo a partir disso, como se a cada momento refizesse o mesmo caminho, aperfeiçoando-o a cada retomada. Desfazendo e refazendo esse percurso e, nele, me refazendo.
De alguma forma, pela palavra, me reinauguro. Não há nenhum exagero nisso. Exagero, penso, é não ler. Como podem existir pessoas que não lêem?!, me espanto. É espantoso pensar que alguém possa viver aquém do mundo verbal na sua expressão máxima (a desse mundo, na escrita impressa). Em tal situação, sem o remédio, sem a ferramenta, sem a arma que a palavra impressa representa, sofrem de um sério problema de saúde. Saúde mental. Ler deveria ser prescrito pelos médicos. Os psiquiatras, no caso.
Os que não lêem praticam uma arte dificílima, que ignoro qual seja. Uma arte que ignora a arte, uma arte de existir apenas, sem a vida que há na apreensão das mil variantes da existência, apreensão só possível através da leitura de textos que recriam todas as experiências humanas possíveis e impossíveis. A vida, mais que na própria vida, está nos livros. Uma vida especial, aprofundada de um modo que a vida mesma, sem o suporte verbal, não suporta.
Que difícil – que terrível! – deverá ser não ler. Nem imagino como se pode conseguir sobreviver a essa catástrofe.


Através da palavra, recomeço a cada fala, a cada pensamento. Quem fala (e falar também é ler, porque é espelho de nossa leitura) se apresenta a quem escuta e nesse encontro nasce o novo, uma relação até então inédita. O escritor: eu. A cidade: o cenário, o personagem e o tema. Uma obra se inicia? Não. Ela já existe há muito tempo. É um capítulo que se abre e nele nos encontramos.
Já visitei mais de cem cidades no Rio Grande do Sul, e em todas elas estive a convite de escolas, universidades, feiras de livro organizadas por instituições. Fui “a trabalho”, isto é, dar palestras, ter encontros com alunos, professores. Sempre buscando, não promover meus livros, não, mas promover um dos bens mais preciosos que conheço: a palavra impressa, cuja convivência nos ajuda a nos entendermos melhor, a entendermos melhor nosso próximo, a acharmos um jeito eficiente e verdadeiro de mostrarmos quem somos para os outros e para nós mesmos.
Sem as palavras, seríamos seres ilegíveis.

A palavra nos desenha. Nos recorta. Nos seleciona. Nos traduz. Deixamos de ser um estranho, de ser um animal belo porém de poucos recursos. O uso das palavras – o bom uso delas, naturalmente – nos aproxima uns dos outros e nos aproxima dos mistérios da vida mais concreta (que é indiferente a nós sem tal ponte) e das profundezas mais insondáveis do espírito.
Aliás, através das palavras tais profundezas deixam de ser insondáveis.

Sempre achei que nasci duas vezes. Quando minha mãe me deu à luz e quando aprendi a ler.

Depois que comecei a ler, não parei. Não parei mesmo. E resolvi que queria escrever para, de alguma forma, retribuir o prazer que os livros me davam.
Decidi cedo que seria escritor. Acho que com doze anos eu já sabia que o meu destino seria o de publicar livros. Embora faltasse muito tempo ainda, claro.
Mas comecei, pré-adolescente, a escrever contos, poemas, quase todos os dias.
Eu era um menino como qualquer outro. Levantava pandorgas em Santana do Livramento, onde nasci (depois que fui para Porto Alegre não levantei mais), jogava futebol e era metido a craque (metido apenas, os adversários discordavam dessa minha opinião e geralmente estavam certos), me apaixonava mensalmente por uma colega de aula. Como todos. Ou quase todos, já que alguns de jeito nenhum que iriam... querer ser escritor! Apaixonar-se mensalmente dá menos trabalho.

Minha família mudou-se para Porto Alegre em 1967. Comecei a publicar contos, artigos e poemas nos jornais da capital aos 18 anos. Em seguida fui trabalhar em editoras. Minha tarefa consistia em ler livros escritos e convencer o dono da editora em publicá-los ou em recusá-los. 90% eram recusados, o que é normal. Nesse trabalho, acho que conquistei 10% de amigos e 90% de inimigos.
Demorei para decidir-me a publicar meus próprios livros. Primeiro, preferi testar meus escritos em concursos literários. Quando ganhava algum, mandava o texto premiado para alguma editora. Se a editora aprovava o texto, que bom. Eu topava e o livro saía. Foi assim que passei a publicar. Bastante até. Minha bibliografia consta de mais de 30 títulos, a maioria de infanto-juvenis. Por quê?, me perguntam. Acho que porque tenho um temperamento adolescente, ou seja, sou inquieto, curioso, em constante transformação, o que me parece um sinal de vitalidade.

Ser leitor não significa ser escritor, é claro. Mas como sou escritor e como a coisa que um escritor mais faz na vida não é escrever, mas é ler, sou um leitor antes de mais nada. Um leitor voraz, insaciável.
Vivo, dentro do universo, como todos, um universo em especial, o do livro, do escritor e da leitura. Universo que passa pela escola, que pode formar leitores mas também pode destruí-los. Passa pelas feiras de livro, que, como qualquer evento, qualquer festa, servem de convite – nem sempre irrecusável, infelizmente – para o convívio com o livro. Passa, em resumo, por diversos aspectos, uns e outros contribuindo ou atrapalhando uma relação que deveria ser natural, como nossa vontade de ir ao cinema, de escutar música: a relação do ser humano com o ato de ler.
Ler – faço questão de destacar – QUALQUER COISA. Existem gibis fantásticos, histórias em quadrinhos maravilhosas. Algumas graphic novels superam muita literatura metida a besta que anda por aí. Questão de ler, ler bem e então poder distinguir. Há revistas com matérias insuperáveis, reportagens com todos os ingredientes de uma boa ficção (e com o tempero de a personagem principal ser a realidade), artigos, crônicas e entrevistas de excelente qualidade. Tem jornal cuja leitura constante nos deixa pessoas mais completas.
Ler. Isso é o que importa. Leitura que não se resume apenas à palavra, mas que não a dispensa. Leitura que igualmente se dá no ato de olhar uma gravura, uma foto, um quadrinho, um olhar de ressaca ou um olhar limpo, um expressão de contrariedade ou um sorriso no que ele tem de menos evidente.
Falo mais em livros porque é neles que em geral há material impresso mais denso, é neles que moram os clássicos, os autores importantes. Mas eu, por exemplo, além dos 2.000 livros que possuo em casa, assino dois jornais e três revistas. E ainda fico com vontade de assinar outros mais. (25/07/2008)

segunda-feira, 21 de julho de 2008

MEU PERSONAGEM, MEU IRMÃO?

Um texto de ficção pode sobreviver de várias coisas. Só o cenário já pode dar conta do recado, um cenário que não serve apenas como locação, mas é presença forte, trama e personagem da história, porque vai além de pano de fundo e sufoca tudo, serve mais que de moldura, serve como movimento, ação, presença.
Só o cenário, em geral posto em segundo plano pelos escritores. Quem se preocupa mesmo com cenário é cenógrafo, é o teatro, é o cinema, é o quadrinista. Escritor quer contar uma história, desde Aristóteles, que recomendava isso em sua Poética. E uma história, mesmo boa, fracassa se não for vivida por bons personagens, isto é, seres vívidos.
Daí chegamos ao meu tema neste instante: o personagem.
Nunca sei quem ele é. Preciso de mim mesmo, de minha experiência e da experiência daqueles com quem convivo, experiência de vida que dá substrato, essência real ao personagem a ser criado. Criado?
No meu caso, dificilmente crio, isto é, invento. Descubro-o simplesmente. Vou avançando muito devagar, não invadindo o sujeito de súbito – que é para não assustá-lo e ele inventar de se retrair e eu perder a preciosa oportunidade de, afinal, descobrir quem é o cara.
Parto, como estava explicando, de alguma experiência humana que revele um caráter, uma generosidade, uma mesquinharia, uma coragem, uma fobia, mais um tipo físico que fique em pé, isto é, que se sustente, seja convincente, cuidando (é meu jeito) de não torná-lo, pelo desenho, uma caricatura.
Se dessa mistura de elementos (jamais selecionados a priori, e sim, sempre a partir da situação criada ou do tipo necessário para vivê-la) surgir alguém, ótimo. Ótimo não, menos é inaceitável. Tem que ser alguém, ou seja, um ser verossímil, quase de carne e osso não fosse feito apenas de palavras.
Eis meu personagem, que só conheço depois da última página, não antes. E muitas vezes – na maioria, devo dizer – nem depois da última página.
Meu irmão de fato, porque acaba vivendo coisas que vivi, ou quase vivi, ou sonhei viver, ou temi viver, ou escutei que alguém viveu, ou nada disso mas o empurrei para algo que alguém de que tomei conhecimento viveu ou poderia perfeitamente ter vivido.
Desta forma, meu personagem é um duplo (meu irmão gêmeo) e um estranho (não o controlo nem o compreendo e, por isso mesmo, por causa dessa incompreensão, preciso acompanhá-lo passo a passo e, como já disse, termino a história às vezes sem entendê-lo). É por essa razão que ele pode funcionar. Pelo risco que conscientemente assumo em tratá-lo como se nada soubesse dele, sabendo tudo.
Por contraditório que isso pareça, não é. Sei tudo porque fui eu quem escreveu tudo. Mas minha descrição desse personagem em regra é feita mais de perguntas, de dúvidas, de tateios através dos quais vou deixando (tenho escolha?) que o personagem faça o que bem entender. E é aconselhável que ele possua essa suprema liberdade de aparentemente não ter sido criado por mim. Ele DEVE ser cria de si mesmo, seguindo exemplos extraídos da vida sem as facilidades que a vida dá (refiro-me a essas execráveis simplificações que só existem fora da literatura, pelo menos fora da boa literatura, já que a má literatura imita a vida como ninguém, não quer ir muito fundo mesmo).
Meu personagem, em suma, é um pobre diabo e um ser à beira do abismo, uma alma que se contorce entre as forças opostas que o jogam de um lado a outro, forças invisíveis para ele e, pior, para seu deus também – eu, cuja existência ele ignora; eu, que ignoro essas forças também.
Ou, claro, meu personagem pode ter todas as certezas que não tenho, toda a força que não pude encontrar. Nesse caso, trata-se do estranho que mencionei.
Meu personagem, em resumo, não é meu. (22/07/2008)

sábado, 19 de julho de 2008

JÁ ESTÁ NA HORA DE CITARMOS DREXLER. ALÉM DE ESCUTÁ-LO

Se você é um dos felizardos que conseguiu seu ingresso para assistir o uruguaio Jorge Drexler (Montevidéu, 21/09/1964) no 3o Festival de Inverno, no Teatro do Bourbon Country, amanhã, domingo, 21 de julho, às 22h, parabéns. Lotação esgotada desde o meio da semana. Vitor Ramil, uma sobremesa no show, vai estar junto, dando as boas-vindas ao vizinho com quem tem uma música em parceria, “12 Segundos de Escuridão”. A letra? Naturalmente de Drexler, de sensibilidade literária como um Caetano Veloso porém discreto como um Chico Buarque. E com sólida formação intelectual (sem o pedantismo que poderia tornar ilegíveis suas letras) num país mais que discreto, grave. “12 Segundos de Escuridão” canta o movimento de um farol cuja luz não importa, somente os 12 segundos que o farol, em sua incessante rotação, demora até retornar com a previsível iluminação sobre o óbvio visível. É naquele intervalo de 12 segundos, no escuro – quando a luz se movimenta na direção oposta –, que se pode ver o possível de si. Sem a distração inevitável do que a claridade, chegada, apenas encobre com mostrar o cenário evidente. Mas Drexler, filho dos filhos da ditadura uruguaia, que em 2005 emergiu para o cenário internacional com o Oscar para melhor canção original no filme Diários de Motocicleta, de Walter Salles, tem dez álbuns lançados, desde 1992. Dezesseis anos de um estilo entre a balada, substituindo o que seria explicitamente político há meia geração pela metafísica possível da constatação das ausências, das revelações tardias, do amor cuja precariedade é, contraditoriamente, sua única plenitude e, rara, a ser apreendida com toda a entrega, isto é, a dos desarmados de ilusão. E eu sem ingresso!

Drexler é um romântico sem inocência alguma, um filósofo diluído em canções cuja transparência não cedem à simplificação, um pensador que nos embala, nos toma com sua melodia que cabe no amplo nicho do pop de qualidade. Altíssima, aliás. Seu violão vai do minimalismo à procura do acorde menos gritante e, assim, menos surdo, ao toque enérgico de um homem que mergulha não só na letra, sempre ambiciosa e altamente sugestiva, mas na melodia que nos deixa tensos pela força que convoca e com a qual nos carrega para longe. Longe do barulhinho chato empurra-empurra e das letras que andam por aí, letras que, se lidas, o ouvinte se surpreende com algo entre o simplório e o gratuito. Pop, definitivamente, não serve. Drexler tem experimentado, nessa década e meia de carreira, diversos gêneros, o rock entre eles. Mas um rock mais (ou menos) que progressivo, acariciando as cordas e, noutras músicas, fazendo-as vibrarem como elásticos de atiradeiras cuja pedra estilhaça nossas vidraças e, através delas, deixa entrar o alarido da época, o vento que vem do rio soprando lá fora.

E eu sem ingresso.

Exagero? Ouçam “Hermana Duda”, ouçam. E ouçam outra vez. Quando conseguirem parar de ouvir, me escrevam. Eis o link para chegarem nessa peça contagiante e perturbadora (o que dá no mesmo).

http://www.youtube.com/watch?v=nxYrbw9hu9o&feature=related

Aí vai a tradução da letra, para se ter uma idéia. Mesmo dissociada, aqui, da melodia, sobrevive, e bem.

Irmã dúvida

Não tenho a quem rezar, pedindo luz.
Ando apalpando o espaço às cegas.
Não me interpretem mal,
Não estou me queixando.
Sou jardineiro dos meus dilemas.

Irmã dúvida,
Passarão os anos,
Mudarão as modas,
Virão outras guerras,
Perderão os mesmos
E tomara que tu
Sigas me levando contigo.

Mas esta noite, irmã dúvida,
Irmã dúvida, da-me um respiro.

Não tenho a quem culpar
Que não seja eu,
Com meu monte de “coisas pendentes”.
Não me interpretem mal,
Estou me dando bem. Ou pelo menos
Tenho a intenção.

Irmã dúvida,
Passarão os discos,
Subirão as águas,
Mudarão as crises,
Pagarão os mesmos
E tomara que tu
Sigas mordendo a minha língua.

Mas esta noite, irmã dúvida,
Dá-me uma trégua.

Irmã dúvida,
Passarão os anos,
Mudarão as modas,
Virão outras guerras,
Perderão os mesmos
E tomara que tu
Sigas me levando contigo.

Mas esta noite, só esta noite,
Irmã dúvida, dá-me um respiro...”

Carajo. E eu sem ingresso. (19/07/2008)

quinta-feira, 17 de julho de 2008

CARAS-DE-PAU E "UP-TO-DATES"

"Nada disso me espanta, Paulo. O que me espanta é a quantidade de escritores medíocres que estão nas grandes editoras, que são levados a sério pela imprensa e pelos acadêmicos. Nem o argumento de que vendem muito cola, porque muitos deles não vendem grande coisa. Quer dizer, que dois ou três bons escritores se dêem mal, pode ser compreensível, mas que manadas de medíocres faturem parece forte demais pra uma coincidência."

Ernani Ssó
(17 de Julho de 2008, 08:43)

O escritor e leitor citado aí em cima, que me dá o prazer da companhia, propõe, com seu comentário postado no texto “Cavalos afogados no Mampituba”, uma pauta e tanto. Dureza.

Meu propósito anterior era menos espinhoso. Pinçar aqui e ali, não dois ou três nomes, como o rigoroso Ernani acena, mas meia dúzia, uma dúzia provavelmente, de autores excepcionais que foram relegados à periferia do panteão literário. Imersos em suas províncias, não receberam o ruído das buzinas, dos tiros e dos aplausos do Rio de Janeiro, São Paulo e adjacências. Não tiveram seus textos publicados por editora de prestígio. Arcaram com prejuízos, metendo a mão no bolso e sacando o talão de cheques para pagar – para nada, ou quase nada – prestadores de serviços editoriais (designer para o projeto visual, capista, editoração, gráfica) e ainda depois mendigar junto a uma distribuidora e outros espaços “facilitadores” para a veiculação do seu livro sem futuro, sem presente. Isso quando amigos não o fizeram por eles, mais por constrangimento do que por incapacidade desses autores de se mexerem.

Mas, afinal, que capacidade é essa? A resposta talvez esteja na iniciativa dos amigos. Tais escritores escrevem, e só. Escrevem a melhor literatura possível, e só. Escrevem a partir de suas influências (mesmo quando elas são, sim, as melhores), e só. Escrevem com rigor, com entrega, com uma autocrítica do cão, e só. Não escrevem para as namoradas (considerando-se, aí, que sejam atrizes, e famosas), não escrevem para alguma pauta transitória dos editores de olhar simplificador e imediatista. Não escrevem de olho na tevê. Não escrevem de olho no cinema. Escrevem com a mão contaminada pela influência de um Felisberto Hernández (1902-1964), uruguaio, ou um Raymond Carver (1938-1988), norte-americano – para só citar caras que não se costuma citar como cânone –, e nunca servindo de lacaios fashion (forte essa, hem?). Estão ralados, esses escritores. Podem ser o máximo, mas não serão convidados pra p* nenhuma.

Mas não é a esses escritores que Ernani Ssó se refere. É a outros, dispostos a adaptar seu “projeto estético” a projetos alheios. Alheios, inclusive, ao que eles sempre pensaram fazer. Ou nem pensaram, sabe-se lá. Pensaram apenas em safar-se, garantir a vi-si-bi-li-da-de, custe o que custar. E nem custa. Custa o quê? Para escritores assim é barato e um barato (perdoem o anacronismo da gíria). O custo, alto, é de quem paga pelo livro e ainda tem de ler. Produtos. Simplesmente... produtos! Palavra mágica, instrumento que vende, que aparece, que faz carreiras que duram cinco anos – ou dez, ou vinte no máximo – e vão parar nas salas de cinema através de seu gênero inconfundível e insaciável de ser um... produto! Claro que viram filme, ou peça de teatro, ou acham outra mídia que aqui não me ocorre. Porém, ah, época da reprodutibilidade técnica: que capacidade assombrosa de multiplicação daquilo que, não importando a qualidade, apresentou-se, emprestou sua mão-de-obra “especializada” para seguir o trio elétrico do “só não vai quem já morreu”.

Evidente: pode-se (e eu próprio já fiz isso) atender uma encomenda editorial. Escrever algo que me pediram, pautaram, e até deram algumas coordenadas bem específicas. Se o sujeito tiver sorte e algum engenho, realiza um bom trabalho (como Ruy Castro). Até Luis Fernando Verissimo tem escrito muitos de seus livros – depois de uma certa época, acredito que a maioria – por encomenda. Não é a natureza de encomenda que determina a qualidade. É o escritor, óbvio. Se ele for bom, tira de letra – gigolô das palavras – o desafio proposto. Mas uma liberdadezinha é mais que bem-vinda, é essencial para que a obra surja com cara de criação, legítima. Gente como Ruy Castro e Verissimo gozam de prestígio suficiente – construído ao longo não de vinte anos, mas de 35 – a garantir a liberdade essencial para que cumpram os propósitos da encomenda e não insultem a literatura.

O problema está, me parece, na forma afoita com que essa empresa atua, forçando nomes e títulos em meio à inexistência de leitores críticos em um país onde o mercado de livros é diletante e preguiçoso, entregue quase ao acaso e apostando em produções baratas, não no custo, mas na dignidade, na desfaçatez de a literatura ser tratada como obrigação, não como fonte de prazer. E se o que vende, pressupostamente, é fonte de prazer, pedem que se produza o que historicamente tem vendido. O historicamente aí dura em média uma onda de três anos, às vezes três meses – o suficiente para empurrar goela abaixo dos “leitores” dezenas, centenas de milhares de livros cujas tiragens incham à medida que o rosto do autor (autor sim, escritor é que são elas!) vira um ícone, sua inserção massiva na mídia, as lendas ou o falatório em torno dele inchando também. Questão de quantidade. Mensuração. O tamanho do País: gigante pela própria natureza e, perdido nela, adormecido em berço nada esplêndido porém convicto que uma editora é uma empresa com fins comerciais e, a julgar pela maioria dos títulos, somente comercial.

Podia ser diferente? Podia. Mas isso exige muita coisa. Exige que editores não cedam totalmente a certas pressões, tanto econômicas quanto políticas (aqui o sentido é amplo). Mas cedem. As econômicas eu compreendo. As políticas, não. Nesta área dá para escolher, ser isento, não se vender. Dirão: mas as políticas também determinam o fluxo do caixa. É verdade. Mas... Bem, então paremos de uma vez por todas com a hipocrisia de falar em arte quando, na maioria das vezes, estamos, editores, contratando o nome da hora e não, nunca, o nome que atende antes por Literatura do que pelo próprio nome com que assina seus livros.

Puxa, chamem os bons para fazer o serviço sujo. Os bons, mesmo pouco conhecidos. Sei: bandido traz mais frisson para uma cidade que mocinho. Mocinho é complicado, cheio de éticas, um estorvo. E aí pegam cantores para torná-los escritores. E tornam. Pegam atrizes para torná-las escritoras. Pegam editores para torná-los escritores. E professores, obviamente. Pegam o que vier pela frente, até a escritores mesmo. Até a escritores da gema... O que é uma armadilha. Numa coleção encontramos um escritor de primeira com gente que já foi de tudo na vida e acabou dando tanta bandeira que virou “escritor” também. E a maciça maioria dos mal-preparados leitores nacionais não separa alho de bugalho.
Ou separa. Fica com o bugalho.
Além disso, um grande número de escritores autênticos, que matam a tia para escrever um bom livro, que arriscam a pele para escrever um bom livro, estes, uma maioria deles, por não estar no trio elétrico (sentem vergonha do carnaval), ficam fazendo o papel de tradutores, copidesques, revisores, e de vez em quando beliscam um prêmio, uma vez que sua qualidade uma hora acaba vindo à tona, nem que seja para o reconhecimento-relâmpago de uma comissão julgadora cuja eleição não garante a posse de nenhum cargo, nenhuma oferta editorial séria, só os dez salários mínimos do prêmio. Desde que o escritor, evidentemente, pague a passagem e a estadia do próprio bolso para ir lá receber as honrarias. Descontados os impostos e as despesas, ainda sobra a mensalidade da escola do filho. Não é pouco. (18/07/2008)

quarta-feira, 16 de julho de 2008

CAVALOS AFOGADOS NO MAMPITUBA

No Rio Grande do Sul, muitas são as vozes literárias significativas condenadas ao silêncio diante do leitor brasileiro. E não só no Rio Grande do Sul...


Outro dia, de madrugada, assisti a um programa de tevê sobre um grande escritor. Falavam, apresentador e convidados, acerca de um autor que no Mato Grosso do Sul fazia pelas letras do País o mesmo que o mineiro Guimarães Rosa fez, instalado no Itamarati, no Rio de Janeiro. Rosa, como se sabe, é um dos três ou quatro mais importantes escritores de nossa literatura. O mato-grossense, pauta do programa que me impressionou (mais, consternaria), chama-se Ricardo Guilherme Dicke. Publicou e foi premiado, com alguma repercussão, no final dos anos 1960, 1970. Depois atravessou a década de 80 como uma sombra ou menos. No início dos anos 90, tentaram ressuscitá-lo, sobretudo sob as mãos zelosas de José Paulo Paes. O seu romance Caieira (Estação Liberdade, 1982) ganhava página inteira de um dos mais importantes jornais brasileiros. E sua obra já fora objeto de duas resenhas na mais importante revista semanal brasileira (mas isso em 1968).
Era uma guerra perdida. Diante da tevê, na madrugada, eu revia a trajetória de um homem que fez 70 anos a 16 de outubro de 2006 (e o programa apoiava-se nesse efeméride), que publicou livros fortíssimos e singulares no plano lingüístico, na contundência da trama, no realismo tocante das personagens, e que, mesmo assim, foi e é ignorado. Deus de Caim (Bloch, 1967), Décima-segunda missa (edição do autor, 1968), Figueira-mãe (1969), Caieira (1ª edição 1971), Madona dos Páramos (1993). E O Salário dos Poetas (2000), que foi dramatizado até em Portugal. O programa, ao término, rolando sua interminável lista de créditos, apôs a seguinte informação: “O autor possui oito livros inéditos e está à espera de editoras interessadas.”


Uma Rússia com calor e mosquitos

Não há espaço, num periódico legível, para o exame necessário de tal fenômeno. Em síntese, que fique, em linhas gerais, o seguinte diagnóstico: o Brasil – azar nosso – é um país-continente; uma colcha de retalhos, sim, mas descosturada. Uma espécie de Rússia com calor, mosquitos e a mesma remota distância geográfica de um centro a outro, a gerar acesso difícil entre as “províncias”. Um caudal de culturas, sim, mas o caudal não vem à tona, e duas ou três expressões regionais predominantes (as cosmopolitas ou as folcloricamente exportáveis) conquistam o mercado e a História, esta cada vez mais de braços dados com o mercado. Usando a Rússia como exemplo, Brasil é pior ainda, pois sem unidade nacional alguma, a não ser aquela que a displicência tropical consente.
Vamos, assim, direto à circunscrição deste texto: o país dos gaúchos. Não chamado desta forma gratuitamente. É um país à parte, como o Mato Grosso da Cuiabá de Ricardo Guilherme Dicke, como a Amazônia de Milton Hatoum (de quem não fogem) e Vicente Franz Cecim (de quem fogem), condenado talvez pela falta de fôlego de uma nação tão prodigiosa territorialmente quanto em talentos – e que não sabe dar conta disso de forma digna. Esquecer é mais fácil do que se supõe.
Não basta escrever. Publicar é outro desafio tão ou mais difícil. Para alguns, mais difícil. Escrever depende, praticamente, só de si. O autor se impõe o ato, ou necessita, vitalmente, da ação. E ela acontece, com êxito ou sem. Mas, uma vez pronto, é preciso dar visibilidade ao livro, e não basta imprimi-lo, entregá-lo a uma editora que o tornará tão invisível quanto era quando inédito.
As melhores casas publicadoras, óbvio, estão no coração financeiro do país, São Paulo-Rio de Janeiro. Salvam-se pouquíssimas em outras capitais. Mas quase não contam. Desta forma, o autor gaúcho, municiado de seu novo original impresso, encadernado, monta seu metafórico tordilho e tenta atravessar o Mampituba, rio com 60km de extensão, em cujo leito inferior, na margem oposta, acena o estado de Santa Catarina. É preciso atravessar o rio, e então o estado vizinho, depois o Paraná, e chegar em São Paulo, onde...
As águas não são rasas. E não é uma metáfora. Se fosse, ainda assim a travessia é longa e, mais que geográfica, temporal, histórica, cultural. Não termina nunca. Não há cavalo nem cavaleiro que agüente.
Tânia

O leitor já se deparou com o nome de Tânia Jamardo Faillace? Pois devia. Ela andou publicando, e muito, nos anos 1970 e início dos 80. Há vinte anos as portas estão fechadas. Por indicação de Erico Verissimo, começou na Globo, à época com sede em Porto Alegre: Fuga, 1964, e Adão e Eva, 1965. Pela Editora Movimento, em 71, saiu sua obra-prima: O 35º ano de Inês. Furaram o bloqueio do eixo SP-RJ (naquele tempo gaúcho só editava no RS, com raríssimas exceções) os contos de Tradição, família e outras histórias (Ática, 1978) e o romance Mario-Vera / Brasil 1962-1964 (Marco Zero, 1983; Círculo do Livro, 1986). Participou de antologias que em plena ditadura reuniam os escritores malditos, aqueles que incomodavam mesmo, como João Antônio, Ignácio de Loyola Brandão, Caio Fernando Abreu (um gaúcho que atravessou o Mampituba já no segundo livro – explicação: com 19 anos, Caio foi trabalhar em São Paulo, na redação de uma grande revista) etc. Vinte anos depois, meados dos anos 90, Tânia foi tema do Fantástico, programa dominical da Rede Globo, vejam só, e de várias notícias da mídia televisiva, radiofônica e jornalística (com capa em suplementos culturais). Terminara seu maior projeto, o maior projeto da literatura brasileira. Para sermos mais exatos, o maior da literatura ocidental: o romance-rio Beco da Velha, 7.000 páginas; se dividido em volumes (o que seria editorialmente imperioso), 20 tomos de 350 páginas. Nada há que se lhe compare em fôlego narrativo na literatura universal em qualquer tempo. Uma espécie de folhetim em alto nível contando cerca de 30 anos da história do Brasil, dos Anos 1950 ao presente da protagonista (situado em 1975), Maria Geneci, uma mulher de extração social simples, mas que... age!
A experiência de jornalista e militante da autora, somada ao rigor narrativo, à sensibilidade para os tipos em sua psicologia individual e também em sua circunstância social, e o rigor com que revive (ampla pesquisa, intensa vivência direta) os instantes-chaves do País em seu impacto político e, desta forma, a envolver a todos, leva Tânia a um resultado assombroso, muito acima dos grandes painéis e épicos de que se tem notícia.
Verdade: é praticamente impossível publicar tamanho catatau. Mas se a dimensão do projeto assusta, a qualidade literária estimula. (Ainda que poucos o tenham lido, bastam os livros da autora já publicados e a dúzia de nomes referenciais que não resistiu a dar uma folheada no monumento para endossarem a edição do prodígio.) O que será – não nos perguntemos acerca de Tânia, que já fez a sua parte – de todos nós, privados de tal obra, superior, sob diversos aspectos, à maioria do que tem vindo a público?
Hecker

Paulo Hecker Filho (1926-2006) escreveu cerca de 20.000 cartas. Foi um... Mário de Andrade gaúcho. Recebeu o reconhecimento (sempre mais nos bastidores do que diante da platéia) de João Gaspar Simões, grande biógrafo e crítico português, Drummond, Darcy Ribeiro, Dalton Trevisan, Rubem Fonseca. Uma vez, disseram-lhe: “És autor de autores.” E era. Pela paciência e pela intensidade com que se envolvia com os novos. Recebia diariamente muitos originais para avaliar, mesmo de autores com carreira assentada, e lia com agilidade, mas não menor atenção, anotava tudo, reescrevia, revisava, apontava (80% dos casos) falhas, insuficiências, coisas a melhorar. O remetente agradecia (apenas nos bastidores), seguia todas as instruções – tinha o livro salvo; e mandava, esquivo, o próximo texto para ser examinado. Se o resultado fosse semelhante, mexia menos, não mais agradecia, e nunca mandava outro. Cortava relações. Grandes nomes de nossa literatura chegaram a dizer-lhe: “Agradeço a boa vontade, a franqueza, mas te peço, não escreve sobre meu livro no jornal.” Como dizia o Eclesiastes...
Hecker foi também um grande poeta, além de tradutor de Rimbaud, Apollinaire, Yasunari Kawabata (Prêmio Nobel de Literatura de 1968), Maurice Leblanc, os argentinos Benito Linch e Eduardo Mallea, entre vinte outros nomes relevantes, tanto do francês, espanhol e inglês. Sua mais significativa tradução é de A Celestina, de Fernando de Rojas, contemporâneo de Cervantes e que, sem exagero, não lhe fica muito abaixo. Poeta a merecer importantes prêmios, teve livros reconhecidos por gente como Ferreira Gullar e outros insignes nomes que a civilidade nos impele a declinar. Tudo porque tal reconhecimento sempre se deu através de cartinhas entre a delicadeza e a mesquinharia, bilhetes apressados, quase numa demonstração de temor ante assumir que o crítico, severo e escandalosamente honesto, de seus livros tinha talento literário (e provável razão nos reparos que lhes fazia).
Paulo Hecker Filho publicou, desde 1949 até 2004, dois anos antes de morrer, em 55 anos de carreira literária – não é tempo mais do que suficiente para um reconhecimento em vida? – aproximadamente 30 livros, 15 de poemas. Ficou marcado como crítico, porque incomodou demais. Como poeta, alguns lhe apontaram os excessos prosaicos, provavelmente porque incomodados com a figura que não se deixava levar pelo carreirismo e, na estética, pelas fórmulas poéticas que confundem falta de coragem ao criar e insinceridade literária com síntese e rigor. Hecker era “derramado”, como um Whitman, um Pessoa, um Eliot são “derramados”.
Seis livros de crítica, com destaque para Um tema crucial – Aspectos do homossexualismo na literatura (Sulina, 1989), no qual expõe Proust, Gertrude Stein, Guimarães Rosa, Darcy Penteado (quem lembra?) e uma vintena de autores e obras nas quais o homo-erotismo é protagonista tratado pela crítica oficial com a ponta dos dedos. Já era hora.
Com a morte de Hecker, em 2006, a poesia brasileira perdeu um poeta diferente de todos e de tudo que até então se fizera na lírica mais lírica ou menos lírica. Aos desconfiados, peço que confiram apenas dois poemas: “Os poetas menores”, do livro Vento, águia, coelho (SMC, 1991), uma peça irresistível sobre a mediocridade, e “Condições”, de Ver o mundo (Camaleoa, 1995), onde, num tom quase pessoano, não o ultrapassasse, Hecker bate os pregos em si mesmo, numa desconcertante toada em prosa poética: "sou judeu, sou negro, sou louco, sou puto". Respondam, os que encontrarem tão inestimáveis e raras peças: não se tratam de dois dos mais contundentes poemas já escritos em língua portuguesa?
Podem verificar com calma e responder sem medo. Hecker está morto e nunca saberá disso.
Santos de casa fazendo milagres... em casa!

De fato, dois nomes emblemáticos podem acontecer em qualquer região, como dois fenômenos caídos do céu, dois acidentes. Mas o que dizer de Luiz Antônio de Assis Brasil, que chegou a beliscar, com A margem imóvel do rio (L&PM, 2004), o Prêmio Portugal Telecom de 2005? Assis Brasil, segundo Wilson Martins, é um dos maiores romancistas vivos do Brasil. Vende, no RS, cerca de 10.000 exemplares, em média, de seus aproximadamente 15 romances com ambientação histórica sul-riograndense. Alguns, como Videiras de cristal, levados ao cinema e já em 6ª edição. Mas seu público e sua crítica mais dedicados residem aí, onde ele reside. O mesmo se dá com Sergio Faraco (A Dama do Bar Nevada, Majestic Hotel, Dançar tango em Porto Alegre, todos da L&PM), um contista de primeira grandeza, no nível de um Rubem Fonseca dos bons tempos, de um Dalton Trevisan, de um Sérgio Sant’Anna. Clássico vivo. Visto com alguma reserva, velada, por ser “regionalista”, com temas e linguagem rurais em boa parte de sua pequena e meticulosa produção. Leram-no tão mal, e apressadamente, que mal sabem que metade de sua contística é urbana.
A lista não é pequena. Tabajara Ruas é outro exemplo dessa travessia difícil. Seu Os varões assinalados, publicado 35 anos após a primeira parte de O tempo e o vento, de Erico Verissimo, apresenta notáveis progressos à literatura herdada de um mestre. A novela Perseguição e cerco a Juvêncio Gutierrez é um García Márquez sem maneirismos, cinematográfico, e mais ágil.
Paremos por aqui, embora a lista prossiga. Nos anos 90, surgiram diversos nomes. A lição aprendida com as gerações precedentes (era preciso fazer alguma coisa, atravessar o Mampituba, não mais a cavalo, mas em jatos, ou através da rede mundial de computadores), fê-los subir o país, no mínimo até o centro, adotar uma nova postura de relações pessoais, fatalmente – e lamentavelmente – decisiva para a difusão de uma arte que não circula com facilidade, por mais importância que possua.
Cantada, nesses subtrópicos, a aldeia nem chega a ser brasileira. Que dirá universal.
Nota: Ricardo Guilherme Dicke morreu na quinta-feira passada, dia 9 de julho, em Cuiabá, e foi enterrado na cidade onde sempre viveu, no dia 10. A causa da morte, segundo a assessoria de imprensa do Hospital São Matheus, em Cuiabá, onde o escritor estava internado desde o dia 5, foi "insuficiência respiratória aguda após parada cardiorrespiratória revertida em hipertensão arterial severa". Pelo menos no Mato Grosso seus livros, neste dias, devem receber bastante procura e esgotarem. Tarde demais. (16/07/2008)

sábado, 12 de julho de 2008

INCORRESPONDÊNCIAS – A AMEAÇA

Meu post de sábado, o primeiro, “Incorrespondências”, gerou um efeito forte mas meio óbvio.

Todo mundo pulou os dois parágrafos iniciais. O primeiro, a opor um único voluminho do certeiro Flaubert a uma biblioteca inteira escrita pelo espumante Coelho Neto, espécie de repolho verbal das letras. E avisando, ironia e tortura anunciada: lesse o francês impecável, teria de ler o brasileiro opulento como um barril em páginas. Ninguém mencionou a danação de conviver com três horas de paraíso e pagar com anos de leitura, esta sim, da mais pesada. Coelho fornicou nas letras graúdas como um coelho: mais de cem ficções a esmo. A vida não é justa, sabemos. Não seria no mundo da leitura (não só as obrigatórias) que haveria equilíbrio. Para cada cem porcarias, uma maravilha. Aritmética pura. Percentual sensato.

O segundo parágrafo, que ninguém comentou, era uma variante do primeiro. Escolha, se for capaz. Pode ler esse prodígio que são as quinze páginas de “A Construção”, conto de Kafka, mas para tanto é preciso estar socialmente habilitado. Isso significa que terá de passar pela prova de fogo de aturar (suplício dos suplícios) os diários completos de Josué Montello, 5.000 páginas – ou 4.000, que diferença faz? O cara não pode deixar de travar contato com Kafka, que lhe muda a vida, e então passa um ano e alguns meses ligando o cérebro no automático para atravessar os quilômetros de páginas impressas do maçante, desinteressante e infatigável Montello. Duro preço para, afinal, o que vale tanto. Talvez por Montello ainda estar quentinho por aí, a turma ficou na moita. Silêncio de novo.

Mas o terceiro parágrafo (há um quarto e um quinto, porém esses passaram pela garganta sensível dos leitores), ah, o terceiro parágrafo! Alguns comentários não são postados no blog não porque haja um moderador, não. O único moderador existente são os leitores, e muitos deles preferiram me escrever e-mails ao invés de expor seu horror ao terceiro parágrafo em público.

O que há de tão terrível no terceiro parágrafo? Voltem dois textos atrás e releiam. Eu tento (em vão, claro) descrever a exuberância de Scarlett Johansson, imagem feminina perturbadora neste começo de século. De Natasha Kinski, valendo o mesmo para vinte anos atrás. E desenho um ícone que oscilasse, no cabelo, entre Júlia Roberts ou Michelle Pfeiffer, e o corpo fornido e sinuoso – arquitetônico – de Jennifer Lopez. Pra quê! Reduzi a estereótipos o conceito de beleza, é o que muitos disseram. Espera aí, pessoal: essas moças citadas são um escândalo, não menos. Sejamos concretos: elas parecem irreais e... são reais! Dá para resistir? Eu não. E como não, e são inalcançáveis, resta-me então a melancolia de nem chegar perto, e ainda não conhecer as que, sem tal popularidade aqui nesta floresta equatorial disfarçada de concreto, exibem formas semelhantes. Isso para ficarmos só no plano da descrição.

Mas meu parágrafo ia além. Falava que o problema era a equação “tudo isso” e a capacidade quase miraculosa de sustentar uma conversa capaz de transcendências debaixo das estrelas, ou do teto de um quarto, o resto da noite. Estereótipo de novo! BPB = Bela Porém Burra. Não era um estereótipo. Não é. Burras são a maioria. Inclusive as menos dotadas pela natureza. Burros somos todos nós, e sem nem a beleza para nos justificar ou distrair.

Meu pobre parágrafo – acusado de fealdade moral – colocava, como nos ignorados parágrafos iniciais (só porque eles falavam em literatura, e isso é politicamente correto, só que mais complicado), as incorrespondentes naturezas entre matéria e espírito. Flaubert é espírito; Coelho Neto é matéria (cem volumes! Bota matéria nisso...). Kafka é espírito; Josué Montello é matéria (cita todos os citáveis, gerando mais um índice onomástico do que nos dando um pingo de arte ou motivo para reflexão). E as belas – não essas, exatamente: quem me garante que Natasha, por exemplo, filha do alucinado Klaus, não seja capaz de solapar minha literatura de décadas com o improviso de um único poema seu, poema de ocasião? Júlia parece ter talento para educadora. Michelle é um tanto conservadora, mas não burra. Jennifer é um doce, generosa (não, please, esqueçam suas formas): não há cast do qual ela participe que não a elogie como exemplo de colega. O diabo é que criei uma hipótese, forçada naturalmente. Para funcionar como equação, triste reflexo da encruzilhada da vida. Belas e, no entanto, “incomunicáveis”, digamos assim.

E, pior, contrapus a tais fenômenos as habitualmente discretas na aparência, passando desapercebidas por todos os homens do mundo. E capazes, em contrapartida, das mais notáveis habilidades intelectuais, sensoriais, ágeis com a língua não onde um maldoso como eu imaginaria, mas num microfone, num diálogo em alto nível provocado por um sarau. E concluía, o infeliz que sou (“vê se cresce, rapaz!”), que o homem passa a vida tentando dezenas de deusas, como as citadas no desenho estereotipado, e quando já está a pouco menos de dez anos de bater as botas, renuncia a toda a alegria e, aposentado, dedica-se à boa conversa e à ótima convivência com mulheres cuja beleza não salta aos olhos mas, sim, existe. O diabo é que chamamos ao que elas transmitem de beleza mas podíamos chamar de muitas outras coisas, podíamos utilizarmo-nos de dez, vinte palavras diferentes.

Todas elas respeitáveis, é verdade. (13/07/2008)

BREVE CAPÍTULO DE AUTO-UFANISMO

Dia 3 de julho postei neste blog um texto, “A Palavra Desenha o Mundo”, tentativa (por isso talvez excessiva para um blog) de apreender o fluxo verbal através do qual busco capturar algum ritmo do mundo e, se menos – provavelmente menos –, de mim mesmo, emergindo içado por frases que funcionam como forças de uma energia incalculável.

Dia 12, agora, nove dias após (a internet não nos brutaliza ao ponto de matar o nosso tempo pessoal, tanto nossas pressas quanto nossas demoras), o escritor W. J. Solha, uma das mais fortes referências do que de mais criativo e rigoroso se realiza na literatura contemporânea no Brasil, lá da Paraíba, deixa um comentário ao texto, comentário que não resisto em destacar aqui. Não por vaidade (seria vaidade afirmar que não sou vaidoso; como posso afirmar semelhante coisa? Mas, creiam, acredito que não seja), não por vaidade, repito, mas por alívio. Temi pela ambição do texto. E a ambição, a julgar pela reação do exigente e diferenciado Solha, foi justamente meu maior trunfo.

Exagero? Se exagero, então Solha exagera também. Prefiro acreditar nele – sobretudo porque tenho acredito através de sua obra, que leio desde a década de 80. Leiam-no comigo:

Paulo,

acabo de ler "A Palavra Desenha o Mundo" e o que posso lhe dizer é que me parece um maravilhoso exemplo de stream of consciousness que poderia se estender num romance de seiscentas páginas sob uma epígrafe tirada de Enzo Paci: "Nunca estamos completamente acordados, assim como não estamos jamais num sono completo", ao que ele acrescenta: "Durante o sono, a linguagem fala pelos sonhos. No estado de vigília, a linguagem fala com palavras de uma cultura" etc. Você parece ter encontrado um corredor (daqueles de Kubrick em "O Iluminado") depois daquele seu notável poema "Despertando" (de "Bodas de Osso"): "Mal amanhece o dia/ largo a minha fênix/ volto à vaca-fria". A vaca-fria, aqui, é substituída por um jorro de logos spermatikós. Sua mente, liberada pelo surto criativo, funciona como esses filmes de animação em que o sujeito traça uma porta na parede da prisão e sai por ela, sem limitações, mais, de espécie alguma. Deu-me tal prazer sua leitura, companheiro, que fiquei, aqui, dizendo "quero mais".


(W. J. Solha, autor de "História Universal da Angústia",
João Pessoa, PB.)


Continuarei, continuarei – o quê? Um comentário (um texto, melhor dizendo) desse nível emudece, momentaneamente, o sempre possível devir a ser expresso. E, súbito, me paralisa e me empurra na direção de receber o abraço, o confronto, o complemento e o crescimento de uma recepção que não apenas encontra-se cara a cara com o que escrevi. Antes o transforma, e para melhor. (12/07/2008)

sexta-feira, 11 de julho de 2008

INCORRESPONDÊNCIAS

Um romance de Flaubert, “Bouvard e Pécuchet”, e a ficção completa de Coelho Neto (atenção: publicou cerca de cem livros! Não encontrou estilo, voz, entre tanto tema e tanta tentativa de forma). Vêm casados. Leu o primeiro, tem de ler todas as milhares de páginas do outro. Você não não tem escolha.

Um conto de Kafka, “A Construção”, e os diários completos de Josué Montello, 5.000 páginas. Exponha-se ao estupefaciente espetáculo da armadilha do theco, entregando sua alma ao demônio da tortura reveladora. Só que aí deverá expor-se à monotonia do redundante e da gordura verbal e da retórica. Enfim, do dispensável (este mundo exige-nos públicos, formalmente políticos, e é construído pelo óleo de rícino das convivências obrigatórias) de um registro inacabável, anotações calculadas para mostrar aos vizinhos: “olha como sou importante e conheço gente importante.” Você não pode escolher. Ou os dois, ou nenhum. E Kafka é imperdível. E Montello é um porre. Grafômano como Coelho Neto. O estigma foi lançado na origem do tempo: vocês vê-se obrigado a ler os dois. Um, por questão de não resistir à literatura com L maiúscula. Outro, por sobrevivência. Pediram-lhe... Não, não – seja ético.

Cinco mulheres belíssimas, o rosto a sugerir a lírica da geração de ouro da poesia espanhola do início do século XX – o rosto, só o rosto! –, lábios como polpas frutuosas de uma Scarlett Johansson (ou, para leitores que tinham sua musa nos anos 1980, os mesmos inacreditáveis lábios e os olhos vítreos – misto da pureza de uma Cecília Meireles com a depravação de Capitolina – de Natasha Kinski), nos cabelos a frondosa cachoeira de Júlia Roberts ou a floração ensolarada de Michelle Pfeiffer; no corpo, espaço longilíneo a exigir todo o fôlego de atleta e um coração liberado após exames no mais conceituado cardiologista do País, o desenho afrontoso do biótipo de Jennifer Lopez: curvas quase típicas de Niemeyer. Tal soma me leva ao vórtice da mais febril perturbação, meu espírito trêmulo tomado pela carne enfim, mas – nada inteligentes, maldição!, nada curiosas, só podia!, mentes que bocejam, neurônios que se afogam na profundidade de palavras de mais de quatro sílabas, indelicadas com nossas barriguinhas de cerveja porque exigem que malhemos como elas e não nos perdoam trocarmos a academia por um Shakespeare. Escolha, meu amigo, meu inimigo: ou um desses ícones ou... A feinha de cabelo ralo colado na testa porejada de suor, uma tábua atrás, abaulada na altura do umbigo, o nariz grande, a boca um risco, os olhos levemente inexpressivos com ou sem óculos, porém, que agilidade nos argumentos, que febre na fala, que sensatez ao escutar, que delicadeza ao conduzir nossas diferenças, que memória, que arquivo de informações sem-fim. E daí?

Cruel encruzilhada encontra-se o homem, já que a mulher tem, historicamente – até as bonitinhas! –, ficado, sem problema algum, com o segundo tipo, escolhendo homem por encantamentos abstratos mas 100% respeitáveis, deixando a beleza física em segundo plano e a riqueza de espírito, caráter, valores morais etc. colocados na frente de tudo.

O homem – o homem, em verdade, experimenta 30 delas, as do primeiro caso. Casa com a 31ª. Do primeiro caso. Agüenta cinco anos, e se separa. Fica à deriva durante mais uma década, insistindo, já sem esperança, mas insistindo, sempre, com as do primeiro caso. Até que apareçam as primeiras doenças e ele então se atire aos pés da com o cabelo colado na testa, aquela para a qual os homens nunca olharam e cada vez olham menos. A idade chegou e o futuro agora só promete, como auge, o descanso ou a boa conversa. Não há mais tempo para aventuras. (12/07/2008)

quinta-feira, 10 de julho de 2008

ONDE ESTÁ O BLOGUEIRO QUE VIVIA AQUI?

Procura-se um escritor que faz as vezes de blogueiro e um blogueiro que faz as vezes de escritor. Sabe-se que semana passada, em Rio Pardo, falou para cerca de quinhentos educadores sobre o ato de escrever, de ler, e sobre o que a palavra é capaz de fazer por cada um que arriscar alto em suas fichas, nas dela, nas da palavra. A escrita.Depois dela vem todas as outras: as escutadas, as ditas, as pensadas, as sonhadas, as caladas, as explodidas, as engolidas e que não descem, as engolidas e que descem rápido.

Depois disso tudo vem a palavra escrita de novo. E de novo a palavra escutada e a dita e então a sussurrada como uma brisa.

Onde está o blogueiro que vivia aqui? Sete dias de silêncio. Blog propõe-se diário, é a toda hora. Não quer saber de uma semana de mudez. E os acessos se multiplicando. Gente que o relê e novos leitores entrando na nova casa enquanto o autor, viajando, divulga o blog e o site que não alimenta como deveria? É possível. Tudo é possível depois desse cenário de desolação. Desolação?! Quatrocentos acessos em quatro, cinco dias, e o cara fala em desolação? Pois é: desolado fica o leitor, o internauta, o blogmaníaco. Ler um bom blog é sinal de buscar de informação, sensibilização diante do fenômeno que é a expressão verbal tateando no escuro – ou no claro, porque sempre se está tateando. Mas um blog que o sujeito larga à deriva por sete dias? Só blogmaníacos. Ou não.

Ou gente que recém o descobriu. Porque ele esteve dando oficinas literárias e traduzindo textos e viajando. Porque foi numa escola onde acontecia uma feira literária e – surpresa! – deu mais autógrafos que em sua sessão mais concorrida em 15 anos de Feira do Livro de Porto Alegre. Como o normal é o autor ser bem-recebido mas não se achar um único de seus livros na feirinha (porque o distribuidor não os conseguiu junto à editora, que fica em outro estado, e patatipatatá...), essa sessão de autógrafos que demora quase um turno inteiro no qual devia haver outra palestra deixa-o assombrado. E o blog? Pois é, está lá, à espera.

Porém. Logo outra viagem. Mais escolas. E, súbito, sim, súbito, ele encontra gente que o leu, e que leu também Machado de Assis. Aliás, leu Machado de Assis e, no embalo, o leu a reboque. Tanto faz. Leu. Perguntou. Aplaudiu. Riu. Bocejou. Exaustão após quatro palestras e bate-papos num dia corrido, tensão, comoção e risos entre pré-leitores e olhares oblíquos em meio a leitores adolescentes. E olhares firmes em meio a olhares adultos. E olhares feito mais que de olhos, de um imaginário com as lentes grossas, de longo alcance, da palavra impressa. Mas e o blog?

Terminam as viagens e o blogueiro chega em casa. Sem laptop, sem saber a quantas anda o blog e, vai ver, assusta-se: tantos acessos! Precisa fazer alguma coisa. Mas amanhã tem outra viagem. O Brasil é grande, extenso. E pequeno: o sujeito tem de fazer mil excursões para divulgar títulos que não saíram na televisão e têm cinco anos de exposição nas livrarias. Ao contrário, o blog parece andar por si mesmo. Os acessos provam que as visitas não cessam, que é lido. Quem sabe se, para variar (mas para variar mesmo), ele escreva um post em que flagre o abandono onde devia haver presença e a presença plena onde houve abandono.

O mundo é estranho. Já é um começo. (10/07/2008)