Acho que na outra encarnação eu fui Joseph K., o personagem que Kafka põe em cena no romance O Processo e que é tem de se explicar, se justificar, provar a inocência – muitas, incontáveis e renovadas inocências – acerca de crimes que ele nem sequer conceberia, que dirá ser capaz de cometê-los.
Na infância me perguntavam por alguém, geralmente um primo, um colega de escola, “sabes onde ele está?”, e eu já erguia a sobrancelha. Estavam exatamente querendo dizer o quê? Que eu sabia o paradeiro do sujeito e omitia a informação? Que mais cedo ou mais tarde eu cederia à pressão deflagrada pela simples pergunta e iria lá, bancar o dedo-duro? Que eu encolheria os ombros e os deixaria procurá-lo até encontrá-lo e crucificarem o coitado?
Crucificar, sim, que ninguém andava atrás de ninguém para aplaudir, parabenizar, abraçar ao menos.
Enganavam-se, mas nem por isso eu sofria menos.
Via o mundo (e o vejo ainda não muito diferente) num jogo frio e infindável de buscas por soluções das quais nos responsabilizam – afinal, diz o mundo, temos um papel social a cumprir, temos responsabilidades, e como! – ou um sistema que disfarça a perversidade de nos cobrar o papel que devemos interpretar (sempre, sempre, sempre irrepreensivelmente).
Ora, não sou um ator. Claro, sou um ator social, todo somos, obrigatoriamente. Mas, cá pra nós, atuar assim, de primeira, sem ensaio, e diante de estranhos, de gente que não quer espetáculo mas eficiência de máquina – e sem o refresco da atmosfera convidativa de um teatro –, fica difícil, para não dizer impossível.
Conheço gente (o emblema lustroso da valentia encobrindo a truculência) que bate de frente com instituições, com superiores hierárquicos no ambiente de trabalho, que expele sua fúria fácil no trânsito frente a oponentes de igual força – e grosseria. Espanto-me com tal capacidade. A existência não lhes pesa. Vivem prontos a, passada a tempestade, sentarem-se na sala de casa e espicharem as pernas na mesinha de centro.
Ergo-me da cama e o telefone toca antes da primeira escovada nos dentes. O coração dispara. Tem pai jogando filho pela janela. Tem público tão bizarro que perde a compostura (alguém ainda sabe o que é isso?) e veste a fantasia de justiceiro, gritando palavras nas quais apenas existe revide. Vai ver como é a casa deles.
Arrasto-me ao telefone, os cabelos em desalinho, e tento explicar a uma pobre vítima do subemprego de televendas que o produto não me interessa. Não parece que falo com uma pessoa, mas com uma metralhadora – só que monótona – de repetição; programada, não para matar, mas para aborrecer. Cansados os dois (ela terá que provar ter mais energia que eu até o final de seu expediente, ligando para ao menos 70 pessoas, segundo sua meta a ser atingida), o silêncio volta a reinar. Entretanto, contrariando sua natureza de silêncio, não sabe oferecer a paz e nem mesmo o alívio.
Ligo o computador. Despencam na caixa de correio dezenas de e-mails. Os tons são sempre três. Tonitroantes se oferecem algo que julgam novidade. Mornos se os autores são gente com quem já estamos desenvolvendo algum projeto que avança, e quanto mais avança mais reagem como se pouco avançasse. O mundo tem pressa e não olhe aonde pisa. E, terceiro tom, desaforados mesmo, de uma agressividade assustadora, a nos deixar desolados quando o assunto refere-se a algum atraso ou simplesmente a uma pequena atenção que não lhes dispensamos quando eles – grandes atores sociais – esperavam mais por ela do que tudo.
Não nos perdoam a fobia pela sala de visitas.
A sala de visitas – e a de reuniões – são o espaço da busca pela visibilidade a qualquer custo (o maior sonho do fóbico social, o mais célebre dos fóbicos, é ser o homem invisível) e da cobrança de por que essa visibilidade do que fazemos (não do que somos; que importa o que somos?) ainda não se deu. É preciso, então, passar urgente à sala de reuniões e preparar uma abordagem mais enérgica para amanhã de manhã. Pegar indefeso o cliente, o parente, o ator zonzo ainda do seu sono imperdoável.
O mundo não dorme. Quando dorme, revira-se a noite inteira. Tem fobias também, mas prefere chamá-las de pesadelo, esse subproduto de uma privada, o inconsciente.
Sei que não basta puxar a descarga. Mas sinto o pesado cheiro que me segue sem descanso, e me sinto mal na sala onde eu e os visitantes nos apertamos as mãos.
Que não lavaremos. (03/05/2008)
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3 comentários:
Meu caro Paulo!
Entrei em teu blog para comentar o texto de abril"Quem Escuta?",que nos remete a Nietzsche, a Kafka num desconforto, talvez necessá-rio. O narrador vai sufocando o leitor, pondo-o na parede, angustiando com sua própria ânsia,sacundindo na sua constante busca do ser-autêntico, ser verdadeiro, na identibilidade da verdade. Durante o texto todo, assim como o é na vida, a verdade parece inacessível:
"...A grande diferença reside no que se diz... Aí do mundo se fôssemos sinceros. ... Pois sou. Miseravelmente sou... Que se disfarça se sente tão mal que acaba disfarçando de um modo, digamos amador."(P. Bentancur) A grande metáfora dele(narrador) com o mundo está na incapacidade de se
relacionar ou de se doar. Ser escutado. Fora escutado, por um bebê, inocente. Se é que foi. Não sabe a quem vale a pena se entre-
gar. Se é que vale. Segue transparente:
"Mas é impossível continuar olhando os dias, espiando pela janela, ou através de um grupo de pessoas, outra pessoa ali destacada pelo silêncio e pela distância acusadora, ou através de memórias já opacas soterrando fatos QUE BRILHAM COMO O SANGUE BRILHA. ..."(P.Bentancur)
Com essa linguagem e figuras cruas se acusa, se convoca o leitor para agarrar-se à vida junto ou diante da palavra, mesmo que se lhes sangre os dedos _
ausente da futilidade, da hipocrisia dita necessária, simbolicamente humana.
Eis que me surpreende com "Fobias", é Kafka: a incomunicabilidade, fugas... viés atroz, da caverna; mas extremamente presente, moderno.
Maira B. Engers - Professora, escritora, poetisa, ativista cultural
acho que eu já te disse isso aquele dia no café, mas repito: à marda a manada! besito.
ops! é mErda e não mArda. lapsos de ação.
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