sábado, 2 de maio de 2009

A REINVENÇÃO DA LITERATURA


Autores brasileiros contemporâneos provam a vocação
que a literatura possui para jamais ser estática,
mesmo quando busca o reconhecimento





O escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984) declarou certa vez que quando se sentava para escrever era como se a literatura não existisse e ele tivesse de reinventá-la. Estávamos em época de ditadura militar, e a saída para o discurso possível era o realismo mágico, que pela própria natureza – sem ser, necessariamente, gigante – gerou alguns gigantes: o próprio Cortázar, García Márquez, Juan Rulfo, Carlos Fuentes etc. No Brasil de então brotava o primeiro – e melhor – Moacyr Scliar (o dos contos de Carnaval dos animais e das novelas A Guerra no Bonfim, O exército de um homem só e Os deuses de Raquel) e um clássico pouco falado atualmente, José J. Veiga (de Goiás, mas bem editado e aceito no centro do País).
Era uma reação estética saudável a uma situação política doentia. Mas e hoje? Hoje, a pressão é outra. Deixou de ser especificamente opressiva no sentido de que deixou de ser política. Mas passou a ser multiplicada opressivamente porque é de ordem econômica e gerada pelos estragos que a sociedade de consumo causa, tendo atingido, pelo visto, seu apogeu.
Tenho uma filha de nove anos que, grande leitora, no entanto não escapa impune à obrigação de consumir modismos incontáveis e caríssimos, sem os quais ela estará fatalmente marginalizada dentro do grupo escolar que frequenta. Seus únicos pares. A literatura não escapou dessa armadilha, e procura – como um pai procura na equação filha = mundo – achar uma linguagem que dialogue com a dança referencial de um real que encontre legitimidade na fantasia que escraviza, não na fantasia que liberte.

Saturado de tanto emplastro para escamotear as dores seculares do mundo (emplastros que agora nascem do enterro sistemático do que a tradição criou como ponte para atravessarmos com um mínimo de segurança o nosso próprio tempo), o escritor ou revida – com uma bem-fornida mimese – essa profusão de referenciais cuja hegemonia dura um ano e cuja eficácia e profundidade não duram mais que os primeiros parágrafos, ou a pega no contrapé através de um movimento com o qual ela não contava: o da linguagem.

No primeiro caso, o da mimese, encontramos na obra do mineiro radicado em São Paulo Luiz Ruffato a resposta renovadora. O que poderia ser anacrônico ou assopro cansativo sobre as cinzas da História de fundo social emana brasa viva a revivificar sobrevivência, violência, migração para a grande cidade do centro do País, o ruidoso e caótico movimento de descendentes de italianos saídos de uma Cataguazes de portas fechadas para uma São Paulo que os joga direto na garoa mais noturna e fria. Grupos que há 30 anos eram chamados de lumpemproletariado, de rebotalhos da classe média baixa, de classe trabalhadora em áreas onde a modernização recém chegava para roubar empregos, não para muni-los de novas e eficientes ferramentas. Famílias dizimadas, luta e luto, e impunes ficam apenas o que se engessam num território onde o passado, mesmo enferrujado, ainda dá as cartas, bocejando.

Em Ruffato, você confere tudo isso na sua série de cinco romances, Inferno provisório, que abriu com Mamma, son tanto felice (176 pág., R$ 27,00), continuou com O mundo inimigo (208 págs., R$ 27,00), depois com Vista parcial da noite (160 págs, R$ 31,00) e da qual saiu não faz muito O Livro das impossibilidades (160 páginas, R$ 31,00), todos editados pela Record. Trata-se de meio século de transposição de um mundo vocacionado para o decomposto. O poder fraudulento, uma comunidade à deriva agarrada pelos intensos medos que alimenta, a carroça desgovernada da crônica dos fatos oficiais, carroça sobrecarregada de gente sem rumo – sem rumo herdado e sem rumo construído.

O mimetismo em Ruffato é total, sem os arranjos que se faz no mundo aí fora em busca da ilusão de que ele pressupostamente funcione. Não há truque no ficcionista. Tudo é exuberância na voragem de um caleidoscópio do precário. Narração e diálogos se misturam. As mais marcantes aventuras são as desventuras que ninguém contaria, por horror ou vergonha. As figuras que Ruffato faz reencarnar, reencarnam mesmo, e tem o peso de fantasmas de carne e osso. Inferno provisório é um ciclo romanesco, e só essa arquitetura ambiciosa (paradoxalmente construída com resíduos: de memória, de descrições no limite dos gêneros, num alucinado ritmo elíptico) já garante para o escritor a singularidade própria dos que, mesmo olhando para trás, reinventam a literatura.


A literatura como personagem

Não é de hoje que o artista ou a obra são convocados a dar as caras, a emprestar suas vozes à personagem principal. A atuar. A copista de Kafka, de Wilson Bueno (Planeta, 200 págs., R$ 35,00) faz de Felice Bauer, noiva de Franz Kafka (1883-1924), a copista que recebe do grande escritor textos para transcrever. Textos que nunca chegarão às mãos de Max Brod, o amigo que o traiu quanto à vontade do escritor, no leito de morte, de que sua obra fosse queimada. Bueno cria uma “recriação” de ambiente e de papéis suspeitos. A fidelidade de Felice, paradoxalmente, destrói obras de que até então nunca ouvíramos falar, como um bestiário (tipicamente kafkiano: o inseto em Gregor Samsa, o tatu em “A construção”, o abutre afogado no sangue da própria vítima...), enquanto nos revela, no livro que Bueno organizada, intercalando trechos cronologicamente ascendentes dos diários da copista com narrativas que incorporam na trama, no estilo, nas referências, na ótica diagonal sobre o mundo opressivo, o universo ficcional de Kafka, obras que estariam para sempre perdidas, não houvesse sido escrito este livro. Todos os textos, menos as cartas, ela queimou. Não o traiu. Mas traiu-se. Irônica comparação a Brod, que traiu descaradamente, e legou o bem que nos legou. Somos o abutre?

Alexandre Plosk, em As confissões do homem invisível (Bertrand Brasil, 392 págs., R$ 49,00), convoca os modelos de O Homem Invisível, de H. G. Wells, O Horla, de Guy de Maupassant (L&PM Editores, esgotado), O Homem de Areia, de E T. A Hoffmann (esgotado), e traz para a contemporaneidade carioca um modelo aterrador e uma brecha metafísica permanentemente aberta: a da diluição do eu.

É com tal ambição de olhar que a literatura permite e, mais, pressiona os escritores a que achem novos modelos, atalhos, arquiteturas. Não os deixará em paz nunca, como não deixou a um outro argentino, Jorge Luis Borges (1899-1986), que passou a vida toda anunciando-se mais como leitor que como escritor, e que inventou (enquanto personagens e temas) obras, autores, estilos, literaturas, um novo cânone a partir do qual – mesmo irreal e mágico – podemos guiarmo-nos na direção garantida de uma literatura comprovadamente nova. (02/05/2009)

12 comentários:

Anônimo disse...

Prezado Bentancur:

seus textos críticos – que conheço da mídia impressa – começam aos poucos, pelo jeito, a ocupar também o espaço do blog, o oceano imenso da internet. É sempre bom trazer consistência crítica para um universo feito de pressa e informações objetivas. Você é quase uma pedra no caminho. No melhor sentido. Acho que a pauta que este texto coloca merece ser ampliada. Ela vale vários posts. Retome-a, por favor.


(João Carlos Andrade, Santo André, SP)

Anônimo disse...

Sem exagero, texto para se reler, imprimir, recortar, fazer de marcador de livro (rsrsrs). Para acompanhar quem quer fazer crítica ou servir de bússola para os que desejam escrever sempre (existe outro jeito?) criativamente.

Carla Tavares – Santa Maria, RS.

sandra ling disse...

Paulo,
teus textos não apenas acrescentam, mas nos movimentam.
também gostei muito da união com o pensamento crítico.

forte abraço, Sandra

Anônimo disse...

Bentancur,

a forma como você sintetiza toda uma visão da literatura (bastante ampla) é formidável. O crítico e o escritor – que nem sempre convivem juntos, mas que em você se dão muito bem – nos auxiliam, leitores (antes de escritores) a ler melhor. Do Ruffato eu já tinha lido "Eles eram muitos cavalos" (Boitempo, 2001). Já estava decidido a partir para esse quarteto, até agora, de romances. Mas depois do seu texto, vou antecipar a compra dos livros. Quanto ao Wilson Bueno, conheço seu experimentalismo, a cada livro um livro novo. E o que você cita é o mais fluente dele. Já o Alexandre Plosk eu não conhecia não. Vou conferir em seguida. Obrigado pelas dicas, da forma como você as apresenta, imperdíveis.

Mário Ruy Campos (Vitória, ES)

Anônimo disse...

Paulo, não concordo sobre o realismso mágico ter sido a saída literária possível diante das ditaduras. Realimos mágico é apenas outro nome para literatura fantástica, que sempre existiu, com ou sem ditaduras. Aqui no Brasil, nos anos 60 e 70, o que houve foi uma tendência pra alegorias, tanto no cinema como na literatura. Literatura fantástica e alegoria são duas coisas totalmente diferentes, você sabe. E sabe também que essas alegorias dos anos 60 e 70 hoje ou são ilegíveis ou ridículas de tão esquemáticas.

Ernani Ssó

Paulo Bentancur disse...

Ernani,

para variar, tens inteira razão. A alegoria é uma espécie de carnalização estética. Na pintura, um James Ensor, por exemplo, e suas máscaras mortuárias em seres que vão e voltam. Espectros movimentando-se no cotidiano de cada um. Só há espectros em seu mundo. Durante as ditaduras na América Latina (eu não pensava só no Brasil no meu "post"), essa necessidade impeliu vários escritores, alguns até mesmo com talento, a alugarem sua alma para uma necessidade de reação, de resistência. Perderam-se e, com eles, a literatura que poderiam ter feito. O fantástico de Borges, jamais a serviço de qualquer coisa que não fosse a arte literária por excelência, deu as costas aos ditadores, personagens quase corriqueiros de escritores (e era isso a que eu me referia, atento Ernani) de importância, como García Márquez ("O outono do patriarca" e "O general em seu labirinto"), Miguel Angel Astúrias ("O Senhor Presidente"), Augusto Roa Bastos ("Eu, o supremo"). O diabo é que nem essa pauta ditada "pela hora" rebaixou tais obras. Já no Brasil, rebaixou. Não fiz essa distinção, mas de alguma forma ela está no meu texto, uma vez que o Scliar de "O exército de um homem só" e o José J. Veiga de "Sombras de reis barbudos" são tão fantásticos (de fundo) como alegóricos (de forma), e não fizeram feio. Mas, repito, Ernani tem razão. É preciso abrir mais essa discussão, distinguir fantástico - gênero além de qualquer época - de alegoria - gênero no qual se o escritor não for um gênio, cai no panfleto, no bizarro ou no datado. 90% do que produzimos nas décadas de 70 e 80 está esquecido. Bem, isso prova o quanto a leitura de Ernani Ssó é acertada.

Anônimo disse...

É complicado generalizar. Veja o García Márquez, por exemplo. Ele começou (La Hojarasca)realismo mágico mas, por pressão de amigos politizados, tentou ser só realista, em livros como Ninguém escreve ao coronel e Veneno da madrugada. Só mais tarde voltou ao clima da primeira novela e contos, e nos deu Cem anos de solidão e O outono do patriarca. Mas voltou não por pressão política, mas por causa do seu temperamento. É justamente o caminho inverso, não? Cortázar, politizado tardiamente, incorporou temas políticos em seus relatos fantásticos, como no maravilhosos Satarsa. É outro caminho ainda. Entende minha apreocupação? Scliar e J. Veiga têm o fantástico no sangue. Por isso me parece que só autores do tipo do Ivan Ângelo, sem ligação alguma com o gênero fantástico, tentaram a sorte por pressão política, e quebraram a cara. Gosto de lembrar, nessas horas, uma frase do Cortázar, que cito de memória: a literatura deve ser a imaginação a serviço de nada. E, veja, quando Cortázar exercitou sua imaginação a serviço de nada, escreveu alguns dos contos mais profundos que a América Latina nos deu, como A casa tomada, ou A porta condenada. E antes de acertar a mão nos contos de Fora de Hora, quando estava a serviço das boas causas, errou muito nos contos de Alguém anda por aí.
Ernani Ssó

Paulo Bentancur disse...

Grande Ernani,

na minha resposta anterior, errei ao digitar uma palavra. Era "carnavalização" e comi uma sílaba, saindo "carnalização". Ninguém deve ter entendido nada, rsrsrs.

De resto, concordo contigo. Por isso praticamente não há crítica no Brasil. As generalizações nascem da pressa ou da preguiça ou, mesmo (e eis a questão), da falta de uma prática de reflexão crítica que, assim, não consegue mesmo deixar nenhuma pista pelo caminho. Desta forma, quem vai fazer algumas anotações, como eu, corre o risco de quebrar a cara ou achar alguma brecha de verdade, mas só brecha, não o ambiente todo.

Obrigado por mais um capítulo da tua lucidez.

Anônimo disse...

Puxa, Paulo, eu tinha gostado da "carnalização". Fiquei achando que tinha que ver com sacanagem - sacanagem no bom sentido, de erotização da estética. Se bem que com carnaval...

Ernani Ssó

Anônimo disse...

Paulo,

Achei interessante o texto. Como sempre o texto está ótimo, consistente, palpável, cheio de informações. O tema deve ser discutido novamente para que tenhamos mais galhos sobre o assunto.

abração, moço.

Jeff Negromonte, Porto Seguro-BA

- disse...

adorei o teu texto, acrescentou muito. riquíssimo!

Melissa disse...

Quando eu morrer, queime meu blog.