O tema parece expressão de pura vaidade, ou, pior, fútil. Falar da grafia de meu sobrenome é assunto que a poucos, pouquíssimos interessa. Mas a arte, mínima que seja, e arte, média que seja, e arte, máxima que seja, muitas vezes partiu dessas minúcias que tanto podem ser as partículas do sol como as da poeira.
No meu caso, poeira, claro. E me sinto honrado. Até mesmo ambicioso ao extremo. Poeira é pó e o pó reinou na Terra antes mesmo dos dinossauros e reinará ainda depois da extinção dos homens.
Você pega uma lista telefônica e procura pelo meu sobrenome. Vai achar o meu, o da minha irmã e o de uma prima. E nada mais. No Brasil inteiro. Bentancur é marca para poucos. Ficou. Pura sorte. E azar também, porque, mesmo depois de publicar mil vezes textos em livros e periódicos, ainda há quem (claro: o país não lê) jamais, por mais que tente, acerte o meu sobrenome. Acho que esta é a razão de eu, cansado, querer esclarecer de uma vez por todas a história dele. Acreditam que uma vez um jornal publicou um conto meu (EU mandei o original: não ia errar o próprio nome!) com a seguinte forma, BOntancur?! Nem a remotíssima hipótese de que o editor estivesse me chamando de "bom" me conformou.
Se você atravessar a fronteira e chegar ao Uruguai, e, como se não bastasse, fazer-me o favor de abrir a lista telefônica de Montevidéu, tô frito: caí na vulgaridade. Sou quase Silva, Carvalho, Martins. Bentancur, na cidade de Juan Carlos Onetti e Mario Benetti, é tão comum que até acho que vou me mudar pra lá no dia em que quiser me sentir um “homem comum / feito de carne e de memória / osso e esquecimento” (obrigado, Ferreira Gullar: sempre cito isto quando posso).
Falando em Onetti, vamos ler este cara, gente! Segundo o Cortázar, que vocês também esqueceram, o Onetti é o grande escritor latino-americano do século recém findo. Segundo o Mário Vargas Llosa, menor que o Cortázar mas que vocês dão bola só porque o cara trocou socos num cinema com o García Márquez e ainda andou a cavalo numa expedição Indiana Jones para estudar a vida de Antônio Conselheiro, segundo Llosa, repito, o Juan Carlos Onetti começou o chamado boom da literatura latino-americana - cujo auge foi em 1967, com Cem anos de solidão – na década de... 1940!
Mas eu queria era mesmo falar do que não interessa: por que Bentancur e não Bittencourt. Bem, admito: são a mesmíssima coisa. Grande revelação, não é? Tudo começou lá pelo século XIII, na França, com os Bittencourt. O sobrenome é de origem toponímica: o solar da família e o lugar de Bethancourt, na então Picardia, do qual se diz que assinava com o sobrenome o senhorio. Tanto no país de origem como em Portugal, consta que eram aliados à nobreza. Na França, o sobrenome inicial era Bethancourt (o lugar); em Portugal, generalizaram-se as formas Bettencourt e Bittencourt (esta, a mais praticada no Brasil), aparecendo às vezes algumas outras, deturpadas, como Bethencourt, Betancourt, e Betancor, etc. Saídos da França ao mesmo tempo, os Bethancourt chegaram a Portugal por vias e em épocas diferentes. A pessoa mais antiga que se conhece desta linhagem é João de Bethancourt, senhor dos lugares de Bethancourt e de Granville, na Normandia, camareiro-mor do Duque de Borgonha, que vivia por 1360. Seu filho, de mesmo nome, armou navios, e no desejo de achar novas terras lançou-se no Oceano, descobrindo as Canárias. Chega: é uma longa história, e ainda estamos no Bittencourt. A síntese, neste caso, é que Portugal cruzou os braços, lingüisticamente falando, e o sobrenome ficou incólume atravessando séculos, um oceano, e chegando ao Brasil um pouco depois de Cabral. E o Bentancur? Bem, infelizmente não foi uma criação minha. Foi a parte francesa que atravessou a fronteira a pé, ou de mula, vá se saber, e chegou na Espanha. A Espanha é fogo! Nacionalizou a grafia segundo seus ouvidos – que pareciam adivinhar a futura sonoridade de Lorca. Ben-tan-cur... Não é mais musical? Não exige mais demora na pronúncia das três sílabas? E a Espanha exportou pro Uruguai e pra Colômbia. Na Colômbia, não sei a razão, suprimiram um “n” da primeira sílaba. E houve, entre 82 e 86, até um presidente da república, Belisario Betancur. No Uruguai pululam os Bentancur, com as nove letras, melhor distribuídas, silabicamente, que todas as demais grafias. Questão de manter o equilíbrio. Pelo menos era o que diziam meus três avós uruguaios (dois paternos e uma avó materna), que não gostavam de bêbado fazendo discurso na porta de casa. Aliás, esse assunto de ficar falando de genealogia, ou é papo de pavão, ou de bêbado. E o pior: não bebo. Portanto, não tenho desculpas. (24/05/2008)
sexta-feira, 23 de maio de 2008
PARA QUEM NÃO QUER LER
Para quem não possui o menor desejo de ler e, por um desses incompreensíveis acidentes, tropeçou neste site, neste blog, neste texto, eu jogo a faca de ponta, para que se crave a um centímetro de seu sapato, e digo “espera aí!”
Quem não lê poderia ser tanta coisa, mas não vai ser. Porque não lê.
Quem não lê pode ser rápido nos cálculos, ardiloso na forma manhosa como se aproxima da clientela e obtém um sucesso comercial que lhe rende boas roupas, carro, casa. Mas se não lê, o que vai dizer à mulher?, ao filho?, aos amigos?, aos vizinhos numa emergência moral, em algum imbróglio de convivência, que não seja banal, pobre, rasteiro, vulgar, vergonhoso, perigoso, mortal, suicida, assassino, equivocado (equívoco que não será corrigido porque escutado por outro que também, por conviver com ele, não lê).
Quem não lê pode fazer de conta que não me leu – se por acaso acabou dando uma topada, como quem tropeça numa pedra no caminho (só assim!), neste texto desaforado como só o que tem a coragem de mergulhar no abismo é. Quem não lê nunca mergulhará, teme o abismo, e bóia na superfície onde o sol o torra e ele chama isso de felicidade.
Quem não lê mal fala, mas fala mal dos outros, e sobretudo fala mal, não sabe falar direito. Confunde, quando conquista algum discurso de ocasião, um discursinho mixa, com saber falar bem. E quando fala bem dos outros, o faz tão mal, que parece bajulação. Geralmente é. O cara não lê, e não ler nos apequena o espírito, espreme-o, e dele saltam fora a curiosidade, a integridade e a generosidade. A justiça, quando fica, é somente aquela executada a ferros e argumentada sob as sombras do revide.
Quem não lê, mal ouve, mas escuta – por espichar os ouvidos – unicamente o que se pode escutar: barulhos bobos, freadas, berros, tiros, gente batendo boca, papo furado (de quem não lê, porque quem lê fura qualquer papo e o atravessa e chega lá do outro lado, onde as palavras valem ouro e trazem beleza e bem-estar e emoção a quem escuta quem lê).
Quem não lê mal vê, mas vê o que os olhos, e só os olhos, enxergam: a cidade num risco de pressa, a pressa de quem não lê e não admite atrasar-se no trabalho, como se só a hora certinha fosse acertar todos os projetos e todas as convivências. Vê o que a televisão mostra, embora o bocejo nuble seus olhos e a mente, já nublada pela pouca informação (uma vez que não lê), consegue compreender profundamente apenas o sono, que vem, e o arrebata.
Como meu texto não o arrebata. (18/05/2008)
Quem não lê poderia ser tanta coisa, mas não vai ser. Porque não lê.
Quem não lê pode ser rápido nos cálculos, ardiloso na forma manhosa como se aproxima da clientela e obtém um sucesso comercial que lhe rende boas roupas, carro, casa. Mas se não lê, o que vai dizer à mulher?, ao filho?, aos amigos?, aos vizinhos numa emergência moral, em algum imbróglio de convivência, que não seja banal, pobre, rasteiro, vulgar, vergonhoso, perigoso, mortal, suicida, assassino, equivocado (equívoco que não será corrigido porque escutado por outro que também, por conviver com ele, não lê).
Quem não lê pode fazer de conta que não me leu – se por acaso acabou dando uma topada, como quem tropeça numa pedra no caminho (só assim!), neste texto desaforado como só o que tem a coragem de mergulhar no abismo é. Quem não lê nunca mergulhará, teme o abismo, e bóia na superfície onde o sol o torra e ele chama isso de felicidade.
Quem não lê mal fala, mas fala mal dos outros, e sobretudo fala mal, não sabe falar direito. Confunde, quando conquista algum discurso de ocasião, um discursinho mixa, com saber falar bem. E quando fala bem dos outros, o faz tão mal, que parece bajulação. Geralmente é. O cara não lê, e não ler nos apequena o espírito, espreme-o, e dele saltam fora a curiosidade, a integridade e a generosidade. A justiça, quando fica, é somente aquela executada a ferros e argumentada sob as sombras do revide.
Quem não lê, mal ouve, mas escuta – por espichar os ouvidos – unicamente o que se pode escutar: barulhos bobos, freadas, berros, tiros, gente batendo boca, papo furado (de quem não lê, porque quem lê fura qualquer papo e o atravessa e chega lá do outro lado, onde as palavras valem ouro e trazem beleza e bem-estar e emoção a quem escuta quem lê).
Quem não lê mal vê, mas vê o que os olhos, e só os olhos, enxergam: a cidade num risco de pressa, a pressa de quem não lê e não admite atrasar-se no trabalho, como se só a hora certinha fosse acertar todos os projetos e todas as convivências. Vê o que a televisão mostra, embora o bocejo nuble seus olhos e a mente, já nublada pela pouca informação (uma vez que não lê), consegue compreender profundamente apenas o sono, que vem, e o arrebata.
Como meu texto não o arrebata. (18/05/2008)
MACHADO DE ASSIS E A ESCRAVIDÃO
Machado de Assis, no dia 20 de maio de 1888, condecorado com o título de Oficial da Ordem da Rosa (honraria criada pelo imperador Dom Pedro II para distinguir personalidades que não se destacassem apenas numa área, mas que somassem diversos valores diante da sociedade) pelas mãos da regente Dona Isabel, desfila pelas ruas do Rio de Janeiro. Vai por insistências de amigos. Não pretendia ir, confessa-o, mais tarde, em crônica que publica em jornal. Há uma semana promulgou-se a Lei Áurea, assinada pela regente, e os escravos – oficialmente – estão libertos. Oficialmente. Na prática, continuarão a ser humilhados, apenas que com minguados soldos a partir da data.
Machado publica crônica em que, com sua meticulosa ironia, driblando a pressa dos que lêem com ânsia conclusiva, destila seu ceticismo porque sabe que a escravidão, além daquela, específica (e que, sim, era preciso ser exterminada), há outras, inclusive envolvendo brancos, “livres”, mas pobres, e se pobres, escravizados a um sistema alimentado só por resultados palpáveis.
Muita gente andou escrevendo, depois da morte de Machado (29/09/1908), que ele virara as costas para a sua raça. Machado nunca foi um militante, no aspecto panfletário. Diante da questão escravagista, o tom com que ele sempre encarou as desgraças de seu tempo –com humor dosado, que roça a descrença sem desespero e flagra as contradições, os jogos a encenar movimentos calculados em todas as áreas, culturais, políticas, econômicas, sociais, dos I e II Reinados e dos primeiros anos de República -, esse tom passa ao largo dos gritos dos abolicionistas e parece, porque não se impõe pela força da bravata inoculada na retórica dos “libertadores”, uma discreta, quase desinteressada voz que não serve de testemunha.
Ao contrário, basta ver o conto “Pai contra mãe”, publicado em 1906, em Relíquias de casa velha, conto que, aliás, abre o volume, logo após o famoso soneto “Carolina”, uma desconcertante trama onde um caçador de escravos captura uma negra grávida, e na luta com ela provoca-lhe o aborto. Ia, o caçador, ter de entregar o filho à Roda dos Enjeitados (sistema arrepiante de adoção de crianças sem futuro), cheio de amor paternal e sem um tostão no bolso. Na iminência da tragédia, encontra a escrava pela qual recebe cem mil-réis. Consola-se: “Há filhos que não vingam”.
Machado de Assis, mesmo diante do horror da escravidão, transcende a ela nesse conto, e fixa a escravidão humana, geral, relativa. Absoluta no caso dos negros, então. E atenuada (em vez de açoites físicos, açoites verbais) no caso de brancos na miséria. Hoje a escravidão é outra: soma todas as raças, reúne-as para alimentar um tipo diferenciado de senhor. Está faltando um Machado de Assis, não para denunciá-la com propaganda, mas para, muito além, retratá-la em suas nuances, ambigüidades, contradições. O mundo só é livre para quem tem dinheiro e apenas o usa em seu favor. (11/05/2008)
Machado publica crônica em que, com sua meticulosa ironia, driblando a pressa dos que lêem com ânsia conclusiva, destila seu ceticismo porque sabe que a escravidão, além daquela, específica (e que, sim, era preciso ser exterminada), há outras, inclusive envolvendo brancos, “livres”, mas pobres, e se pobres, escravizados a um sistema alimentado só por resultados palpáveis.
Muita gente andou escrevendo, depois da morte de Machado (29/09/1908), que ele virara as costas para a sua raça. Machado nunca foi um militante, no aspecto panfletário. Diante da questão escravagista, o tom com que ele sempre encarou as desgraças de seu tempo –com humor dosado, que roça a descrença sem desespero e flagra as contradições, os jogos a encenar movimentos calculados em todas as áreas, culturais, políticas, econômicas, sociais, dos I e II Reinados e dos primeiros anos de República -, esse tom passa ao largo dos gritos dos abolicionistas e parece, porque não se impõe pela força da bravata inoculada na retórica dos “libertadores”, uma discreta, quase desinteressada voz que não serve de testemunha.
Ao contrário, basta ver o conto “Pai contra mãe”, publicado em 1906, em Relíquias de casa velha, conto que, aliás, abre o volume, logo após o famoso soneto “Carolina”, uma desconcertante trama onde um caçador de escravos captura uma negra grávida, e na luta com ela provoca-lhe o aborto. Ia, o caçador, ter de entregar o filho à Roda dos Enjeitados (sistema arrepiante de adoção de crianças sem futuro), cheio de amor paternal e sem um tostão no bolso. Na iminência da tragédia, encontra a escrava pela qual recebe cem mil-réis. Consola-se: “Há filhos que não vingam”.
Machado de Assis, mesmo diante do horror da escravidão, transcende a ela nesse conto, e fixa a escravidão humana, geral, relativa. Absoluta no caso dos negros, então. E atenuada (em vez de açoites físicos, açoites verbais) no caso de brancos na miséria. Hoje a escravidão é outra: soma todas as raças, reúne-as para alimentar um tipo diferenciado de senhor. Está faltando um Machado de Assis, não para denunciá-la com propaganda, mas para, muito além, retratá-la em suas nuances, ambigüidades, contradições. O mundo só é livre para quem tem dinheiro e apenas o usa em seu favor. (11/05/2008)
domingo, 4 de maio de 2008
CARTA ABERTA AO PAI MORTO
A Miguel Ângelo Bentancur
Pai,
aí onde estás – esta região remota, esquiva e, ao mesmo tempo, sempre fiel: a memória – imagino que só através de mim possas saber que enfim essa espécie de milagre aconteceu. O Inter, o nosso amado Inter, o Inter que tanto nos faz sofrer (até mesmo nas vitórias sofridas; e, sobretudo, contra o Juventude, essa teimosa pedra no caminho), o Inter sagrou-se campeão gaúcho. Mas isso não seria nenhum milagre; afinal, nosso clube foi o que mais títulos estaduais ganhou até agora. O milagre é que foi em cima do Juventude – e com uma humilhante goleada!
Tão humilhante que o resultado certamente se fixará com pegajosa amargura na memória de juventudinos, há duas horas esperançosos, e de gremistas ressentidos na ausência de decidirem qualquer coisa por causa de prematura desclassificação.
Não do mesmo jeito, claro, tua perda está fixada na minha lembrança, e desta forma te preservo, me salvo junto contigo, e continuo o diálogo, podendo então te comentar, exultante e aliviado: que vitória...
Na hora do oitavo gol fui obrigado a pensar: a superioridade do time pelo qual torcemos fê-lo jogar como se praticasse outro esporte: 8 gols é produção de futsal, não de futebol de campo, raramente generoso quando se trata de placar. Mais um detalhe, praticamente desprezível: a maior goleada do campeonato. Com quem eu poderia dividir tudo isso, acerca de quem tanto amo, o meu time (quem não ama tanto o time pelo qual torce?)? Só mesmo com quem muito o amou e agora, presente apenas no meu silêncio, o ama através da minha memória.
Carrego por ti, pai (que tantas vezes carregaste por mim, em algumas eventualidades duplamente bêbado, de alegria e de bebida de fato), essa fúria salvadora da aborrecida sensação de precariedade. Fúria e salvação que nascem, hoje, 4 de maio de 2008, um ano e dois meses depois de tua morte (em coma, nem soubeste, no apagar das luzes de 2006, que fomos campeões mundias interclubes), de um evento único: a odisséia recém terminada e vencida, de forma esmagadora, a resposta do time que nunca joga duro ao time que sempre disputava copas do mundo contra nós, que entrávamos com a suavidade de quem se dispõe apenas a amistosos.
8 x 1, pai. E o último gol marcado pelo Clemer, o nosso goleiro. Dá para acreditar? Eu acredito, porque poder te contar isso, tanto tempo sem te ver cara a cara, parece até um milagre.
Não é. Foi afinal um jogo de recuperação de tantas possibilidades com que o nosso time acenava. As mesmas com que sempre acenaste para que a nossa proximidade nunca tivesse fim. E não teve, pai, não teve.
Comemora comigo esse placar divino, comemora. Invisível tu, mudo tu, verão em mim uma manifestação redobrada. Como se eu estivesse tomado pela tua embriaguez alegre, aquela com a qual consolavas, com alguma ironia, claro (faz parte do jogo), os derrotados. Seu grande erro não foi terem jogado mal. Foi o de terem nos roubado tantas vezes a alegria para a qual nascemos vocacionados.
sábado, 3 de maio de 2008
FOBIAS 1
Acho que na outra encarnação eu fui Joseph K., o personagem que Kafka põe em cena no romance O Processo e que é tem de se explicar, se justificar, provar a inocência – muitas, incontáveis e renovadas inocências – acerca de crimes que ele nem sequer conceberia, que dirá ser capaz de cometê-los.
Na infância me perguntavam por alguém, geralmente um primo, um colega de escola, “sabes onde ele está?”, e eu já erguia a sobrancelha. Estavam exatamente querendo dizer o quê? Que eu sabia o paradeiro do sujeito e omitia a informação? Que mais cedo ou mais tarde eu cederia à pressão deflagrada pela simples pergunta e iria lá, bancar o dedo-duro? Que eu encolheria os ombros e os deixaria procurá-lo até encontrá-lo e crucificarem o coitado?
Crucificar, sim, que ninguém andava atrás de ninguém para aplaudir, parabenizar, abraçar ao menos.
Enganavam-se, mas nem por isso eu sofria menos.
Via o mundo (e o vejo ainda não muito diferente) num jogo frio e infindável de buscas por soluções das quais nos responsabilizam – afinal, diz o mundo, temos um papel social a cumprir, temos responsabilidades, e como! – ou um sistema que disfarça a perversidade de nos cobrar o papel que devemos interpretar (sempre, sempre, sempre irrepreensivelmente).
Ora, não sou um ator. Claro, sou um ator social, todo somos, obrigatoriamente. Mas, cá pra nós, atuar assim, de primeira, sem ensaio, e diante de estranhos, de gente que não quer espetáculo mas eficiência de máquina – e sem o refresco da atmosfera convidativa de um teatro –, fica difícil, para não dizer impossível.
Conheço gente (o emblema lustroso da valentia encobrindo a truculência) que bate de frente com instituições, com superiores hierárquicos no ambiente de trabalho, que expele sua fúria fácil no trânsito frente a oponentes de igual força – e grosseria. Espanto-me com tal capacidade. A existência não lhes pesa. Vivem prontos a, passada a tempestade, sentarem-se na sala de casa e espicharem as pernas na mesinha de centro.
Ergo-me da cama e o telefone toca antes da primeira escovada nos dentes. O coração dispara. Tem pai jogando filho pela janela. Tem público tão bizarro que perde a compostura (alguém ainda sabe o que é isso?) e veste a fantasia de justiceiro, gritando palavras nas quais apenas existe revide. Vai ver como é a casa deles.
Arrasto-me ao telefone, os cabelos em desalinho, e tento explicar a uma pobre vítima do subemprego de televendas que o produto não me interessa. Não parece que falo com uma pessoa, mas com uma metralhadora – só que monótona – de repetição; programada, não para matar, mas para aborrecer. Cansados os dois (ela terá que provar ter mais energia que eu até o final de seu expediente, ligando para ao menos 70 pessoas, segundo sua meta a ser atingida), o silêncio volta a reinar. Entretanto, contrariando sua natureza de silêncio, não sabe oferecer a paz e nem mesmo o alívio.
Ligo o computador. Despencam na caixa de correio dezenas de e-mails. Os tons são sempre três. Tonitroantes se oferecem algo que julgam novidade. Mornos se os autores são gente com quem já estamos desenvolvendo algum projeto que avança, e quanto mais avança mais reagem como se pouco avançasse. O mundo tem pressa e não olhe aonde pisa. E, terceiro tom, desaforados mesmo, de uma agressividade assustadora, a nos deixar desolados quando o assunto refere-se a algum atraso ou simplesmente a uma pequena atenção que não lhes dispensamos quando eles – grandes atores sociais – esperavam mais por ela do que tudo.
Não nos perdoam a fobia pela sala de visitas.
A sala de visitas – e a de reuniões – são o espaço da busca pela visibilidade a qualquer custo (o maior sonho do fóbico social, o mais célebre dos fóbicos, é ser o homem invisível) e da cobrança de por que essa visibilidade do que fazemos (não do que somos; que importa o que somos?) ainda não se deu. É preciso, então, passar urgente à sala de reuniões e preparar uma abordagem mais enérgica para amanhã de manhã. Pegar indefeso o cliente, o parente, o ator zonzo ainda do seu sono imperdoável.
O mundo não dorme. Quando dorme, revira-se a noite inteira. Tem fobias também, mas prefere chamá-las de pesadelo, esse subproduto de uma privada, o inconsciente.
Sei que não basta puxar a descarga. Mas sinto o pesado cheiro que me segue sem descanso, e me sinto mal na sala onde eu e os visitantes nos apertamos as mãos.
Que não lavaremos. (03/05/2008)
Na infância me perguntavam por alguém, geralmente um primo, um colega de escola, “sabes onde ele está?”, e eu já erguia a sobrancelha. Estavam exatamente querendo dizer o quê? Que eu sabia o paradeiro do sujeito e omitia a informação? Que mais cedo ou mais tarde eu cederia à pressão deflagrada pela simples pergunta e iria lá, bancar o dedo-duro? Que eu encolheria os ombros e os deixaria procurá-lo até encontrá-lo e crucificarem o coitado?
Crucificar, sim, que ninguém andava atrás de ninguém para aplaudir, parabenizar, abraçar ao menos.
Enganavam-se, mas nem por isso eu sofria menos.
Via o mundo (e o vejo ainda não muito diferente) num jogo frio e infindável de buscas por soluções das quais nos responsabilizam – afinal, diz o mundo, temos um papel social a cumprir, temos responsabilidades, e como! – ou um sistema que disfarça a perversidade de nos cobrar o papel que devemos interpretar (sempre, sempre, sempre irrepreensivelmente).
Ora, não sou um ator. Claro, sou um ator social, todo somos, obrigatoriamente. Mas, cá pra nós, atuar assim, de primeira, sem ensaio, e diante de estranhos, de gente que não quer espetáculo mas eficiência de máquina – e sem o refresco da atmosfera convidativa de um teatro –, fica difícil, para não dizer impossível.
Conheço gente (o emblema lustroso da valentia encobrindo a truculência) que bate de frente com instituições, com superiores hierárquicos no ambiente de trabalho, que expele sua fúria fácil no trânsito frente a oponentes de igual força – e grosseria. Espanto-me com tal capacidade. A existência não lhes pesa. Vivem prontos a, passada a tempestade, sentarem-se na sala de casa e espicharem as pernas na mesinha de centro.
Ergo-me da cama e o telefone toca antes da primeira escovada nos dentes. O coração dispara. Tem pai jogando filho pela janela. Tem público tão bizarro que perde a compostura (alguém ainda sabe o que é isso?) e veste a fantasia de justiceiro, gritando palavras nas quais apenas existe revide. Vai ver como é a casa deles.
Arrasto-me ao telefone, os cabelos em desalinho, e tento explicar a uma pobre vítima do subemprego de televendas que o produto não me interessa. Não parece que falo com uma pessoa, mas com uma metralhadora – só que monótona – de repetição; programada, não para matar, mas para aborrecer. Cansados os dois (ela terá que provar ter mais energia que eu até o final de seu expediente, ligando para ao menos 70 pessoas, segundo sua meta a ser atingida), o silêncio volta a reinar. Entretanto, contrariando sua natureza de silêncio, não sabe oferecer a paz e nem mesmo o alívio.
Ligo o computador. Despencam na caixa de correio dezenas de e-mails. Os tons são sempre três. Tonitroantes se oferecem algo que julgam novidade. Mornos se os autores são gente com quem já estamos desenvolvendo algum projeto que avança, e quanto mais avança mais reagem como se pouco avançasse. O mundo tem pressa e não olhe aonde pisa. E, terceiro tom, desaforados mesmo, de uma agressividade assustadora, a nos deixar desolados quando o assunto refere-se a algum atraso ou simplesmente a uma pequena atenção que não lhes dispensamos quando eles – grandes atores sociais – esperavam mais por ela do que tudo.
Não nos perdoam a fobia pela sala de visitas.
A sala de visitas – e a de reuniões – são o espaço da busca pela visibilidade a qualquer custo (o maior sonho do fóbico social, o mais célebre dos fóbicos, é ser o homem invisível) e da cobrança de por que essa visibilidade do que fazemos (não do que somos; que importa o que somos?) ainda não se deu. É preciso, então, passar urgente à sala de reuniões e preparar uma abordagem mais enérgica para amanhã de manhã. Pegar indefeso o cliente, o parente, o ator zonzo ainda do seu sono imperdoável.
O mundo não dorme. Quando dorme, revira-se a noite inteira. Tem fobias também, mas prefere chamá-las de pesadelo, esse subproduto de uma privada, o inconsciente.
Sei que não basta puxar a descarga. Mas sinto o pesado cheiro que me segue sem descanso, e me sinto mal na sala onde eu e os visitantes nos apertamos as mãos.
Que não lavaremos. (03/05/2008)
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