O escritor Alaor é sério pra burro. Não quer conversa fiada. Passa as madrugadas na internet, as manhãs na biblioteca do pai, desembargador aposentado, e durante a tarde ele debulha para uma página em branco impotente todos os dados que acumulou. Cruza-os, relaciona-os, uma informação levando a outra, e outra a outra, e assim por diante. Alaor não quer conversa fiada, por isso pratica o alterofilismo mental, sustentando um conhecimento cada vez mais concreto, com fatos, figuras, teses mais do que respeitáveis. O diabo é que um crítico, de quem sempre falaram bem a Alor, e ao qual Alaor pediu socorro acerca de seu mais recente romance, perguntou: “romance? Cadê as personagens?”
Alor apressou-se: “mas e o
deputado, e o senador, e a mulher do senador, e o cientista, e o professor, e?”
O crítico o interrompeu: “personagens se movem, gesticulam, suam, vagam, mais
perdidos que encontrados dentro de um romance. O que você faz é listar uns
nomes, umas ocupações, e mencionar situações em que essas figurinhas carimbadas
se pronunciariam. Isso é só tema, pretexto, ponto de partida. Você não chegou a
começar a fazer arte, Alaor, parou antes.”
Alaor é um sujeito do qual se
pode dizer tudo, menos que não seja sério. “Tem um monte de ideias
interessantes na história.”
“Mas não tem história”, devolveu
o crítico.
“Mas e o enredo que montei?”
“Montou, Alaor, montou. E enredo
é um troço pra lá de complicado. Deve ser a parte mais invisível da ficção,
aquela que, quando o leitor foi ver, já aconteceu. Tudo, aliás, deve ser
invisível, os personagens sendo o que são sem o autor gritar para mostrá-los. A
trama se desenrolando sem trama alguma, uma cena levando a outra, com
suavidade. Ou com sobressalto, que se há de fazer, mas um sobressalto do qual
até o autor se ressente.”
“Mas tem tanta frase inteligente
no meu livro.”
“Ficção não tem nada a ver com
isso.”
“Mas a confusão...”
“Nada melhor que a confusão para
revelar um caráter, um drama.”
“O perigo, caro crítico, é o
escritor cometer muita conversa fiada.”
“Literatura é conversa fiada.”
“Eu sou sério demais”, advertiu-o
Alaor, ofendido já, e orgulhoso da própria seriedade.
“A diferença é que arte é forma;
e você, que só vive das ideias, é formal.”
“Não, não, não!”, horrorizou-se
Alaor. “A literatura não pode ser tão superficial...”
“Num certo sentido, é bastante.
Vive de olhar demoradamente a superfície, onde boiam sinais remotos de algo que
se agita no fundo – e nunca será revelado.” (26/04/2013)
4 comentários:
Prezado Sr. Paulo Bentancur:
agradeço com entusiasmo essas dicas valiosas que o sr. nos dá, através de textos tão criativos quanto inimagináveis. O sr. tem sempre um coelho para tirar da cartola quando se trata de teoria literária. Teoria?! De jeito nenhum. Prática, com a qual sempre temos muito o que aprender.
(Everton Martins, Nova Iguaçu - RJ)
Caro Everton:
o entusiasmo de leitores como tu só me entusiasma mais ainda a escrever. Obrigado.
Nossa! Eis outra grande e estimável aula do professor Paulo Bentancur. Aprendi muito em sua oficina literária e continuo a aprender, quando leio o que escreve aqui, quando leio o que os outros escrevem; pois você não ensina,à primeira vista o que parece, a escrever um texto literário; você ensina a lê-lo. PARABÉNS SEMPRE!
Caríssima Adriane,
"professor"? Bondade tua. Ando acompanhando teu blog, ainda recente, mas original e convidativo (num país sem leitores, vejam só, um "blog leitor"!), OS LIVROS QUE EU LI, e abrindo com uma raridade da literatura russa e universal. Sem falar que já propicia uma interessante discussão acerca da fobia social, justificável no hemisfério norte, tão frio, e nestes trópicos, tão levianos. Parabéns e obrigado por tua atenta leitura, que tanto valoriza o que a gente escreve.
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