sábado, 31 de dezembro de 2011

Uma lágrima para Daniel Piza

2011 acabou mesmo! O Daniel Piza morreu, gente... O melhor jornalista cultural em atividade até então. E autor de livros de ficção, ensaios (sobretudo ensaios e reportagens, além da excepcional biografia de Machado), sem contar a sua página-coluna dominical n'O ESTADÃO, leitura semanal inadiável. Ele pensava todas as áreas, herdeiro legítimo de Paulo Francis, sem criar um personagem para si, coisa na qual o Francis investiu demais. O Brasil fica menos atento, menos sensível. Ou mais: a ausência de Piza nos paralisa antes de prosseguirmos a caminhada e adentrarmos 2012 decididos a continuar a enorme tarefa, desafiadora e fascinante, que ele realizava como ninguém. Agora, é tudo conosco. Obrigado, Daniel, pelas dicas, pela lição, pela energia, pela cultura imensa sem nenhuma afetação. A demonstrar que para enfrentarmos a batalha das ideias não podemos entrar nela apenas municiados por um canhestro canivete e uma só literatura. Piza conhecia, a fundo, a literatura universal em sua essência, artes plásticas, música, história, política, futebol. Não era simplesmente onívoro. Estava mais do que bem preparado. "Shopenhauer aos 26", dele disse Paulo Francis assim que o conheceu, quando Piza tinha essa idade. Morreu vítima de um AVC aos... 41 anos! Eu o lia desde que surgiu no começo dos anos 1990. Traduziu alguns livros importantes, como uma seleção de Bernard Shaw, e A ARTE DA FICÇÃO, de Henry James. E um livro infantojuvenil que merecia ser adotado em tudo que é escola, AS GAROTAS DE NOVA YORK, trazendo à cena LES DEMOISELLES D'AVIGNON, a tela de Picasso, que um dos protagonistas admira e traduz a arte do gênio para o leitor - no Brasil - mais que necessitado de temas assim, raramente enfrentados, ainda mais no gênero. O tamanho desse necrológico é o mesmo da figura de Daniel Piza: grande. Achar interlocução assim é mais que raro, um evento. E a perdemos. Tomara o jornalismo faça escola a partir de sua obra. (31/12/2011)

quarta-feira, 2 de março de 2011

FILHO DE QUEM

Conduziu-me pela mão
o som de membro tão hábil.

Levou-me na direção,
as minha pernas cantando
pedras, tropeços, recantos.

Sentou-me no colo do chão,
desenhou-me a cor da grama,
coloriu-me a terra densa
e suas raízes músculos.

Ergueu-me o rosto pro céu,
a cegar o sol e as nuvens.

Baixou-me o olhar até
o leito onde escorriam
as palavras a criar
o menino já crescido.

Minha mãe com seu vestido,
puído, escondendo os joelhos;
meu pai tropeçando vinho,
gargalhando com os vizinhos.

Eu já era cuidado
ao ponto de cuidadoso
com o que dizia a todos.

Os livros ali tão perto.
Os livros me sussurrando.
Os livros: conselho, relho,
Os livros, sérios, brincando.

Os livros, pais a me dar
um rumo, martelo, murros
necessários no recreio
quando colegas cravavam
receio em quem pensavam
ser filho de pais ausentes.

Literatura, a bênção,
senhora, minha mãe de sempre. (02/03/2011)

domingo, 27 de fevereiro de 2011

GRATIDÃO AO ARTISTA MORTO

Querido Scliar,

eu poderia escrever para a tua família, tua esposa, teu filho, contando-lhes do meu imenso carinho por ti, da minha admiração incondicional, como artista e (o que é mais difícil) como o ser humano que foste. Mas preciso te dizer alguma coisa. Se não alcançares essas palavras, estarei, como consolo (embora nesta hora inconsolável) dizendo-as a mim mesmo. Tive as duas convivências contigo. Foste o escritor que a partir dos meus 17 (portanto, há 36 anos) passou a acompanhar a minha carreira, me estimulando sempre, me sugerindo, me aconselhando, me alertando, arregaçando as mangas (que energia, exército de um homem só!), ao ponto de escreveres dois generosíssimos prefácios em dois livros meus, ao ponto de eu ter a alegria de ter editado três livros teus, sem falar nas vezes em que nos cruzamos para dar palestras juntos, como em Santo André, SP, sobre o centenário de Erico Verissimo, em 2005, e tu te mostravas mais preocupado com a minha ansiedade do que com a palestra em si, tão generoso, meu amigo, meu irmão, quase um pai (dá licença, Beto!). Estamos órfãos, eu e a literatura. (27/02/2011)

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

TERRÍVEIS TARADOS E A REAÇÃO COMUM DAS MULHERES

Um homem, 35 anos, passa por uma mulher bonita, lá pelos seus 28, 30. Encanta-se. Controla-se até onde pode. E não vai além de cantarolar, emparelhando o passo quase ao lado dela, num trecho da calçada em que estão apenas ambos, e mais nenhuma testemunha para envergonhá-lo: "Você é linda, / linda demais. / Você é linda sim. / Esta canção / é só pra dizer / e diz..." Nem a observa, tenso, talvez. Embora com o encanto inquebrável. Até que... A mulher apressa o passo, como se corresse de um assassino e, cinco metros adiante, olha para trás, encara-o, pura fúria, encolhe os dedos e estica o indicador, dando o troco socialmente merecido: "vai tomar no teu cu!"

Outro homem, mais jovem, rapaz ainda, passa por uma adolescente de uns 16, 17 anos, e mais murmura que exclama, olhando sempre em frente: "Meeeeeeuuuuu Deuuuuussssss!" A jovem vira-se, como se abalroada por um búfalo, e vocifera: "Não te enxerga, ô meu?!"

Um homem de meia-idade, fazendo sua habitual caminhada, para próximo a uma dama distinta, idade similar, colar de pérolas e palavras secretas que ele supõe jamais um dia escutar. Comenta com a parceira na espera do demorado semáforo: "este cruzamento é chato mesmo..." Ela não responde, como se se fosse fazê-lo acabasse de assinar a própria sentença de morte. Ele ainda acrescenta, assim que o sinal abre e ela dispara: "Boa taaaaarde!". Ela segue quase correndo, tropeça, vira-se na direção dele e o olhar de puro desgosto acompanha a boca vomitando um "filho da puta, não respeita ninguém? Não se olha no espelho?" Ele, chocado, tem vontade de perguntar-lhe se ela tem alguma intimidade com a língua portuguesa. Mas sabe que a palavra "intimidade" poderia não pegar bem.

Um senhor septuagenário observa com indisfarçável alegria os movimentos de uma senhora sexagenária, vestido florido, coque no cabelo cinza mas tão docemente moderno. Ela dá o flagrante no olhar e sacode a cabeça, comentando com uma outra que passa: "esses velhos não respeitam ninguém...".

Um menino de uns dez anos examina artigos esportivos numa loja especializada. Uma menina da mesma idade gruda o olho nele e não desgruda. Ele não vê nada mais belo que o par de tênis, a caneleira, as luvas. Quando está saindo do estabelcimento com o pai, a menina arrisca: "Tchau!" E ele, sem saber que é a coisa mais natural do mundo, responde: "Tchau!". (23/02/2011)