sexta-feira, 26 de abril de 2013

DEFEITOS DA FORMA


O escritor Alaor é sério pra burro. Não quer conversa fiada. Passa as madrugadas na internet, as manhãs na biblioteca do pai, desembargador aposentado, e durante a tarde ele debulha para uma página em branco impotente todos os dados que acumulou. Cruza-os, relaciona-os, uma informação levando a outra, e outra a outra, e assim por diante. Alaor não quer conversa fiada, por isso pratica o alterofilismo mental, sustentando um conhecimento cada vez mais concreto, com fatos, figuras, teses mais do que respeitáveis. O diabo é que um crítico, de quem sempre falaram bem a Alor, e ao qual Alaor pediu socorro acerca de seu mais recente romance, perguntou: “romance? Cadê as personagens?”
Alor apressou-se: “mas e o deputado, e o senador, e a mulher do senador, e o cientista, e o professor, e?” O crítico o interrompeu: “personagens se movem, gesticulam, suam, vagam, mais perdidos que encontrados dentro de um romance. O que você faz é listar uns nomes, umas ocupações, e mencionar situações em que essas figurinhas carimbadas se pronunciariam. Isso é só tema, pretexto, ponto de partida. Você não chegou a começar a fazer arte, Alaor, parou antes.”
Alaor é um sujeito do qual se pode dizer tudo, menos que não seja sério. “Tem um monte de ideias interessantes na história.”
“Mas não tem história”, devolveu o crítico.
“Mas e o enredo que montei?”
“Montou, Alaor, montou. E enredo é um troço pra lá de complicado. Deve ser a parte mais invisível da ficção, aquela que, quando o leitor foi ver, já aconteceu. Tudo, aliás, deve ser invisível, os personagens sendo o que são sem o autor gritar para mostrá-los. A trama se desenrolando sem trama alguma, uma cena levando a outra, com suavidade. Ou com sobressalto, que se há de fazer, mas um sobressalto do qual até o autor se ressente.”
“Mas tem tanta frase inteligente no meu livro.”
“Ficção não tem nada a ver com isso.”
“Mas a confusão...”
“Nada melhor que a confusão para revelar um caráter, um drama.”
“O perigo, caro crítico, é o escritor cometer muita conversa fiada.”
“Literatura é conversa fiada.”
“Eu sou sério demais”, advertiu-o Alaor, ofendido já, e orgulhoso da própria seriedade.
“A diferença é que arte é forma; e você, que só vive das ideias, é formal.”
“Não, não, não!”, horrorizou-se Alaor. “A literatura não pode ser tão superficial...”
“Num certo sentido, é bastante. Vive de olhar demoradamente a superfície, onde boiam sinais remotos de algo que se agita no fundo – e nunca será revelado.” (26/04/2013)


domingo, 7 de abril de 2013

TALENTOS



O sujeito, afinal de contas, era medíocre porque, sendo talentoso, deu vez a um medíocre em sacrifício da própria genialidade, posta de lado pela dúvida sempre cruel da autocrítica, a princípio uma virtude, a seguir, um vício. Não acreditava no outro, claro, porém, incapacitado de crer em suas virtudes e engenho, preferiu render-se ao movimento contínuo, talvez monótono, da necessidade de afirmação do colega, sem talento algum, sim, entretanto tornado mais forte que ele diante da indiferença do mundo.
Por outro lado, que talento o do sujeito que, sendo medíocre, sentiu a hora única na brecha mínima que foi a dor atroz da profunda insatisfação do amigo talentoso, e naquele segundo de hesitação deixou-o para trás, permitindo que ficasse inédita uma novela lancinante do outro, e que as portas se abrissem ao vazio fútil e fácil que foi então sua ascensão imposta pelo simples desejo de subir. Desejo que ninguém segura. E que o universo, feito de matéria escura, aplaude. (07/04/2013)