Autores brasileiros contemporâneos provam a vocação
que a literatura possui para jamais ser estática,
mesmo quando busca o reconhecimento
O escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984) declarou certa vez que quando se sentava para escrever era como se a literatura não existisse e ele tivesse de reinventá-la. Estávamos em época de ditadura militar, e a saída para o discurso possível era o realismo mágico, que pela própria natureza – sem ser, necessariamente, gigante – gerou alguns gigantes: o próprio Cortázar, García Márquez, Juan Rulfo, Carlos Fuentes etc. No Brasil de então brotava o primeiro – e melhor – Moacyr Scliar (o dos contos de Carnaval dos animais e das novelas A Guerra no Bonfim, O exército de um homem só e Os deuses de Raquel) e um clássico pouco falado atualmente, José J. Veiga (de Goiás, mas bem editado e aceito no centro do País).
Era uma reação estética saudável a uma situação política doentia. Mas e hoje? Hoje, a pressão é outra. Deixou de ser especificamente opressiva no sentido de que deixou de ser política. Mas passou a ser multiplicada opressivamente porque é de ordem econômica e gerada pelos estragos que a sociedade de consumo causa, tendo atingido, pelo visto, seu apogeu.
Tenho uma filha de nove anos que, grande leitora, no entanto não escapa impune à obrigação de consumir modismos incontáveis e caríssimos, sem os quais ela estará fatalmente marginalizada dentro do grupo escolar que frequenta. Seus únicos pares. A literatura não escapou dessa armadilha, e procura – como um pai procura na equação filha = mundo – achar uma linguagem que dialogue com a dança referencial de um real que encontre legitimidade na fantasia que escraviza, não na fantasia que liberte.
Saturado de tanto emplastro para escamotear as dores seculares do mundo (emplastros que agora nascem do enterro sistemático do que a tradição criou como ponte para atravessarmos com um mínimo de segurança o nosso próprio tempo), o escritor ou revida – com uma bem-fornida mimese – essa profusão de referenciais cuja hegemonia dura um ano e cuja eficácia e profundidade não duram mais que os primeiros parágrafos, ou a pega no contrapé através de um movimento com o qual ela não contava: o da linguagem.
No primeiro caso, o da mimese, encontramos na obra do mineiro radicado em São Paulo Luiz Ruffato a resposta renovadora. O que poderia ser anacrônico ou assopro cansativo sobre as cinzas da História de fundo social emana brasa viva a revivificar sobrevivência, violência, migração para a grande cidade do centro do País, o ruidoso e caótico movimento de descendentes de italianos saídos de uma Cataguazes de portas fechadas para uma São Paulo que os joga direto na garoa mais noturna e fria. Grupos que há 30 anos eram chamados de lumpemproletariado, de rebotalhos da classe média baixa, de classe trabalhadora em áreas onde a modernização recém chegava para roubar empregos, não para muni-los de novas e eficientes ferramentas. Famílias dizimadas, luta e luto, e impunes ficam apenas o que se engessam num território onde o passado, mesmo enferrujado, ainda dá as cartas, bocejando.
Em Ruffato, você confere tudo isso na sua série de cinco romances, Inferno provisório, que abriu com Mamma, son tanto felice (176 pág., R$ 27,00), continuou com O mundo inimigo (208 págs., R$ 27,00), depois com Vista parcial da noite (160 págs, R$ 31,00) e da qual saiu não faz muito O Livro das impossibilidades (160 páginas, R$ 31,00), todos editados pela Record. Trata-se de meio século de transposição de um mundo vocacionado para o decomposto. O poder fraudulento, uma comunidade à deriva agarrada pelos intensos medos que alimenta, a carroça desgovernada da crônica dos fatos oficiais, carroça sobrecarregada de gente sem rumo – sem rumo herdado e sem rumo construído.
O mimetismo em Ruffato é total, sem os arranjos que se faz no mundo aí fora em busca da ilusão de que ele pressupostamente funcione. Não há truque no ficcionista. Tudo é exuberância na voragem de um caleidoscópio do precário. Narração e diálogos se misturam. As mais marcantes aventuras são as desventuras que ninguém contaria, por horror ou vergonha. As figuras que Ruffato faz reencarnar, reencarnam mesmo, e tem o peso de fantasmas de carne e osso. Inferno provisório é um ciclo romanesco, e só essa arquitetura ambiciosa (paradoxalmente construída com resíduos: de memória, de descrições no limite dos gêneros, num alucinado ritmo elíptico) já garante para o escritor a singularidade própria dos que, mesmo olhando para trás, reinventam a literatura.
A literatura como personagem
Não é de hoje que o artista ou a obra são convocados a dar as caras, a emprestar suas vozes à personagem principal. A atuar. A copista de Kafka, de Wilson Bueno (Planeta, 200 págs., R$ 35,00) faz de Felice Bauer, noiva de Franz Kafka (1883-1924), a copista que recebe do grande escritor textos para transcrever. Textos que nunca chegarão às mãos de Max Brod, o amigo que o traiu quanto à vontade do escritor, no leito de morte, de que sua obra fosse queimada. Bueno cria uma “recriação” de ambiente e de papéis suspeitos. A fidelidade de Felice, paradoxalmente, destrói obras de que até então nunca ouvíramos falar, como um bestiário (tipicamente kafkiano: o inseto em Gregor Samsa, o tatu em “A construção”, o abutre afogado no sangue da própria vítima...), enquanto nos revela, no livro que Bueno organizada, intercalando trechos cronologicamente ascendentes dos diários da copista com narrativas que incorporam na trama, no estilo, nas referências, na ótica diagonal sobre o mundo opressivo, o universo ficcional de Kafka, obras que estariam para sempre perdidas, não houvesse sido escrito este livro. Todos os textos, menos as cartas, ela queimou. Não o traiu. Mas traiu-se. Irônica comparação a Brod, que traiu descaradamente, e legou o bem que nos legou. Somos o abutre?
Alexandre Plosk, em As confissões do homem invisível (Bertrand Brasil, 392 págs., R$ 49,00), convoca os modelos de O Homem Invisível, de H. G. Wells, O Horla, de Guy de Maupassant (L&PM Editores, esgotado), O Homem de Areia, de E T. A Hoffmann (esgotado), e traz para a contemporaneidade carioca um modelo aterrador e uma brecha metafísica permanentemente aberta: a da diluição do eu.
É com tal ambição de olhar que a literatura permite e, mais, pressiona os escritores a que achem novos modelos, atalhos, arquiteturas. Não os deixará em paz nunca, como não deixou a um outro argentino, Jorge Luis Borges (1899-1986), que passou a vida toda anunciando-se mais como leitor que como escritor, e que inventou (enquanto personagens e temas) obras, autores, estilos, literaturas, um novo cânone a partir do qual – mesmo irreal e mágico – podemos guiarmo-nos na direção garantida de uma literatura comprovadamente nova. (02/05/2009)