terça-feira, 27 de outubro de 2009

Três vezes na Feira

A 55ª Feira do Livro de Porto Alegre, que abre nesta sexta-feira, 30 de outubro, e vai até o segundo domingo, dia 15 de novembro, é o espaço por excelência da visibilidade do livro. A gente curte tanto o evento que, quando vai ver, quase sem sentir, prepara um livro, dois, três – e eles convergem todos para aquele espaço de convivência que, não à toa, é chamado de "a maior feira de livros a céu aberto da América Latina". Este ano todos os meus títulos são no gênero infantojuvenil. Mas literatura de verdade (se eu tiver sorte de ter chegado a ela) não tem idade, e é para todos os públicos. Em resumo, para quem gosta de ler, preparado a entregar-se a toda natureza de surpresas. São três sessões de autógrafos com três editoras diferentes, de três estados.

31/10, sábado – 19h30min: O morto que não encontrava o céu (WS Editor); terror com humor. Especificamente, para leitores entre 9 e 12 anos, mas pais, tios e avós são bem-vindos. Praça de Autógrafos.




05/11, quinta-feira – 17h: Três pais (Saraiva – Selo Atual); três livros em um: duas adaptações de clássicos – Shakespeare e Kafka – e mais uma novela inédita do autor, Pai embrulhado para presente. Série temática Três por três: este volume toma como ponto de partida a delicada condição paterna, e de chegada, torço, a condição humana. No deck dos autógrafos – Pórtico Central do Cais do Porto, Área Infantil.




(Entrevista a Melissa Stranieri)

- Há mais de 20 anos você é crítico literário, julgando outras obras e escritores. Qual o critério que utiliza para avaliar as próprias publicações? Diria que se procuro ser justo com os outros autores que comento, comigo prefiro (claro, exagerando um pouco) até mesmo ser injusto. Exijo ao máximo de mim (e nem seria bom que exigisse menos que isso). Um bom livro deve ser criativo na trama, ter personagens interessantes e uma linguagem saborosa, com ritmo, quase musical, e ao mesmo tempo fácil de ler. Não posso, como crítico, abrir mão de encontrar isso em qualquer livro que analiso. A diferença é que quando se trata de um livro meu, bom, aí então eu levo essa exigência a um nível extremo. Procuro, em resumo, escrever o livro que eu, como leitor, sonho um dia encontrar para ler. Difícil chegar a tanto, mas não custa tentar (risos).

- Você já escreveu para o público adulto e também para o infantojuvenil. Qual a diferença entre eles? Toda e nenhuma. Nenhuma porque quando se escreve, busca-se uma doação sem a qual o artista não é artista, mas mero prestidigitador. Entregando-se inteiro ao que conta, vai junto como ser, e acontece junto de sua história, entregando aos leitores um livro que vale uma pessoa inteira e suas obsessões e encantamentos. E também, nos aspectos externos, há toda uma diferença. Isto porque o público adulto, bem, a gente nunca fica sabendo quem é. O infantojuvenil é que faz com que você, como autor, seja convidado a ir nas escolas, e é entrevistado daquela forma livre e espontânea, típica das crianças e adolescentes: perguntam de tudo. A garotada não se intimida na hora da curiosidade. Os leitores adultos já são mais dados a uma reserva compreensível, o que é raro quando se trata de jovens. Quando publico para adultos, acontece uma sessão de autógrafos, sai crítica na imprensa, com sorte ganho algum prêmio, e o resto é um enigma só. Quando publico infantojuvenil, fazem encenações sobre os meus livros, cartazes, me escrevem cartinhas manuscritas lá do interior, mandam recado até pelo Orkut – é uma festa!

- Já são cerca de 30 obras publicadas e sempre com uma história diferente. Como surgem as ideias para escrever os livros? Como surgem todas as idéias em todas as cabeças de qualquer pessoa. Imprevisivelmente (a gente deve estar sempre de “portas” e “janelas” abertas; no sentido figurado, claro), ao acaso, como quem sai para brincar no parque e nem sabe o que vai acontecer e então se depara com muitos fatos. A vida nos apronta muitas surpresas. Basta não ter medo de imaginar. No fundo, bem lá no fundo, todos nós já temos, como quando estamos sonhando, histórias prontas à espera de que a gente as descubra e as traga para fora de nossa mente e as coloque no papel. Eu sempre sento na frente no computador quase que não tendo a mínima ideia do que vou escrever. Eu disse "quase". Evidentemente, há um projeto básico, um desejo forte que me impele para a frente mas não se mostra visível enquanto não escrevo as primeiras frases. Começo então a escrever, inevitavelmente. De acordo como está o meu espírito nesse dia. E as coisas vão rolando (como uma bola que eu fosse chutando)... e a história tranca aqui, destranca ali, tranca de novo, mas, de repente, acontece! Quando termino um livro, surpreendo-me e digo para mim mesmo: “mas então era isso que eu tinha para contar?!”

- No livro “Três pais” você associa Hamlet com o livro. Como isso acontece? Desconfio que muitas das histórias já escritas no mundo de alguma forma dialogam umas com as outras. No caso do Hamlet, o príncipe é visitado pelo fantasma de seu pai que foi assassinado, pai que pede vingança ao filho, e Hamlet sofre com a presença paterna a exigir dele a difícil justiça e, ao mesmo tempo, o príncipe também sofre com a ausência desse pai, que já não pode se defender. Na outra história, “Carta ao Pai”, do Kafka, o filho acusa o pai de ter sido muito duro, exigente, e aí invertem-se os papéis: é o filho que deseja justiça. E na terceira história, criada por mim, “Pai embrulhado para presente”, eu narro a história de um pai que é desafiado a ficar longe das duas filhas para vencer na carreira, no trabalho. Mas a realização profissional, nesse caso, quase arrisca colocar o afeto pra escanteio. Bom seria ter os dois em seu ponto máximo... Mas é o caso de buscar equilibrar as prioridades, a afetiva e a material – obviamente não excludentes. Naturalmente, esse pai jamais vai parar de trabalhar, ele prefere enfrentar alguns sacrifícios porém sua escolha principal, ali, é ficar sempre perto das filhas. Entre a glória e a fortuna ou o afeto (na verdade uma questão que não podemos aceitar que seja posta assim), ele escolhe o afeto como glória e fortuna legítimas. Dele, do amor paterno, tirará a energia para construir o resto. E aí, voltando ao Hamlet da pergunta, a angústia que se apodera do príncipe que precisa denunciar o assassino de seu pai – o tio! –, é o afeto a força decisiva para que ele crie a coragem nunca antes demonstrada. Afinal, sem afeto de que adiantaria existirem pais e filhos? Que sentido e sabor teria, enfim, a vida?


12/11, quinta-feira – 17h: Tem vampiro no hospital (Editora Positivo); terror com humor. Leitores entre 9 e 12 anos, mas todos os curiosos, entre 9 e 400 anos (idade estimada de Drácula) são leitores-alvo. No deck dos autógrafos – Pórtico Central do Cais do Porto, Área Infantil.




Bem, amigos, é isso. Como as agendas andam lotadas, vocês têm três chances para comparecer ao menos a uma das sessões. E considerando que minha última sessão foi em 2006, eu já estava com saudades deste clima que só a Feira possui. Daí porque neste ano resolvi exagerar, e parti para comparecer em dose tripla. Não dá para facilitar... (27/10/2009)

sábado, 24 de outubro de 2009

ALÉM E AQUÉM DO VERSO ("Versilêncios", de Gerusa Leal)




Não é todo dia que surge um bom livro de poemas. Culpa dos poetas. Em parte, em pequena parte. Em grande parte a culpa é mesmo dos editores, que acusam o mercado dentro de cuja barriga os livreiros, famintos, bradam: “não há leitores de poesia!”. Não? Somos então uma espécie em extinção. Eu e mais uns cinco mil que certamente leem o gênero no Brasil. Parece que o problema não está só com a poesia mas com a indústria editorial, que opta pelo mais fácil como uma criança fazendo o dever de casa. Movida pela pior das obrigações – e por isso não deslancha. Culturalmente não.

Mas esta é uma discussão longa. Vender, vender mesmo (esgotar edições), claro que a poesia não fará isso. Mas pagar seus custos ao menos, dando, em contrapartida, uma valorização no catálogo das editoras, deixando-os mais nobres, pagando ao editor com a “quota prestígio” – que parece que o Departamento Editorial ignora –, isso ela tem feito sempre que um herói invista em versos: naturalmente, de qualidade.

Pois Versilêncios, de Gerusa Leal (nascida em Recife e residindo atualmente em Olinda), é desses livros dos quais as editoras não correm atrás. Azar o nosso, leitores dependentes químicos de Literatura com L maiúscula. Não fosse o prêmio Edmir Domingues de Poesia 2007, da Academia Pernambucana de Letras, que a obra merecidamente ganhou, e o apoio viabilizador da edição, através da lei do sistema de incentivo à cultura, e o livro não viria à luz. Permaneceria inédito, provavelmente, apesar de seus incontáveis méritos, ou dependeria daquelas infrutíferas iniciativas de poetas que, corajosos ou impacientes, pagam do próprio bolso uma edição destinada a não ser profissional mas, literalmente, independente (isto é: independente do mercado, onde não se insere, independente de distribuição, de comercialização e, assim, de recepção, condenada a permanecer à margem).

O primeiro a torcer o nariz diante do produto é o livreiro, que deseja ver na capa um selo importante. Diante de tal ausência, não dá a atenção devida, não o expõe, e o frequentador da livraria não tem como adivinhar que a obra existe. Obra destinada, portanto, a não existir mesmo.

Uma vez declarei num programa de tevê de grande audiência, em cadeia nacional: “pior que ficar inédito é publicar mal.” E não publicar mal, só por editoras profissionais, sólidas, e que, lamentavelmente, estão dando às costas à poesia. Mas esta, como escrevi linhas atrás, é outra discussão.

A pauta aqui é Gerusa Leal, poeta e ficcionista. E, mais especificamente, Versilêncios, que acaba de ser lançado, porém sem a necessária distribuição. De Pernambuco, de onde vem, até chegar ao RS, mais que a enorme distância, separa-o o milagre. Milagre que pôs o livro em minhas mãos por essas atalhos especiais que só os vínculos estéticos somados aos humanos propiciam.

Tenho lido pouca poesia (porque pouca poesia tem sido publicada) e relido muita, os clássicos (porque estes, adotados, são os únicos diante dos quais o editor não arrisca).

Versilêncios abre-se já a partir do título, multifacetado, com a tripla carga semântica do neologismo que a poeta criou para batizar seu filho, ufa!, não enjeitado (bendito prêmio...). “Ver silêncios” (poesia, afinal, é imagem, embora também música, e se até o silêncio fala ao poeta, este o desenha em suas metáforas-traço). “Ver” soma-se à primeira sílaba, “si”, de “silêncios”, numa junção que dá em “versi”, “verso” em italiano, e basta pensar em Dante, não exatamente no livro lembrado, mas inevitável quando se pensa em poesia e em italiano, para ver a intensa riqueza significadora do título. E ainda: “Versos” e “silêncios”, isto é, “versos silenciosos” – melhor tradução para o projeto de extremo rigor e de pleno acerto que Gerusa atinge como poeta.

Eis a tripla encruzilhada que, antes de obstáculo, é abertura para um caminho mais amplo à procura de uma leitura de fato entregue a esses cinquenta poemas singulares.

A poética de Versilêncios é construção rigorosa, com versos esculpidos, talhados, não tivesse, pela força do ritmo, uma fluência cuja harmonia atinge em cheio sua cadência nunca dura, nunca seca, mas, sim, quase sussurrada e, desta forma, buscando lírica rara: a marcar exatamente porque escolheu entremostrar-se e não o contrário, que é exibir-se com os excessos comuns de uma poesia que não passa de prosa ritmada ao extremo.

A edição, evento a ser saudado, sobretudo pelas dificuldades que sempre cercam tal fato, está à altura, com introdução e posfácio críticos, ambos de fôlego e com leituras que não causam eco, que não chovem no molhado. Um pouco pela qualidade dos ensaístas, André Cervinskis e Stéphane Chao, um pouco pela própria poeta, que não descuida de um único verso, que escreve silabando. E que, ainda que chegue ao zelo infinito de medir cada som, não se exila do discurso próprio da poesia, o do paradoxo, o da permanente refundação do mundo e da inacabável instauração do real. Um real que é sempre outro, não este, no qual escrevo.

Citar um poema? Cito um inteiro, o primeiro, no qual a poeta, sem demora, já mostra ao que veio: “não escrevo o que não sinto / amadora que sou / sinto o que não escrevo / jeito de amar a dor // escrevo o que não sinto / salvo a vida / não sinto o que não escrevo / nem percebo que vivi”. Dividido em doze seções, Versilêncios nos leva para um território onde tudo o que lemos-escutamos só grita nos instantes (muitos) em que a beleza é tanta que nos impõe uma resposta: a da emoção estética forte, manifestada em geral quando diante de um livro muito acima da média.
É o caso.
Gerusa Leal. Anotaram o nome? Procurem no blog (olhem que belo nome) Flor de Gelo, endereço: http://flor-de-gelo.blogspot.com/ e tudo que eu não disse aqui alguém terá dito por lá. (24/10/2009)